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Munch. O Grito - litogravura |
Você tem medo? Já teve? Tem agora, mais
que antes?
Se tem, de quê? Do presente? Do futuro?
Do isolamento? De doenças? Da perigosa (virose) COVID 19?
De fato, o medo acompanha o homem: é
fator de preservação da vida, é sinal de perigo... “Em
verdade temos medo. / Nascemos escuro”, diz Drummond.
Entretanto, antigamente (confesso, sou
do tempo do “antigamente”), parece-me que não havia tanta desconfiança – nem com relação à vida, nem com
relação ao próximo; era possível, até, olhar nosso vizinho como amigo e
entregar-lhe a chave de nossa casa. Alguns de nós dormíamos de janelas abertas
e deixávamos a porta da frente escancarada, mesmo em cidades mais povoadas.
Hoje, nem em pequenas cidades se vê muito disso. O medo do crime e da violência
cortou-nos essas liberdades.
A esse medo generalizado, soma-se, neste
ano de 2020, o pavor de um inimigo universal, o Novo Coronavírus. Frente a ele,
até os medos antigos, até os provenientes da cidade grande tornaram-se quase
irrelevantes.
Nossa sociedade já viveu outras grandes ameaças
– terrorismo, derrocada financeira de países, epidemias, crises políticas e
morais, catástrofes naturais. Entretanto, parece que todas as tensões
juntaram-se e tornaram-se universais, desencadeadas pela pandemia de COVID 19. Como
ouvi de uma educadora:
“Esse vírus invisível
gerou um medo generalizado e sem fronteiras da morte, [instaurou] insegurança,
gerada pela perda das certezas e pela nossa própria dificuldade e do Estado de
entender e estender causas, de realizar mudanças.”
O medo, agora, nos une. Bem por isso,
comecei perguntando: de que você tem medo?
Às vezes, é difícil até esmiuçar essa
sensação. A insegurança e a angústia aparecem difusas, impregnando-nos cada
pensamento, cada atitude ou falta dela. Ainda a educadora:
"Também, nunca
vivemos momento grave e de crise tão séria e drástica assim. Fomos obrigados a
nos recolher, quando nem sabíamos o que era voltar para nós mesmos, nos
interiorizarmos."
No entanto, aquilo que não compreendemos
muito bem, os artistas delineiam, mapeiam e revelam. Quem não se lembra de O Grito, de Munch, que tão bem escancara
o sentimento de angústia do homem?
Poetas também se debruçaram sobre o
medo. Já citei Drummond e o início de seu poema O medo. Vale a pena deter-me no texto integral. Proponho sua
leitura; após, tecerei alguns comentários.
O medo
A Antonio Candido
"Porque há para todos nós um problema
sério...
Este problema é o do medo."
Antonio Candido, Plataforma de Uma Geração.
Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.
Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.
Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?
Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas
do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.
Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.
E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.
Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.
[ANDRADE,
Carlos Drummond de. A Rosa do Povo, in
Reunião – 10 livros de poesia. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1974.]
O
medo de Drummond
O Medo é dedicado ao crítico e sociólogo
Antonio Candido, que comentara o medo, em texto publicado em 1943. Era o tempo
angustiante da 2ª Guerra Mundial e, no Brasil, tempo do Estado Novo. Como
tantos outros, os dois intelectuais – Candido e Drummond – faziam-se atuantes,
mediante seus escritos corajosos.
O poema (para o qual apresento uma
leitura possível, mas não única, nem definitiva) começa com uma afirmação: “Em verdade temos medo. / Nascemos escuro”.
Note-se, “escuro”, no singular: não somos qualificados
de escuros, mas somos sujeitos que nascem
escuramente, nosso tempo é de
escuridão. E, mais que isso, somos o
próprio escuro, sua essência e concretização viva.
Assim, o eu lírico drummondiano nos
aponta o termo “escuro” em sua conotação de angústia e medo, porque
relacionado, na memória coletiva, à ausência de luz e, em decorrência, à
impossibilidade de enxergar e à insegurança ante o que poderá advir. Mais que
isso, liga tais sentimentos à própria natureza
do homem – que é medo e está por ele cercado:
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.
O mapeamento do medo continua, para
mostrar que tudo é maior que nós e nos vence, pois “somos
apenas uns homens” aos quais até “o amor
faltou” – não somente o amor do
outro, mas também o amor pelo outro,
o que nos torna solitários, afastados dos demais, frios, egoístas, encerrados
em nós próprios:
Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Porém, o eu poético drummondiano não
aceita passivamente o destino que limita e amedronta; que nos torna medrosos,
burgueses, fadados a viver e morrer em conjunto:
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?
Assim, compreende e propõe, como
contrapartida, tomar o próprio medo como apoio e matéria de construção, ainda
que possa produzir objetos díspares e até conflitantes (“carcereiros, edifícios, escritores, este poema”).
É impossível não notar a ironia amarga com
que é feita essa proposição:
Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.
E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
No
entanto, embora compreenda os que se paralisaram pelo medo, o eu lírico escolhe
a ação, consciente dos perigos – vamos para a frente / recuando de
olhos acesos – e sabendo que será em meio ao medo,
nosso e de nossos filhos:
Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.
Enfrentar
e agir; evitar e fugir
Não seria o Drummond combativo, se seu poema propusesse apenas
fugir. Embora revele um mundo aflitivo, porque dominado pelo medo, o eu poético
acaba por sugerir ação e enfrentamento, não inércia.
Em contraponto, quero registrar outro poema sobre o medo,
agora do poeta surrealista português, Alexandre O'Neill.
Assim como Drummond, Alexandre O'Neill
(1924-1986) vivenciou e criticou, poeticamente, o medo gerado pelas amarras de
regimes totalitários e de convenções – sociais, políticas, culturais,
literárias – que tolhem a liberdade do indivíduo.
A maneira de apresentar o quanto o medo é (ou tornou-se) corriqueiro
é a listagem exaustiva de circunstâncias que mostram e/ou são decorrentes do
medo (perceba: não há vírgulas ou pontos).
No poema há apenas um verbo: é a locução verbal “vai ter”, cujo
único sujeito é “o medo”. Esse sintagma, reiterado, reforça que nosso dia a dia
se desenrola sob o comando do medo. (Em meio à leitura, procederei a alguns
comentários, para detalhar tal aspecto.)
O Poema pouco original do Medo
[Aqui, o
medo nas ruas.]
O medo vai
ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo
blindado
de alguns
automóveis
[Aqui, o
medo personificado, no interior de casas e aposentos.]
Vai ter
olhos onde ninguém os veja
mãozinhas
cautelosas
enredos
quase inocentes
ouvidos não
só nas paredes
mas também
no chão
no teto
no murmúrio
dos esgotos
e talvez até
(cautela!)
ouvidos nos
teus ouvidos
[Agora, o medo invade mente, coração e alma;
abala estruturas psíquicas e emocionais, levando o indivíduo a recorrer a
ajudas externas e justificando a aceitação de tudo o que se apresentar. Aí
cabem, até, “poemas originais” e os outros, “como este”; “projetos altamente
porcos” e... “heróis”.]
O medo vai
ter tudo
fantasmas na
ópera
sessões
contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases
corajosas
meninas exemplares
seguras
casas de penhor
maliciosas
casas de passe
conferências
várias
congressos
muitos
ótimos
empregos
poemas
originais
e poemas
como este
projetos
altamente porcos
heróis
(o medo vai
ter heróis!)
costureiras
reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
muitos)
intelectuais
(o que se
sabe)
a tua voz
talvez
talvez a
minha
com certeza
a deles
Vai ter
capitais
países
suspeitas
como toda a gente
muitíssimos
amigos
beijos
namorados
esverdeados
amantes
silenciosos
ardentes
e angustiados
[Após a ampla listagem, vem o resumo do resumo:
“o medo vai ter tudo tudo”.]
Ah o medo
vai ter tudo
tudo
(Penso no
que o medo vai ter
e tenho medo
que é
justamente
o que o medo
quer)
[Ao final,
o que começa como uma espécie de luz no fim do túnel, sugerindo uma saída para
o terror paralisante – “O medo vai ter... quase
tudo” –, termina por tirar toda a ilusão do leitor. Porque, se movimento
houver, será o de fuga, como o de ratos.]
O medo vai
ter tudo
quase tudo
e cada um
por seu caminho
havemos
todos de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos
[Alexandre
O'Neill. Disponível em: www.jornaldepoesia.jor.br/alexan03.html]
Os caminhos
Os dois poemas
lidos sugerem caminhos; se o medo não paralisar, levará a algum movimento: ou ao
enfrentamento, ou à fuga.
Seguramente,
muitos de nós já experimentamos todas essas sensações, e não apenas uma delas:
o terror que inibe a vontade e anula a liberdade de ação; o ânimo de ir
adiante, substituir o medo pela coragem e lutar; ou o impulso para dar
meia-volta e fugir.
Então, qual é / será
a posição de cada um de nós – nesse exato instante e no futuro próximo –, com
tudo o que precisamos enfrentar neste ano de 2020?
No fundo de meu
coração, já respondi: quero acreditar que o medo, ainda que nos deixe
bloqueados no primeiro instante, será o estopim de novas atitudes do ser
humano. Tenho observado isso todos os dias, diretamente, perto de mim, ou
indiretamente, pelos meios de comunicação: ações solidárias que dão testemunho
de respeito e de amor ao próximo; pessoas e grupos criativos, que despertaram
para a premência de mudança nas formas materiais e egoístas de viver e
começaram a desenvolver projetos para o bem coletivo.
Termino com uma
questão instigadora que ouvi um dia desses:
"Nós,
que conseguimos a proeza de parar o mundo (de pararmos a nós próprios, de mudar
os ares e os mares), não conseguiremos olhar para ele de outra forma?"
Deixo meu
abraço, com a esperança de que nosso medo de hoje seja o despertar de nossa energia
transformadora do amanhã.