Mês de agosto, mês do folclore, recorri a uma contadora de histórias especialíssima – Clarice Lispector – e à lenda que, um dia, reescreveu.
(Triste lenda, que ainda serve de contundente advertência a nós, nestes tempos.)
(Triste lenda, que ainda serve de contundente advertência a nós, nestes tempos.)
O
negrinho do pastoreio
Como é mês de agosto e faz um pouco de
frio, vou contar uma história que aconteceu nos pampas do sul do país, talvez
em Pelotas. Começa não muito bem, pois nesses pampas havia um homem muito rico,
mau e sovina: nem restos de comida ele dava. Seu filho era um guri que herdara
sua ruindade. Esqueci de dizer que a
história se passa no tempo da escravidão. E vou falar de um escravinho mais
negro que carvão chamado exatamente de Negrinho. Não conhecia pai ou mãe e
dizia que Nossa Senhora era sua madrinha. Apanhava do patrão e do filho que não
era brincadeira. O homem ruim tinha um cavalo baio muito bonito e veloz, e um estancieiro
vizinho desafiou-o dizendo: será que esse cavalo baio é bom na corrida? Já se
sabe quem ia montar o baio sem sela: o Negrinho, é claro. Mas infelizmente o
baio perdeu na corrida e o Negrinho levou uma surra que eu vou te contar. E
como se não bastasse, mandaram-no tomar conta da tropilha do patrão. Era de
noite, Negrinho estava todo machucado e com medo dos bichos que pudessem se
achegar. Mas Nossa Senhora ajudou-o a adormecer. Eis senão quando ouviu-se um
tiro de espingarda no ar: os animais se assustaram e se dispersaram pelas
campinas. O estampido partira do filho do patrão. Mas quem levou nova surra foi
o Negrinho. Mandaram-no procurar os cavalos. Enquanto isso, a noite estava ainda
mais fechada. E não se via cavalo nenhum. Aí o Negrinho pegou um toco de vela
que iluminava sua madrinha no oratório do homem ruim. E correu pelas coxilhas
montado no baio, à procura dos cavalos dispersos. Aconteceu um pequeno milagre:
cada vez que a vela abençoada pingava cera no chão, milhares de velinhas iam
aparecendo para iluminar a noite. Com esse grande auxílio, o Negrinho encontrou
os cavalos. E cansado adormeceu. O homem ruim tinha raiva até do sono do
Negrinho e mandou um outro escravo dar chicotadas no garoto e colocá-lo junto
de um formigueiro, só para chatear o menino.
Depois o patrão quis ver o moleque que
devia estar todo roído de formigas. Mas junto do formigueiro estava o Negrinho
perfeitamente sadio, com o baio e a tropilha. Espantado, o homem ruim mais
espantado ficou, porque viu junto do escravinho a Nossa Senhora protegendo o
Negrinho. O homem ruim se ajoelhou de medo e não de bondade. Quanto ao
Negrinho, montado no baio, seguia corrida com a tropilha para sempre. Para
sempre quer dizer que até hoje continua a corrida. E quem quiser, pode vê-lo. Quero
dizer: se quiser muito mesmo. Só que durante uns dias de cada ano Negrinho some.
Deve estar conversando com suas amigas formigas.
Qualquer gaúcho conhece esta história
e muitos acham que o Negrinho ajuda a encontrar o que se perdeu, seja objeto,
seja amor, seja felicidade sumida. Será que a moral desta história é que o bem
sempre vence? Bom, nós todos sabemos que nem sempre. Mas o melhor é a gente ir-se
arranjando como pode e dar um jeito de ser bom e ficar com a consciência
calminha.
[LISPECTOR, Clarice. Como Nasceram as Estrelas: Doze lendas brasileiras. Editora Nova Fronteira, 1996.]
Repararam?
O negrinho do pastoreio era "chamado exatamente de Negrinho": um nome que não é bem nome, porque não identifica, não individualiza, não valoriza a pessoa em si.
Nome genérico, como tantos outros usados por quem se julga superior, para marcar raça, cor, origem, classe social, condição física (tanto quanto "pobre", "gringo", "coxo", "estranja", "forasteiro", etc.) e manter distância entre pessoas, ainda hoje.
Será que algum dia aprenderemos a lição da humildade, de que somos todos UM, e que só ações compassivas e generosas melhorarão nossa espécie?
Cético, Millôr Fernandes flagrou muito bem o ridículo presente no ser humano: "Dizem que quando o Criador criou o homem, os animais todos em volta não caíram na gargalhada apenas por uma questão de respeito".
Meu abraço, embora envergonhado e dolorido.
Repararam?
O negrinho do pastoreio era "chamado exatamente de Negrinho": um nome que não é bem nome, porque não identifica, não individualiza, não valoriza a pessoa em si.
Nome genérico, como tantos outros usados por quem se julga superior, para marcar raça, cor, origem, classe social, condição física (tanto quanto "pobre", "gringo", "coxo", "estranja", "forasteiro", etc.) e manter distância entre pessoas, ainda hoje.
Será que algum dia aprenderemos a lição da humildade, de que somos todos UM, e que só ações compassivas e generosas melhorarão nossa espécie?
Cético, Millôr Fernandes flagrou muito bem o ridículo presente no ser humano: "Dizem que quando o Criador criou o homem, os animais todos em volta não caíram na gargalhada apenas por uma questão de respeito".
Meu abraço, embora envergonhado e dolorido.
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