“Era uma vez uma linda
menina que, mandada pela mamãe, foi levar doces para a vovó, que morava longe e
estava doente...”
Uma história e muitas versões
Chapeuzinho Vermelho, a
mãe, a avó, o lobo, fizeram parte de nossa infância. E é tão penetrante e
emblemático seu enredo-lição (tarefa; cumprimento da tarefa / prêmio; ou não
cumprimento da tarefa / castigo), que a narrativa se perpetuou, ao longo dos
tempos, embora com variações.
Assim, para a Chapeuzinho
de Perrault, há o duro ensinamento de que a desobediência traz castigo
inevitável: desobedecer à mãe causa a morte de avó e neta. Para a personagem de
Grimm, a lição é mais suave: ao castigo pela transgressão – o grande susto de
perder a avó e perder-se na barriga do lobo –, segue-se o perdão a quem se
arrepende, aqui representado pela salvação das duas pelo caçador.
Se se quiser ampliar a
visão do tema, pode-se inferir que, em qualquer das versões, subjaz a conotação
sexual ligada ao par de personagens principais (às vezes mais clara, às vezes
atenuada), ou seja, o risco que corre uma menina-moça ingênua, ao se deixar
enganar pelo lobo-homem, que quer se aproveitar de sua inocência. Por essa via,
o conto-advertência – “não desobedeça” – particulariza-se e centra-se na menina
quase moça, desavisada e deslumbrada com a vida, presa fácil de indivíduos de
má índole.
Na versão de Grimm esse
aspecto é apenas insinuado / indiciado: ante a menina desconhecedora dos
perigos, o traiçoeiro lobo não esconde seu apetite pela “coisinha nova e
tenra”. Ao fim, consegue seu intento, quando Chapeuzinho aproxima-se da cama e
abre as cortinas, onde o agressor a espera:
Era uma vez
uma menina
mimosa, que todo o mundo amava assim
que via, mas mais que todos a amava sua avó. [...] E quando Chapeuzinho
Vermelho entrou na floresta, encontrou-se com o lobo. Mas Chapeuzinho Vermelho não sabia
que fera malvada era aquela, e não teve medo dele.
[...] O lobo pensou consigo mesmo: “Esta coisinha nova e tenra, ela é um bom
bocado que será ainda mais saboroso
do que a velha. [...] Então [Chapeuzinho] se aproximou da cama e abriu as cortinas [...] 1
Em Perrault, repete-se a
ingenuidade de Chapeuzinho e o desejo do lobo matreiro, que fica à espera de
oportunidade em que não vá ser pilhado em flagrante. O encontro final entre
menina e lobo traz à cena com mais clareza (e até com certa rudeza) a situação
do sedutor prestes a atacar sua vítima:
Era uma vez
uma menina que vivia numa aldeia e era a coisa mais linda que se podia
imaginar. Sua mãe
era louca por ela, e a avó mais louca ainda. [...] Ao atravessar a floresta,
ela encontrou o Sr. Lobo, que ficou louco de vontade de comê-la; não ousou fazer isso, porém, por causa
da presença de alguns lenhadores na floresta.
Perguntou a ela aonde ia, e a pobre menina, que ignorava ser perigoso parar
para falar com um lobo, respondeu [...]
O Lobo [...] vendo-a entrar [na casa da avó], disse-lhe, escondendo-se sob as
cobertas: “Ponha o bolo e o potezinho de manteiga sobre a arca e venha
se deitar comigo”. Chapeuzinho
Vermelho despiu-se e se meteu na cama,
onde ficou muito admirada ao ver como a avó estava esquisita [...] 2
Para reforçar o que foi
dito, quero adicionar o texto final ("Moralidade") de uma edição
portuguesa deste mesmo conto. É versão bastante semelhante àquela que usei
ainda agora (exceto pelas expressões típicas do português de Portugal, como se
pode ver pela amostra que se segue):
Era uma vez uma jovem
aldeã, a mais bonita que fosse dado ver [..] Ao passar num bosque encontrou o
compadre Lobo, que tinha muita vontade de comê-la, mas não se atrevia a tal por
causa de alguns lenhadores que estavam na floresta. [...] O Lobo, vendo-a
entrar, disse-lhe enquanto se escondia sob a colcha: 'Põe a bôla e o potinho de
manteiga em cima da masseira e vem deitar-te comigo' [...] Capuchinho Vermelho
despe-se e vai meter-se na cama, onde ficou muito espantada de ver as formas da
avó em camisa de noite [...]
A diferença está no
comentário que finaliza o conto e explicita a advertência sobre o assédio sexual.
Ei-lo:
Moralidade
Vê-se aqui que crianças jovens, sobretudo moças belas, bem feitas e gentis, fazem muito mal em escutar todo o tipo de gente; e que não é coisa estranha que o lobo tantas delas coma. Digo o lobo, porque nem todos os lobos são do mesmo tipo. Há-os de um humor gracioso, subtis, sem fel e sem cólera, que — familiares, complacentes e doces — seguem as jovens até às suas casas, até mesmo aos seus quartos; mas ai! Quem não sabe que estes lobos delicodoces são de todos os lobos os mais perigosos. 3
Vê-se aqui que crianças jovens, sobretudo moças belas, bem feitas e gentis, fazem muito mal em escutar todo o tipo de gente; e que não é coisa estranha que o lobo tantas delas coma. Digo o lobo, porque nem todos os lobos são do mesmo tipo. Há-os de um humor gracioso, subtis, sem fel e sem cólera, que — familiares, complacentes e doces — seguem as jovens até às suas casas, até mesmo aos seus quartos; mas ai! Quem não sabe que estes lobos delicodoces são de todos os lobos os mais perigosos. 3
Guimarães Rosa e sua “nova velha história”
A “Chapeuzinho” (que não
usa chapeuzinho) de Guimarães Rosa nem todos conhecem; mesmo porque é difícil
relacionar seu título – Fita Verde no
Cabelo – à narrativa tradicional, uma vez que não há nem chapéu, nem cor
vermelha.
É exatamente esta
narrativa que eu os convido a ler (ou reler), para depois tecermos alguns
comentários comparativos, com base nas observações feitas acima.
Fita Verde no Cabelo
(Nova velha estória)
(Nova velha estória)
Havia uma aldeia em algum lugar,
nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que
esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam. Todos
com juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde
inventada no cabelo.
Sua mãe mandara-a, com um cesto e
um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era
uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto
estava vazio, que para buscar framboesas.
Daí, que, indo, no atravessar o
bosque, viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum,
desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham
exterminado o lobo. Então, ela, mesma, era quem se dizia: – Vou à vovó, com
cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou. A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele
moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são.
E ela mesma resolveu escolher
tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra
também vinha-lhe correndo, em pós. Divertia-se com
ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em
buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeinhas flores,
princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa. Vinha sobejadamente.
Demorou para dar com a avó em
casa, que assim lhe respondeu, quando ela, toque, toque, bateu:
– Quem é?
– Sou eu… – e Fita-Verde
descansou a voz. – Sou sua linda netinha, com
cesto e pote, com a fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou.
Vai, a avó, difícil, disse:
– Puxa o ferrolho de pau da
porta, entra e abre. Deus te abençoe.
Fita-Verde assim fez, e entrou e
olhou.
A avó estava na cama, rebuçada e
só. Devia, para falar agagado e fraco e rouco,
assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo:
– Depõe o pote e o cesto na arca,
e vem para perto de mim, enquanto é tempo.
Mas agora Fita-Verde se
espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita
verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:
– Vovozinha, que braços tão
magros, os seus, e que mãos tão trementes!
– É porque não vou poder nunca
mais te abraçar, minha neta… – a avó murmurou.
– Vovozinha, mas que lábios, aí,
tão arroxeados!
– É porque não vou nunca mais
poder te beijar, minha neta… – a avó suspirou.
– Vovozinha, e que olhos tão
fundos e parados, nesse rosto encovado, pálido?
– É porque já não estou te vendo,
nunca mais, minha netinha… – a avó ainda gemeu.
Fita-Verde mais se assustou, como
se fosse ter juízo pela primeira vez. Gritou:
– Vovozinha, eu tenho medo do
Lobo!…
Mas a avó não estava mais lá,
sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.4
1 GRIMM, J., GRIMM, W. Os contos de Grimm. Tradução de Tatiana Belinky. São Paulo: Paulus,
1989. [Coleção Lendas e contos]. Disponível em:
memoria.cenpec.org.br/uploads/F1967_140-05-00011%20EPV-2o%20ano%20-%20M%F3dulo3%20(parte).pdf.
2 PERRAULT,
Charles. Contos de Perrault. Tradução
de Regina Regis Junqueira. Belo Horizonte: Villa Rica Editoras Reunidas, 1994.
Disponível em:
memoria.cenpec.org.br/uploads/F1967_140-05-00011%20EPV-2o%20ano%20-%20M%F3dulo3%20(parte).pdf.
3 PERRAULT, Charles. O Capuchinho Vermelho. “Incluído
em 1695 num manuscrito intitulado Contes de ma mère Loye e depois publicado, em
1697, em Contes et histoires du temps passé, Avec des moralités sob o nome
autoral de Pierre Darmancour, filho de Charles Perrault, membro da Academia
Francesa.” Disponível em: home.iscte-iul.pt/~fgvs/CV_Perrault.pdf.
4 ROSA, João Guimarães. Fita Verde no Cabelo.
Disponível em:
rodrigogurgel.com.br/wp-content/uploads/2016/10/Fita-Verde-no-Cabelo-%E2%80%94-G.-Rosa.pdf.
Uma história e muitas
leituras
Toda história de
Chapeuzinho (como tantas outras histórias) comporta mais de uma leitura, ponto
de vista e interpretação. Daí, abordagens filosóficas, psicanalíticas,
moralistas, entre outras. Nem de longe penso em abordar tantos aspectos ou
esgotar um único que seja.
Meu intuito é partilhar,
com o leitor e a leitora, um caminho possível de busca de sentidos que possa,
quem sabe, alargar-se com a procura de outros direcionamentos de leitura. Por
isso mesmo (e até por imposição de espaço), ao comparar o conto de Rosa e os
mais tradicionais, limito meu olhar e meus comentários a alguns pontos.
O próprio fluxo da
narrativa é capaz de nos conduzir a observações interessantes. Para tanto,
vamos mapear a sequência narrativa, passo a passo, detendo-nos em algumas
passagens.
Nessa leitura, peço que observem as marcações em vermelho no texto. (Os
destaques em azul referem-se a aspectos da linguagem do autor, que comento mais
ao final do texto.)
1 Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem
menor, com velhos e velhas que velhavam,
homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam. Todos com juízo,
suficientemente, menos uma meninazinha, a que
por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá,
com uma fita verde inventada no cabelo.
Todos conforme os padrões, menos a menina, “por
enquanto”. Ao leitor, fica, já, a antecipação de mudança do estado primeiro da
personagem – meninazinha e sem juízo. Além do mais, neste início já se nota, em
relação às narrativas de Chapeuzinho Vermelho, uma semelhança – a meninazinha
sem juízo – e uma diferença: uma fita verde, e não um chapéu vermelho, na
cabeça.
Reparem na fita verde “inventada”: neste segundo
adjetivo, há dois níveis de significação: por um lado, a personagem que tem
vontade própria e inventa seu adereço; por outro, uma espécie de recado do
narrador, para lembrar a nós, leitores, que estamos no reino da invenção – e
tudo pode acontecer... até mesmo subverter
o antigo conto, conhecido por tantas gerações.
2 Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó,
que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. Fita-Verde partiu,
sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto
estava vazio, que para buscar framboesas.
Tudo como na ficção tradicional que se conhece: a
mãe, a avó “que a amava”, a aldeia “quase igualzinha. Tudo ficção, “tudo era
uma vez”. Mas devemos nos lembrar que esta narrativa não começou por “era uma
vez”. Tudo ficção, tudo invenção... Tudo pode ser igual ou diferente.
3 Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os
lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham
exterminado o lobo. Então, ela, mesma, era quem se dizia: – Vou à vovó,
com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou. A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele
moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que
a gente não vê que não são.
Assim como é evidente o diálogo com a narrativa
tradicional, também o é a diferença: atentem para as palavras “só” e “mas”. “Só”
marca a presença positiva dos lenhadores. “Mas” indicia, por ausência, a
personagem que deveria estar, como em Grimm, Perrault e outros, mas não está: o
lobo, personagem agressor e causador do conflito. Nesse diálogo por diferença,
a narrativa informa que o percurso narrativo dos contos anteriores de
“Chapeuzinho Vermelho” não é seguido, aqui, pois os lenhadores já haviam matado
o lobo.
Se assim é, o que esperar, então, enquanto conflito
narrativo? Vejamos.
4 E ela mesma resolveu
escolher tomar este caminho de cá, louco e
longo, e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra
também vinha-lhe correndo, em pós. Divertia-se com
ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão,
e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeinhas
flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa. Vinha sobejadamente.
Fita Verde decide por si própria, nenhum lobo malvado
a induz ou seduz. Em relação ao olhar
de encantamento de Chapeuzinho, ela vê / percebe pelo avesso: é a realidade, não a fantasia que vai notando, e que a
diverte: as avelãs que não voam, as borboletas que são simplesmente borboletas,
as flores que são apenas flores; ela é, apenas, uma menina naturalmente deliciada
com a natureza.
5 Demorou para dar com a avó em casa, que assim lhe
respondeu, quando ela, toque, toque, bateu:
– Quem é?
– Sou eu… –
e Fita-Verde descansou a voz. – Sou sua linda netinha, com cesto e pote, com a fita verde no
cabelo, que a mamãe me mandou.
Vai, a avó, difícil, disse:
– Puxa o
ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te
abençoe.
Fita-Verde
assim fez, e entrou e olhou.
A avó
estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado e fraco e rouco, assim, de ter
apanhado um ruim defluxo. Dizendo:
– Depõe o
pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto
é tempo.
Mas agora Fita-Verde se espantava, além de
entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo
atada; e estava suada, com enorme fome
de almoço.
“Enquanto é tempo”, frase dita pela avó, oferece ao
leitor a pista de que algo está para mudar. Por seu lado, a conjunção “mas”,
que introduz a reação da menina, contrapõe sentimentos aflitivos à exuberância
e alegria da caminhada pelo bosque.
Assim também, a adversativa indica o verdadeiro conflito
da narrativa que, ao contrário daquele exterior, de Chapeuzinho Vermelho (o
encontro com o lobo), mostra-se interior à personagem: é o encontro com a dor e
o desconforto, a queda na realidade. A personagem perdeu a fita verde inventada
– ou seja, o laço que a prendia ao mundo mágico da infância – e se percebe
suada e com fome. Espanta-se e entristece-se: o espanto é ligado ao estado da
avó, enquanto a tristeza é relacionada à perda (da fita metafórica, por
enquanto).
Seguem-se as clássicas perguntas e respostas entre
menina e avó – com a diferença de que, agora, é mesmo a avó, e não o lobo
travestido:
6 Ela perguntou:
–
Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!
– É porque
não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta… – a avó murmurou.
–
Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!
– É porque
não vou nunca mais poder te beijar, minha neta… – a avó suspirou.
–
Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado, pálido?
– É porque
já não estou te vendo, nunca mais, minha netinha… – a avó ainda gemeu.
Fita-Verde
mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira
vez. Gritou:
– Vovozinha,
eu tenho medo do Lobo!…
Mas a avó
não estava mais lá, sendo que demasiado ausente,
a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.
A solução do
conflito aí está: ter juízo pela primeira vez, ainda que a personagem tente, de
alguma forma, apegar-se ao estado infantil (medo do lobo), anterior ao
amadurecimento que se inicia com perdas e vivência da morte.
Observem: em
Guimarães Rosa, não há mais o conto de advertência para a menina-moça ter cuidado
com lobo; há o ensinamento indefectível da vida, ela mesma, com seu desenrolar que
gera o amadurecimento. É a perda da fita (índice da meninazinha sem juízo) e,
mais importante, a perda da avó (do apoio, da proteção, do afeto) que, por meio
da dor, vai transformando a menina em mulher. De ora em diante, o “medo do
lobo” terá que ser enfrentado por ela própria, sem recorrer a outrem.
Podemos ir um
pouco mais longe em nossa leitura e confrontar as cores dos adereços das
personagens – em Grimm e Perrault, por um lado, e em Rosa, por outro.
O vermelho,
comumente associado a perigo no inconsciente coletivo, reforça em Chapeuzinho o
risco, a ameaça: ela é a criança frágil, vulnerável ao assédio, inclusive
sexual.
O verde, cor
ligada à natureza, aponta a inevitabilidade do
que é, sem possibilidade de mudança: o ciclo natural da existência, suas
transformações que geram espanto e dor e, especialmente, a passagem da vida à
morte.
Nova velha história
Este é o
subtítulo dado por Rosa, e agora podemos compreendê-lo.
Como vimos,
usando como gancho e estrutura a narrativa tradicional, Rosa cria outra
personagem e outra história que se distanciam da original, embora mantendo
pontos de contacto com ela.
Nessa
paráfrase, não é apenas o que é narrado que se renova. É, e talvez
principalmente, a própria linguagem, poética e lúdica, tipicamente roseana, com
suas metáforas, onomatopeias e jogos sonoros multiplicadores de sentido
(exemplos nos destaques em azul, no texto).
É como se,
paralelo ao “recado” do narrador para a menina-moça, houvesse outro, do próprio
escritor, ao leitor. Para aquela, que vive sua infância descuidada, fica o
aviso: brinque, sim, mas saiba que sua ingenuidade acabará com a chegada da
maturidade, pois a vida segue seu curso.
Para nós
leitores, que nos conformamos com nosso mundinho de palavras conhecidas e
repisadas, a recomendação é um pouco diferente. Com seu narrar e linguajar
“inventadeiros”, Rosa parece nos aconselhar: não se prendam demais ao óbvio,
tenham coragem de reinventar, brinquem – seja na linguagem, seja na vida.
Porque, na ficção e na realidade, palavra e vida seguem seu curso...
inelutavelmente.
Meu abraço
amigo.