Outro dia, deixei meu pensamento ir onde quisesse.
E ele, embora solto, podendo viajar por temas e lugares sossegados, não se
conseguiu desvencilhar de questões éticas. Como se me dissesse que ainda não era
chegada a hora do descanso, começou a formular hipóteses de comportamento para
o ano que chega.
Pronto, lá se foi a placidez de um dos poucos
momentos em que eu me dispus a relaxar. E, já que parecia inevitável o trabalho
de encadeamento de uma ideia na outra e mais outra, aceitei o jogo apresentado.
Meu pensamento, então, insistiu em relacionar os
acontecimentos pátrios presentes a comportamentos coletivos. Daí, passou a identificar,
no coletivo, esta, aquela e mais aquela atitude individual. Depois, fez o
caminho inverso, para observar como cada ação individual pesava no resultado de
ações coletivas... Concluindo...
Verdade: andamos mal, enquanto pessoas e enquanto
grupos, neste bendito 2018 que se vai.
Verdade: relacionamo-nos mal uns com os outros – ou
por cegueira, ou por soberba, ou por nos julgarmos vítimas, ou por acreditarmo-nos
donos da verdade.
Verdade: se continuarmos do mesmo modo, nosso
mundinho particular e aquele mundão em que vivemos se verá cada vez mais
confuso...
E assim por diante.
Bem, se tais ideias angustiantes se repetissem ad infinitum, meu sono não viria nem no
dia seguinte. O remédio era fechar a minha discussão comigo, buscando soluções
para as angústias apontadas.
Ordenadamente, coloquei-me algumas proposições do
tipo: “se, então”: se olharmos mais em volta, poderemos entender melhor os
motivos alheios; se conseguirmos agir menos em proveito próprio, poderemos
harmonizar ações grupais; se olharmos mais nos olhos do outro, poderemos,
então, enxergar sua alma; se...
Tantos “se, se, se” naturalmente me levaram ao
famoso “If” de Rudyard Kipling. Procurando
o poema, lembrei-me haver, dele, duas versões em português, que trazem algumas
sutis diferenças. Leiam, analisem e concluam pela que mais lhes agradar.
A
tradução de Guilherme de Almeida
É a tradução mais conhecida e que mais aparece em
compêndios de poesia, revistas, jornais e até em antigos almanaques.
Se
Se és capaz de manter a tua calma quando
Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa;
De crer em ti quando estão todos duvidando,
E para esses, no entanto, achar uma desculpa;
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
E não parecer bom demais, nem pretensioso;
Se és capaz de pensar – sem que a isso só te atires,
De sonhar – sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires
Tratar da mesma forma a esses dois impostores;
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste,
E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
E refazê-las com o bem pouco que te reste;
Se és capaz de arriscar numa única parada
Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
Resignado, tornar ao ponto de partida;
De forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe,
E a persistir assim quando, exaustos, contudo
Resta a vontade em ti que ainda ordena: "Persiste!";
Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes
E, entre reis, não perder a naturalidade,
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
Se a todos podes ser de alguma utilidade,
E se és capaz de dar, segundo por segundo,
Ao minuto fatal todo o valor e brilho,
Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
E o que mais – tu serás um homem, ó meu filho!
[Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u92310.shtml.]
A
tradução de Gil Pinheiro
Eu a conheci há pouco tempo. De certa forma, o tom
de altiva resignação do texto de Guilherme de Almeida é substituído por uma
postura mais ativa: não esmorecer, em vez de resignar-se; dar as mãos e
enfrentar, em vez de defender-se. Vejam se concordam com minha visão.
Se
Se não perdes a cabeça e o tempo é tal
Que a loucura inflama todos contra ti;
Ou, caindo no descrédito geral,
Sem melindres continuas crendo em ti;
Se consegues sem desânimo esperar,
Sem rancores com rancores rebater
Nem mentiras com mentiras rechaçar,
Sem com isso sábio ou santo querer ser;
Se liberto da ilusão podes sonhar
E pensar sem chafurdar no pensamento;
Se ao sucesso e ao insucesso sabes dar
Sempre o mesmo indiferente tratamento;
Se consegues suportar que tuas idéias
Virem lábia de patifes contra os tolos;
Ou se a queda de tua obra mal pranteias
E começas a reerguer os teus tijolos;
Se consegues apostar tudo que tens,
Em uma única cartada, e então perder,
Sem jamais chorar à míngua de teus bens
Nem diante o recomeço esmorecer;
Se consegues coração, nervos e músculos
Empenhar além da força que te assiste,
Até nada mais restar senão, minúsculos,
Os apelos da vontade, que persiste;
Se não perdes entre a plebe a distinção
E, entre reis, um certo quê de popular;
Se consegues dar as mãos – co’s pés no chão –
E inimigos – ou amigos – enfrentar;
Se, segundo por segundo, os teus minutos
Dão à volta do ponteiro honesto trilho,
Tua é a terra inteira e todos os seus frutos
E, acima de tudo, és um homem, meu filho.
[PINHEIRO, Gil. Três poemas de
Kipling. Cadernos de Literatura em Tradução, n. 5. Disponível em www.revistas.usp.br/clt/article.]
Utopia?
Sim, de certa forma, o poema tem como base visões humanistas utópicas. Mas são elas que nos levam
para diante, que não nos deixam fraquejar ou desistir. Termino com as palavras
de Bauman, em entrevista à Revista Cult, sobre a utopia. Que nos sejam
inspiradoras, neste 2019:
Para que a utopia nasça, é preciso duas condições.
A primeira é a forte sensação (ainda que difusa e inarticulada) de que o mundo
não está funcionando adequadamente e deve ter seus fundamentos revistos para
que se reajuste. A segunda condição é a existência de uma confiança no
potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo, a crença de que “nós,
seres humanos, podemos fazê-lo”, crença esta articulada com a racionalidade
capaz de perceber o que está errado com o mundo, saber o que precisa ser
modificado, quais são os pontos problemáticos, e ter força e coragem para
extirpá-los. Em suma, potencializar a força do mundo para o atendimento das
necessidades humanas existentes ou que possam vir a existir.
Na era pré-moderna, a metáfora que
simboliza a presença humana é a do caçador. A principal tarefa do caçador é
defender os terrenos de sua ação de toda e qualquer interferência humana, a fim
de defender e preservar, por assim dizer, o “equilíbrio natural”. [...] Já no
mundo moderno, a metáfora da humanidade é a do jardineiro. O jardineiro não assume
que não haveria ordem no mundo, mas que ela depende da constante atenção e
esforço de cada um. Os jardineiros sabem bem que tipos de plantas devem e não
devem crescer e que tudo está sob seus cuidados. Ele trabalha primeiramente com
um arranjo feito em sua cabeça e depois o realiza. Ele força a sua concepção
prévia, o seu enredo, incentivando o crescimento de certos tipos de plantas e
destruindo aquelas que não são desejáveis, as ervas “daninhas”. É do jardineiro
que tendem a sair os mais fervorosos produtores de utopias. Se ouvimos
discursos que pregam o fim das utopias, é porque o jardineiro está sendo
trocado, novamente, pela ideia do caçador.
[Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/entrevista-zygmunt-bauman/.]
Meu abraço, renovado.
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