Peço que leiam comigo:
“O futuro do deslocamento. O que aconteceu com o
futuro do Brasil? Antigamente ele era róseo e promissor. Hoje ele se mostra
feio e carregado de vícios.
“É só você abrir um jornal — qualquer jornal — para
ler: "O ministro da Fazenda irá anunciar a nova taxa de juros". Irá
anunciar?”
O título da matéria,
associado ao pequeno trecho lido e, especialmente, ao momento brasileiro atual/ao
contexto brasileiro, certamente levará o leitor a pensar em tema social,
econômico, político; porém, em nosso caso, o trechinho é apenas o início da
crônica em que Ricardo Freire comenta “outros tempos”... mas verbais.
O uso dos conhecimentos de
mundo do leitor (o país e seus problemas) e o emprego ambíguo da palavra
“tempo” transformam-se, aqui, em inteligente forma de captar-lhe a atenção. A
questão está, sim, ligada ao contexto, só que linguístico / expressivo.
Explicando, o escritor
avalia, na crônica, usos de tempos verbais atualmente bastante comuns entre usuários
de nossa língua. Proponho sua leitura, a qual nos dará ocasião de refletir um pouco sobre norma e uso linguísticos. 1
Sinais dos Tempos (Verbais) 2
1 O futuro do deslocamento. O que aconteceu com o
futuro do Brasil? Antigamente ele era róseo e promissor. Hoje ele se mostra
feio e carregado de vícios.
2 É só você abrir um jornal — qualquer jornal —
para ler: "O ministro da Fazenda irá anunciar a nova taxa de juros".
Irá anunciar? Por que não o velho e coloquial "vai anunciar", ou o
sintético "anunciará"? Por que diabos o ministro precisa
"ir" para "anunciar"? Até onde eu entendo, "o ministro
irá anunciar" significa que o pobre coitado vai acordar, chamar um táxi,
percorrer toda a distância entre sua casa no Lago Sul e a Esplanada dos
Ministérios, e só então revelar a nova taxa de juros à imprensa. Eu fico
cansado só de pensar.
3 E quando se diz que o "governo irá combater
o desperdício"? Já vejo centenas de aviões sendo fretados para o governo
ir até o desperdício que precisa tanto ser combatido — e só aí já se jogou fora
todo o dinheiro que ele queria economizar.
4 "O Palmeiras irá jogar com seu time
completo" até faz algum sentido quando a partida é em La Paz, pela
Libertadores. Mas se o jogo é no Parque Antártica contra a Matonense, me
desculpem, mas o time completo não tem que ir a lugar nenhum.
5 Pelo fim de tantas idas e vindas inúteis! Abaixo
o futuro do deslocamento!
6 O mais-que-perfeito. Assim como o talher de
peixe, trata-se de um arcaísmo que teima em não desaparecer. É o cúmulo da
arrogância: se a perfeição já é uma coisa inatingível, imagine um estado
mais-que-perfeito!
7 E o mais incrível é que o mais-que-perfeito brota
do nada, aparecendo em textos que você mesmo escreveu, numa mágica que só os
revisores são capazes de operar. Já perdi a conta das vezes em que um singelo
"tinha recusado" escrito por mim apareceu publicado como
"recusara". Recusara? Eu? São calúnias, meritíssimo!
8 Quero deixar claro que eu não fumo, nunca uso
drogas e, sobretudo, jamais estivera, vira ou merecera. Tenho cá meus defeitos,
mas daí a dizer que eu fora, que eu falara ou que eu levara já vai uma grande
distância. Se você vir que eu beijara, pode apartar que é briga!
9 Fica combinado assim: o Ministério da Educação irá
anunciar que, com exceção de tomara, pudera, quem me dera, Anhanguera e
Guanabara, o mais-que-perfeito vai estar acabando a partir de segunda-feira que
vem.
1 Numerei os parágrafos, para
melhor localização do que se irá comentar.
2 Desconheço
o texto integral. Eis sua referência, como a encontrei: FREIRE, Ricardo. The best of Xongas. São Paulo: Mandarim, 2001.
(Fragmento). Disponível em: www.analisedetextos.com.br/.
Considerações
Estamos
acostumados a ouvir e repetir que há pelo menos dois modos básicos de expressão
linguística: um, mais formal e submetido a mais rígidas convenções gramaticais,
nós o reservamos para ocasiões que exigem certo apuro de linguagem. Outro, bem
mais informal e livre, é o que usamos em nosso dia a dia.
Partindo
dessa observação, é possível dividir o texto em duas partes distintas: a
primeira, em que se critica um modo informal e livre de expressão; e a segunda,
em que se advoga exatamente... a liberdade e modernização, por assim dizer, da
língua.
Assim,
do primeiro ao quinto parágrafo, o escritor mostra-se rigoroso em relação ao
uso do verbo “ir” para a formação do futuro. Seu argumento baseia-se no sentido
primeiro – de movimento – assumido pelo termo, como se vê nos dicionários:
“passar, mover-se ou deslocar-se de um lugar para outro, por movimento próprio,
impulso imprimido, qualquer mecanismo, ou com auxílio de transporte ou veículo”,
como diz o nosso Aurélio.
Com
base nessa acepção, o cronista classifica como incorreção seu uso em locução
verbal que indique ação futura, ou seja, condena o (tempo) “futuro feio e
carregado de vícios”, a que chama de:
O futuro do deslocamento. [...] O ministro da Fazenda irá anunciar a nova taxa de
juros". Irá anunciar? Por que não o velho e coloquial "vai anunciar",
ou o sintético "anunciará"? Por que diabos o ministro precisa
"ir" para "anunciar"?
(Os grifos, acima e mais adiante, são meus.)
Se nos lembrarmos que a linguagem coloquial é mais flexível e
oferece maior liberdade ao falante, pode-se flagrar certa intransigência do
cronista: porque, ao mesmo tempo em que aceita a liberdade já consolidada, isto
é, a construção analítica para o futuro (“o velho e coloquial ‘vai anunciar’”),
rejeita a liberdade atual, ou seja, a modernização
do “irá anunciar”.
Saudosismo, talvez? Parece que não... Observem que, após terminar
seu arrazoado com um brado (“Abaixo o futuro do deslocamento!”), muda o foco,
para condenar justamente... um arcaísmo (v. parágrafos 6 a 8) – ou quase
arcaísmo, uma vez que ainda se faz presente na linguagem formal:
O mais-que-perfeito. Assim como o talher de peixe, trata-se de um
arcaísmo que teima em não desaparecer.
Trata-se, aqui, da forma
sintética do mais-que-perfeito, o que não é dito, mas se depreende dos
exemplos oferecidos. Humor e ironia, já presentes na primeira parte, agora se
ampliam:
Recusara? Eu? São calúnias,
meritíssimo! [...] Tenho cá meus defeitos, mas daí a dizer que eu fora, que eu falara ou que eu levara
já vai uma grande distância. Se você vir que eu beijara, pode apartar que é briga!
Falta comentar a brincadeira das palavras que rimam, mas não são
verbos, do último parágrafo. É como se o cronista assumisse (só que não...) uma
espécie de vale-tudo, ao qual não falta uma cutucada no gerundismo, popular
entre falantes de nossa língua:
Fica combinado assim:
o Ministério da Educação irá anunciar que, com exceção de tomara, pudera, quem
me dera, Anhanguera e Guanabara, o mais-que-perfeito vai estar acabando a
partir de segunda-feira que vem.
Esses elementos de critica bem-humorada são quase um argumento por
absurdo, que levam o leitor a debruçar-se sobre seu próprio modo de falar, para
analisá-lo e, quem sabe, tornar as escolhas linguísticas mais conscientes. Pensando
bem, é interessante como
a compreensão que temos da língua, ao falar, ouvir, escrever e ler pode variar,
conforme o ângulo sob o qual se avaliam as construções linguísticas empregadas,
não acham?
Até
outro dia.
Um
abraço.