Queiramos ou não, uns mais, outros
menos, estamos sendo levados por uma pandemia a pensar mais longamente na vida
e na morte.
A instabilidade do “estar vivo” está
nas conversas diárias, com tantas diversas opiniões quantas são as crenças,
saberes e modos de vida presentes na sociedade. Há aquele fatalista, que se
recusa a tomar cuidados básicos de proteção, porque a morte é condição que
escapa ao homem e chegará cedo ou tarde, queira-se ou não. Há outro, mais
ponderado, a objetar que a vida, em si, qualquer que seja sua duração ou
feição, é importante demais para ser desprotegida ou desperdiçada.
De qualquer modo, relatos diários
reforçam nossa aflição atual. Por exemplo, na Folha de São Paulo1, li três títulos penosos:
'Me vejo atormentada com pensamentos de morte', diz médica
indiana
'Se for infectada, estarei no grupo dos que morrem ou dos que
sobrevivem?', pergunta médica sul-africana
'É muita responsabilidade ser a última pessoa que alguém vê
antes de morrer', conta enfermeiro na Itália
Enfim,
quando um grande sofrimento chega para nós, ou para pessoa próxima; quando
assistimos a relatos dramáticos sobre alguém que passa por progressivo declínio
vital, e cujo corpo parece lutar, sem sucesso, apesar dos tratamentos, contra a
doença, é difícil não se perguntar: valerá a pena viver?
Ou,
nas palavras de Jan Olav, personagem de A
garota das Laranjas2:
Quanto vale um ser
humano? Será que nós somos apenas poeira que qualquer ventania levanta e
espalha?
Nesse
romance de Jostein Gaarder, o questionamento sobre a vida está posto de modo
objetivo, mas, ao mesmo tempo, sensível e comovente. Jan Olav, doente de câncer
e sabendo da morte próxima, escreve uma carta a seu filho Georg, então, muito
criança. É como se o pai deixasse um testamento afetivo, com lições e reflexões
sobre a vida para o filho receber na adolescência. A carta permanece escondida e
é descoberta somente 11 anos depois. Nas palavras de Georg:
Na época, meu pai
decidiu que era impossível conversar para valer com um garotinho de três anos e
meio. Hoje eu entendo isso. [...] Escreveu a história da “garota das laranjas”,
para que eu a lesse quando estivesse crescido o bastante para compreendê-la.
Escreveu uma carta para o futuro.
Na
carta, Jan Olav narra seu amor pela “garota das laranjas”, que é, em suma, a história
da formação de uma família feliz (Jan Olav, Veronika e Georg), desde os
encontros e desencontros dos namorados, a decisão de ficarem juntos, o
nascimento do filho e a breve convivência familiar, até a doença fatal que
motiva Jan Olav a escrever a carta.
Pela
beleza e profundidade do texto e pela adequação ao momento difícil que vivemos,
quero compartilhar o principal das indagações de Jan Olav sobre vida e morte, no
trecho da carta em que ele relembra uma “conversa-monólogo” sobre o universo e
a vida, que tivera com o filho criança.
Os
negritos são por minha conta.
O tempo, Georg, o que é
o tempo?
Continuei falando —
embora soubesse que você já não conseguia entender aquilo tudo.
O cosmo é muito velho,
eu disse, talvez tenha 15 bilhões de anos. E, apesar disso, ninguém conseguiu
descobrir como ele surgiu. Nós vivemos
dentro de um grande conto de fadas, do qual ninguém faz realmente ideia. A
gente dança e brinca e bate papo e ri num mundo cujo surgimento ninguém pode
entender. Essa dança e esse brinquedo são a música da vida, eu disse. A
gente os encontra em todos os lugares em que há seres humanos, assim como em
todo telefone há o sinal de linha.
Então você inclinou a
cabeça para trás e olhou para mim. Entendeu pelo menos a parte do sinal de
discar no telefone. Você adora tirar o fone do gancho só para ouvi-lo. Logo
depois, Georg, eu lhe fiz uma pergunta, aliás, a mesma que quero fazer agora que
você finalmente pode compreendê-la. Foi por causa dessa pergunta que lhe contei
a longa história da garota das laranjas.
Eu disse: “Imagine que,
há muitos bilhões de anos, no momento em que tudo foi criado, você estivesse no
umbral desse conto de fadas. E tivesse a opção de nascer neste planeta se
quisesse. Não saberia quando ia viver nem quanto tempo passaria aqui, mas,
fosse como fosse, seria apenas questão de alguns anos. Só saberia que, se
decidisse um dia nascer neste mundo, quando chegasse a hora ou, como se diz,
quando ‘o ciclo se completasse’, teria de deixá-lo e a tudo quanto nele existe.
Talvez isso o contrariasse bastante, pois muita gente acha a vida neste grande
conto de fadas tão maravilhosa que chega a ficar com lágrimas nos olhos só de
pensar que isso vai acabar. Tudo aqui pode ser tão bom que dói pensar que um
dia não haverá outros dias”.
Você ficou caladíssimo
no meu colo. E eu disse: “O que você
escolheria, Georg, se um poder superior lhe desse a possibilidade de escolher?
A gente pode imaginar, quem sabe, uma fada cósmica nesta grande e enigmática
aventura. Você teria optado por uma vida nesta Terra, breve ou longa, dentro de
cem mil ou cem milhões de anos?”.
Eu devo ter respirado
fundo duas vezes, antes de continuar falando; então, prossegui com voz firme:
“Ou teria se recusado a participar deste jogo por não poder aceitar as regras?”.
Você continuou em
silêncio no meu colo. Eu queria muito saber no que estava pensando. Você era um
milagre vivo. Achei que o seu cabelo louro como o trigo cheirava a tangerina.
Um anjo de carne e osso, cheio de vida.
Você não tinha
adormecido. Mas não disse nada.
Estou certo de que ouviu
as minhas palavras, inclusive é possível que tenha prestado muita atenção. Mas
eu não tinha a menor ideia do que se passava dentro de você. Nós estávamos tão
perto um do outro. E, mesmo assim, de repente, ficamos terrivelmente distantes.
Eu o abracei com mais
força, talvez você tenha pensado que era para aquecê-lo. Mas eu o traí, Georg,
porque comecei a chorar. Isso eu não queria, e tratei de me recompor o mais depressa
possível. Mas não consegui conter as lágrimas.
Nas últimas semanas, eu
me fiz essa pergunta várias vezes. Teria
optado por uma vida na Terra se soubesse que um dia seria arrancado tão
subitamente daqui, talvez no momento mais feliz da minha existência? Ou será
que teria agradecido e rejeitado de pronto esse jogo absurdo do “dá e toma”?
Porque a gente vem uma única vez a este mundo. É entregue a essa grande
aventura. E então chega um ratinho e o conto de fadas se acaba.
Não, juro que não sei qual seria a minha escolha. Acredito que
teria repelido essas condições. Talvez
respondesse com um delicado “não” à oferta de participar dessa grande aventura,
se fosse apenas em uma visita breve, e talvez o meu “não” nem fosse tão
delicado assim. Pode ser que gritasse que não queria ouvir mais nenhuma palavra
sobre esse maldito dilema. Foi o que imaginei; no momento em que estava na
varanda, com você no colo, tive plena certeza de que recusaria totalmente a
oferta.
Se eu tivesse optado por não meter o nariz nesta grande
aventura, nunca saberia o que estava perdendo. Você entende o que quero dizer?
Para nós, seres humanos, às vezes é muito pior perder uma coisa que amamos do
que nunca ter tido essa coisa. Pense bem: se a garota
das laranjas não houvesse cumprido a promessa de passar seis meses se encontrando
comigo todos os dias quando voltasse da Espanha, para mim seria melhor nunca
tê-la conhecido. Também é assim nos outros contos de fada. Você acha que a Gata
Borralheira teria voltado ao palácio com o príncipe se lhe dissessem que só
poderia passar uma semana lá? O que você acha que ela sentiria se tivesse de
retornar à sua vida de outrora, ao fogão e às cinzas, à madrasta malvada e às
irmãs invejosas?
Agora é a sua vez de
responder, Georg, agora você tem a palavra. Pois foi quando nós dois estávamos
contemplando o firmamento, na varanda, que eu tomei a decisão de lhe escrever
esta longa carta. Aliás, foi justamente no momento em que chorei. E não chorei
só por saber que talvez muito em breve me separaria de você e da garota das
laranjas. Chorei porque você era tão pequeno. Chorei porque nós dois não
podíamos conversar de verdade.
Vou perguntar mais uma
vez. Qual seria a sua decisão se você tivesse a possibilidade de escolher?
Optaria por uma vida breve aqui na Terra, para depois de poucos anos separar-se
de tudo e nunca mais voltar? Ou diria “não, obrigado”?
Você só tem essas
alternativas. É a regra. Se optar pela
vida, também está optando pela morte.
Mas, olhe: prometa que
vai refletir muito antes de responder.
Talvez eu tenha ido
longe demais. Talvez esteja fazendo você sofrer. E talvez não tenha esse
direito. Mas para mim é importantíssimo saber que resposta você daria à minha pergunta,
porque eu sou diretamente responsável pelo fato de você estar aqui. Você não estaria
no mundo se eu tivesse me recusado a ele.
Estou com uma espécie de
sentimento de culpa por haver
contribuído para pôr você neste mundo. De certo modo, eu lhe dei a vida, junto
com a garota das laranjas, é claro. Mas, por outro lado, também somos nós que
um dia tornaremos a tomá-la. Dar a vida
a uma criancinha não significa apenas lhe dar o mundo de presente. Também
significa um dia tomar dela esse presente inconcebível.
Tenho de ser franco com
você, Georg. Pois digo que rejeitaria delicadamente a oferta de uma rápida
viagem à grande aventura. Assim me parece. E se essa também for a sua opinião,
fico com remorso ao pensar na besteira que fiz.
Eu me deixei seduzir
pela garota das laranjas, deixei-me atrair pelo amor, achei irresistível a ideia
de ter um filho. “Onde foi que errei?”, pergunto. Para mim, essa pergunta significa
um conflito brutal de consciência. E ela traz consigo a necessidade de deixar
um pouco de ordem atrás de mim.
Mas, Georg, agora pode
surgir um novo dilema, e um dilema que talvez não seja tão difícil – ou maligno
– quanto o primeiro. Se você responder
que, apesar de tudo, teria optado pela vida, ainda que fosse por um momento
brevíssimo, eu não posso desejar nunca ter nascido.
Desse modo a equação
ainda pode dar certo, desse modo pode ser que se estabeleça um equilíbrio. E
essa, naturalmente, é a minha esperança. Sim, por isso escrevo.
Você não pode responder
diretamente a minha grande pergunta. Mas indiretamente pode. Pode responder
pelo modo como quer viver essa vida que começou quando Veronika, eu e um médico
meio irresponsável brindamos com champanhe à sua chegada, Esse médico do champanhe
era a sua fada protetora, tenho certeza disso.
Agora você pode deixar
de lado esta minha saudação. Agora é a sua vez de viver.
[...]
Georg! Uma última
pergunta ainda: posso mesmo ter certeza de que não há outra existência depois
desta? Posso ficar convencido de que não estarei em algum lugar quando você ler
esta carta? Não, certeza absoluta eu não posso ter. Pois, se o mundo existe,
todos os limites da improbabilidade já foram ultrapassados. Entende o que eu
quero dizer? Já estou tão assombrado com o fato de existir um mundo, que não
tenho lugar para mais assombro se constatar que existe outro depois dele.
Lembro que, há dois
dias, nós passamos algumas horas às voltas com um jogo de computador. Talvez
esse jogo tenha sido especialmente bom para mim, eu estava precisando muito de
algo que me distraísse dos tantos pensamentos que me perseguiam. Mas sempre que
a gente “morria” nesse jogo, aparecia um novo cenário onde recomeçar. Quem
garante que não há um novo “cenário” para a alma? Eu não acredito, palavra que
não. Mas o sonho do improvável tem nome.
Chama-se “esperança.
A Literatura e a vida
Não me
canso de afirmar que a literatura me propõe motivos para mergulhar em questões
existenciais. Todorov, em A Literatura em
Perigo3, discorre belamente sobre essa
relação entre arte literária e vida:
...não posso dispensar
as palavras dos poetas, as narrativas dos romancistas. Elas me permitem dar forma
aos sentimentos que experimento, ordenar o fluxo de pequenos eventos que
constituem minha vida. Elas me fazem sonhar, tremer de inquietude ou me
desesperar.
Penso
que Jostein Gaarder, escritor e professor de Filosofia, escreva ficção (muitos
conhecem seu livro O Mundo de Sofia)
para tornar mais compreensíveis e acessíveis os temas filosóficos, ao
aproximá-los da concretude da vida: assim, fabulando experiências e vivências,
alimenta a reflexão filosófica do leitor. Cito, ainda, Todorov:
Seja por monólogo
poético ou pela narrativa, a literatura faz viver as experiências singulares;
já a filosofia maneja conceitos. Uma preserva a riqueza e a diversidade do
vivido, e a outra favorece a abstração, o que lhe permite formular leis gerais.
É o que faz com que um texto seja absorvido com maior ou menor grau de
dificuldade.
A
você, companheiro/a de leitura, a carta de Jan Olav serviu para refletir ou
argumentar sobre algum aspecto concreto que vive ou viveu? Já se viu às voltas
com indagações como as ali colocadas? Encontrou respostas? Ou, apenas, evita
pensar sobre aquelas questões?
Nós,
humanos, construímos laços amorosos fortes, desde o nascimento. Por isso,
admitamos, é tão difícil encarar a morte, nossa ou de quem quer que seja.
Despeço-me,
com mais um pouco da carta de Jan Olav (grifei o que mais me toca):
Ninguém se despede
chorando da geometria euclidiana nem da tabela periódica dos átomos. Ninguém
derrama uma lágrima que seja por estar se separando da internet ou da tabuada. É de um mundo que nos despedimos, é da
vida, é do conto de fadas e da aventura. E, além disso, temos de nos despedir
de um pequeno número de pessoas que realmente amamos.
Mas
não nos esqueçamos, também, que:
...o sonho do improvável tem nome. Chama-se “esperança.
Meu
abraço.
1 www.folha.uol.com.br/,
23/04/2020.
2 GAARDER, Jostein. A garota das laranjas. São Paulo:
Companhia das letras, 2005.
3 TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro:
DIFEL, 2009.
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