Em 29/12/2015,
comentei e publiquei alguns poemas de Drummond. Ao relembrar seu nascimento (o
poeta itabirano, brasileiro e universal nasceu em 29/10/1902), permito-me
repetir um daqueles poemas (e o comentário), pela sua atualidade e pertinência
ao hoje brasileiro e mundial. Na época, escrevi:
A insegurança – nacional e
universal – em que vivemos torna bastante atual o poema que Drummond publicou
em 1945. O leitor é defrontado com a palavra medo, inúmeras vezes
repetida, como uma sirene a alertar para o perigo da fixação do terror.
No entanto, que sejamos
conduzidos, tal como o eu poético sugere, por caminhos mais
abrangentes que aquele da angústia paralisante, pois: “O medo, com sua física, / tanto produz: carcereiros, / edifícios,
escritores, / este poema; outras vidas”.1
Referia-me
ao poema que vem a seguir.
O medo
Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.
Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.
Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São
Paulo.
Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?
Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas
do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.
Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.
E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.
Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.
Nós e nossos filhos, herdeiros do
medo...
Deixo aqui minha esperança de que o medo, que tudo é capaz de produzir,
também produza ações afirmativas e vidas solidárias.
Porque,
se “em verdade temos medo”, nossa realidade coletiva pode e deve fazer brotar a
flor da vida construtiva. Uma flor que, mesmo sendo, por enquanto, mirrada e feia,
tem em seu miolo-coração a força das sinceras intenções e dos grandes destinos.
Como aquela cantada por Drummond, em outro lugar: É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo
e o ódio.
E não podemos
nos esquecer do alerta drummondiano, contido em outro de seus poemas:
Minha
vida, nossas vidas
formam
um só diamante.
Abraços
fraternos, esperançosos e sem medo.
1 Os poemas aqui citados encontram-se em: ANDRADE,
Carlos Drummond de. Antologia Poética.
Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1963; e Reunião
– 10 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
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