Passamos por momentos tensos e difíceis,
neste ano. Concordam, meus amigos?
Penso que alguns responderão que nem
tanto, pois todo ano é assim; outros, como eu, afirmarão que 2018 foi mais
pesado, difícil de carregar: nós, brasileiros, confrontamo-nos com nossas
próprias contradições e angústias; até com a qualidade e sinceridade de nossos
relacionamentos; até, ainda, com nossa própria identidade enquanto cidadãos,
sociedade e povo.
Por tudo isso, decidi-me por um texto
bem-humorado para marcar este Natal. Trago Drummond, com sua ótica inteligente
e brincalhona, mas, ao mesmo tempo, agudamente crítica. Seu “Papai Noel”
comparece em cena brasileira e com hábitos modernos – mas, digamos, não muito
recomendáveis...
Papai Noel às Avessas
Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são
praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois
da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas
resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério
do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos
espertos,
achou um queijo e comeu.
Depois tirou do bolso um cigarro que não
quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas
barbas postiças
(no Brasil os Papais-Noéis são todos de
cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças.
Papai entrou compenetrado.
Os meninos dormiam sonhando outros
natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de
brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de
celuloide.
Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo
tudo
no interminável lenço vermelho de
alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou
tanto
que lá dentro mulheres elefantes
soldados presidente brigavam por
causa do aperto.
Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de
Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a
cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos
fundos.
Na horta, o luar de
Natal abençoava os legumes.
[ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In Reunião – 10
livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.]
Ao leitor não devem ter passado
despercebidos os toques mordazes de Drummond, em sua história de um Natal
adaptado à realidade brasileira. Aponto alguns.
Em primeiro lugar, o cenário. Não é um Natal mágico, este que o poeta
descreve. Nada se ilumina ou ganha vida; ao contrário, as “coisas” continuam, conformadamente, a ser simples coisas
no mistério do Natal.
Em segundo lugar, a personagem. O
velhinho não pode ser chamado de “bom”, mas pode, com justeza, ser chamado de
esperto: entra sorrateiro – pela porta dos fundos; cauteloso que nem marido depois da
farra – e logo vai fartar-se, na cozinha, com o queijo que encontra
(é bem o rato-gatuno roubando um queijo). Em seguida, quase acende um cigarro, e
não o faz, apenas por medo de incendiar as falsas barbas – as quais, aliás,
apontam para o hábito de importarmos costumes estrangeiros, como o Papai Noel
barbudo e bem agasalhado dos países frios.
Agora, o enredo, em seu ponto principal.
O clímax (toda narrativa tem um clímax e, aqui, temos exatamente uma narrativa
poética1) vem
com a ação no quarto dos meninos, onde e quando o Papai Noel, em vez de
presentear, rouba todos os brinquedos. Pronto, está, de vez, desfeita a magia, e
destruído o mito do bom velhinho.
Alongando um pouco mais nossa leitura,
poderemos ver a confirmação do avesso do mito em outros detalhes. Notem que a
barba postiça não é mais que um disfarce para não mostrar a face verdadeira – a “cara
raspada” – de quem tem algo a esconder.
Os próprios brinquedos (qual a criança
que não os espera?) são presentes indesejáveis, pois os meninos sonham com outros natais.
Releiam esta estrofe e reparem na conjunção adversativa, além da falta de
pontuação, que parece embolar todos os objetos nos sapatos. Todos, menos o presidente de
república, destacado pela
conjunção aditiva, mas rebaixado a ser de celuloide:
Os meninos dormiam sonhando outros
natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de
celuloide.
O emaranhado todo parece mais um
pesadelo que um sonho, e um pesadelo que retrata uma realidade na qual todos,
indiscriminadamente (coisas, pessoas, autoridades), são postos a brigar no
mesmo “saco”. Que não é propriamente saco,
mas um grande “lenço de alcobaça”, que se adivinha não ser muito limpo, por sua
utilidade, pois é “também [...] chamado [de] lenço tabaqueiro, por ser usado
principalmente pelas pessoas que cheiravam rapé (tabaco em pó), para limpar a
secreção nasal provocada pela inalação da substância”2.
A crítica, a esta altura, parece mais
dura e menos sorridente. Parece que também o poeta usou o disfarce brincalhão, a palavra velada, para apontar problemas mais sérios...
O eu poético só deixa como verdade o
nascimento de Cristo. No mais, não há anjos nem cânticos. E o luar de Natal
abençoa, tão só e prosaicamente, os legumes da horta.
Bem, nesse caso, onde está o Natal com
leveza, que prometi? – devem estar-se perguntando os leitores. E eu respondo: a leveza está
na crítica certeira e séria, mas sem ferocidade raivosa e aniquiladora. Ridendo castigat mores... lembram-se?
1 Ou, se quiserem, um poema narrativo.
2 Mais detalhes em Wikipedia:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Len%C3%A7o_de_Alcoba%C3%A7a.
Um
convite
Drummond, em outro poema, revela-se
ainda crítico, mas um pouco nostálgico, ao descrever a modernização do Natal de
sua época. (Lembremos: Drummond viveu de 1902 a 1987, e o poema foi publicado
em livro de 1930.)
Que tal, após a leitura, cada um de
nós meditar – e, quem sabe, escrever – sobre seu próprio sentimento, em relação
à data? Indiferença? Expectativa? Melancolia? Nostalgia?...
Ah!, e não deixem de notar como a
repetição da palavra “Natal”, isolada nos versos, faz lembrar o toque do sino
natalino. (Há outros detalhes interessantes que deixo à leitura de cada um.)O Que Fizeram do Natal
Natal.
O sino longe toca fino,
Não tem neves, não tem
gelos.
Natal.
Já nasceu o deus menino.
As beatas foram ver,
encontraram o coitadinho
(Natal)
mais o boi mais o
burrinho
e lá em cima
a estrelinha alumiando.
Natal.
As beatas ajoelharam
e adoraram o deus
nuzinho
mas as filhas das beatas
e os namorados das
filhas,
mas as filhas das beatas
foram dançar
black-bottom
nos clubes sem presépio.
[ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In Reunião – 10
livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.]
Com meu abraço
fraterno, desejo a todos os amigos
um bom – e verdadeiro! – Natal.
um bom – e verdadeiro! – Natal.
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