Agosto, mês de desgosto... Que nada, isso
é folclore!
Isso mesmo: agosto, mês do folclore, hoje
em dia pouco lembrado, a não ser em escolas. Nosso ambiente intelectualizado e
tecnológico não se importa com o tema...
No entanto, os saberes da cultura
popular tradicional englobam histórias, maneiras de plantar e colher, pratos
regionais, artes, simpatias, remédios caseiros e inúmeros hábitos incorporados
à nossa vida cotidiana.
Ainda hoje acreditamos (e fingimos não
acreditar...) que passar embaixo da escada dá azar; que pular fogueira de São
João dá sorte; que levantar da cama tem de ser, sempre, com o pé direito, para
o dia correr bem; que pular sete ondinhas, na passagem do ano, assegura
felicidade o ano todo. Nós, citadinos, recontamos lendas urbanas, preservamos
as festas juninas e o carnaval. Recebemos visitas com o cafezinho nunca
rejeitado, degustamos gostosamente a feijoada, o arroz de carreteiro, o vatapá,
a couve à mineira... Ufa! Impossível citar tudo!
Há alguns dias, eu, paulista, relatei
a uma amiga baiana a simpatia que fazíamos na adolescência, quando chovia
seguidamente na praia ou nos dias de passeios e jogos ao ar livre. Era preciso
espantar a chuva indesejada! Então, colocávamos um ovo no chão e ficávamos em
volta, cantando para Santa Clara: “Santa Clara clareou / São Domingo alumiou /
Vai chuva, vem sol / Vai chuva, vem sol”.
Havia quem colocasse o ovo no muro da
casa; havia quem colocasse apenas a clara do ovo: essas variações de conduta espelhavam
o aprendizado familiar, grupal ou regional.
Minha interlocutora conhecia – e
usava, em sua terra – um modo diferente de pedir a Santa Clara, ainda mais que
o objetivo era bem outro: secar a roupa lavada. Quero partilhar essa e outras
duas receitas que ouvi dela, com a certeza de que levarão a memória do leitor
até experiências parecidas e igualmente interessantes. O reconto é de minha
responsabilidade, com algumas falas que anotei de minha amiga, que preferiu não
ter o nome publicado.
Receitas
que “dão certo”
Para
cessar a chuva
Quem vive em zona rural, sabe muito
bem como o sol é amigo da lavadeira. Quando ele não vem, o jeito é recorrer a
Santa Clara. Para isso, é preciso arranjar uma barra de sabão virgem (isto é,
sem uso) e colocá-lo na ponta de um pau de cerca, recitando:
“Santa Clara, eu preciso secar minhas
roupas e você precisa lavar as suas. Eu lhe dou o sabão pra você lavar as suas,
e você me dá o sol, pra eu secar as minhas.”
Diz a informante: “Já fiz em São
Paulo, com o sabão em cima do muro, e deu certo!”
Para
curar terçol
Em muitas regiões, essa inflamação dos
olhos é conhecida como “três sol” – o que parece explicar a própria simpatia. É
preciso esfregar três caroços de
milho no terçol, sendo um em cada sexta-feira, ao nascer do sol, dizendo: “Assim
como este sol nasce, há de sair este três
sol dos meus olhos.”
Explicando melhor: “Tem que fazer três
sextas-feiras em seguida: cada sexta, um caroço de milho. E jogar o caroço
fora, no sentido que o sol nasce.”
Para
menino cambota
Se um menino nasce de pernas tortas
(cambota, cambaio, cambuta, de “perna de xis”), é bom esperar as festas de São
João ou de São Pedro. Nessas datas, nas cidades ou no terreiro da roça, é
“plantada” (fincada, na verdade) uma pequena árvore, com tronco razoavelmente
grosso, num buraco ao centro de onde se realizará a festa.
Na primeira sexta-feira depois que
acabar a festa, tira-se a árvore do buraco e coloca-se a perninha torta da
criança no buraco, por três vezes. “Enfiar bem, mas o tanto que o menino
aguente, sem machucar. Demora uns meses. No ano que vem, na festa, a perna já
está certinha.”
E
por falar em receitas...
De passagem, mais acima, toquei no
costume brasileiro de receber visitas com o nosso cafezinho. Volto a ele.
Do cultivo à colheita e aos rituais do
consumo em horas determinadas, o café está presente em nossa cultura. Em certos
recantos, está, até, na medicina popular. Há quem diga que, para aliviar dor de
cabeça, o melhor é fazer um mistura de manteiga e café e aplicá-la à testa.
Minha avó materna jurava (e já ouvi de outras pessoas, ainda hoje) que beber
café era um santo remédio para sua dor de cabeça...
E quanto ao prazer da bebida em si?
Na década de setenta, Maria Stella
Libânio Christo, especialista em culinária, pesquisadora sábia e atenta,
escreveu o livro Fogão de Lenha, com
receitas e costumes alimentares da família mineira. Mais que simples
catalogação de receitas, a escritora mostra a maneira como este ou aquele tipo
de alimento era preparado ou servido, além da visão de autores consagrados,
sobre a culinária mineira (Autran Dourado, Cora Coralina, Guimarães, Rosa,
Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava e outros). Do livro, extraí este texto
de Aníbal Machado, que ilustra bem o espírito do café entre nós:
Ó Estrangeiro, ó peregrino, ó passante de pouca esperança – nada
tenho para te dar, também sou pobre e essas terras não são minhas. Mas aceita
um cafezinho.
A poeira é muita, e só Deus sabe aonde vão dar esses caminhos. Um
cafezinho, eu sei, não resolve o teu destino; nem faz esquecer tua cicatriz.
Mas prova... Bota a trouxa no chão, abanca-te nesta pedra e vai
preparando o teu cigarro...
Um minuto apenas, que a água já está fervendo e as xícaras já
tilintam na bandeja. Vai sair bem coado e quentinho.
Não é nada, não é nada, mas tu vais ver: serão mais alguns
quilômetros de boa caminhada... E talvez uma pausa em teu gemido!
Um minutinho, estrangeiro, que teu café já vem cheirando...
[MACHADO, Aníbal. Cadernos de
João. Rio de Janeiro, 19557. In: LIBÂNIO Christo, Maria Stella. Fogão de Lenha. Petrópolis: Ed. Vozes,
1977.]
Da
importância do saber popular
A multiplicação de saberes expõe a
vasta experiência de cada povo e de cada região. Conhecê-los torna-nos mais
ricos em conhecimento e mais profundos em humanidade. Como disse Leonardo Boff:
Há um casamento que ainda não foi feito no Brasil: entre o saber
acadêmico e o saber popular. O saber popular nasce da experiência sofrida, dos
mil jeitos de sobreviver com poucos recursos. O saber acadêmico nasce do
estudo, bebendo de muitas fontes. Quando esses dois saberes se unirem, seremos
invencíveis.
Ah! Não me animo a terminar sem a voz
saborosa de Maria Stella Libânio:
Na chapa quente do fogão, o bule passa o dia vigilante, sempre
solícito a mais um gole.
Café na hora e sem adoçar
previamente, é só quando há visita de cerimônia. A caneca esmaltada, então,
cede lugar à xícara de louça ou porcelana, e o açucareiro soleniza o gesto
hospitaleiro.
[...]
Na cidade ou no campo, e, Minas, há sempre um aviso não escrito:
cheguem-se, a casa é sua!
Uai! Desculpem alguma
coisa...
[LIBÂNIO CHRISTO, Maria Stella. Fogão
de Lenha. Petrópolis: Ed. Vozes, 1977.]
Companheiro leitor, que tal
brindar-nos com algum costume ou receita de seu conhecimento, que revele um
pouco mais de nossa multifacetada cultura?
Fico à espera e envio meu abraço.
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