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Norman Rockwell |
Naquela
ocasião, comentei, de sua longa e bem-humorada crônica, a introdução e as
partes I e II, referentes: à escolha de palavras no dicionário (tal qual
ingredientes para uma sopa, que escolhemos no mercado); às condições dessa
escolha: “ritmo” e “adequação”, adaptados à receita da sopa – não, leitor,
perdoe! – do texto.
A parte III
ficou, também, ali registrada, com sua abordagem da pontuação como o condimento
das palavras, responsável, conforme o cronista, por conferir sabor peculiar a cada
texto.
Resta a quarta
e última parte, um pouco mais extensa que as anteriores e que, talvez, exija
atenção mais cuidadosa. Vamos, pois, a ela.
(Aqui, como na
matéria anterior, assinalo em cor os trechos melhor ligados ao que comento.)
Receita1
(Continuação)
Parte IV: Prosa e poesia
[A notar, neste início, um
preconceito comum, em nossas escolas e sociedade: a prosa é considerada mais
“consistente” que a poesia, e a esta convém dedicarem-se... o apressado ou o
preguiçoso! Quanto à mancha do texto na página, com a qual o escritor brinca, não é tão
desimportante assim, não; ao contrário, é pista de leitura valiosa,
principalmente aos que estão em processo de alfabetização.]
Tendo os
ingredientes e os temperos todos à frente, é chegado um momento muito
importante, a hora de se decidir que tipo de texto se quer escrever. Há somente
dois, prosa e poesia. É muito fácil diferenciar um do outro: os de poesia são fininhos e as frases se colocam umas sob as
outras, formando pequenos blocos. Ao final de cada um desses tijolinhos,
pula-se uma linha e começa-se um novo. Os textos de prosa são mais
consistentes, e as linhas ocupam toda a extensão da página, desde a margem
esquerda até a direita. Se o autor é preguiçoso ou está terrivelmente atrasado
para algum compromisso, convém fazer uma poesia. Nesse
caso, vale a pena seguir alguns passos.
[O passo indicado abaixo ensina
que bastam interjeições, exclamações e reticências, para dar ao texto certo ar
poético. Desse modo, pelo avesso, o cronista expõe criticamente um modo de
pensar bastante comum entre maus poetas e... maus leitores.]
1 — Volte ao dicionário e
busque algumas interjeições como Oh! e Ah!. Não economize também nas
reticências, exclamações e interrogações. São pequenos detalhes, mas muito
úteis. Mesmo a mais simples das frases, se
antecipada por uma dessas palavrinhas e seguida por esses pontos, ganhará um
novo alento, uma vaguidão que facilmente será confundida com profundidade,
como você pode comprovar no exemplo a seguir:
Antes:
Havia casas azuis.
Havia casas azuis.
Depois:
Oh! Havia casas... Azuis?!
Oh! Havia casas... Azuis?!
[Agora, o texto em prosa. O que
vem a seguir faz-nos lembrar a quantificação das redações escolares, com o
número mínimo e máximo de linhas e parágrafos.
[Por outro lado, além de
recordar os “pontos essenciais” que indicou nas partes anteriores, ao dizer,
sobre as palavras, que “não é preciso lavá-las nem deixá-las de molho”, o cronista reforça que se trata de receita,
com regras e passos prontinhos – ou seja, não é preciso pensar muito,
pois, atualmente, sentido, coerência, clareza parecem não estar mais em moda.]
Caso o futuro autor disponha
de mais tempo e motivação, e deseje escrever um texto em prosa, não encontrará
grandes dificuldades. Basta pegar todas as palavras previamente selecionadas e
dispô-las sobre a página. Não é preciso lavá-las nem deixá-las de molho. Tente sempre mesclar
as pequenas, médias e grandes. Lembre-se de que os pontos, as exclamações e
interrogações vão sempre ao final das frases, e os acentos em cima das
palavras. A cada seis ou sete linhas, termine uma frase no meio da folha e
comece outra embaixo, depois de um espaço. Isso se chama parágrafo.
Os antigos pergaminhos da
Checoslováquia demonstram alguma preocupação quanto à importância do sentido e
da clareza em um texto. As
últimas pesquisas norte-americanas, no entanto, provam que essas questões são
absolutamente irrelevantes. Uma rápida visita a uma biblioteca demonstrará que
há textos dos mais absurdos impressos por aí, e que nem a clareza nem o sentido
são as características que fazem deles clássicos ou novelinhas baratas,
exemplares da Academia Brasileira de Letras ou calço para mesas.
Por último, cabe destacar
que um texto, ao contrário de uma sopa, não alimenta, não esquenta, nem pode
ser servido com conchas. Assim como até hoje não tive notícias de nenhuma ONG
ou instituição beneficente que saia pelas madrugadas frias distribuindo textos
e cobertores para mendigos (embora não seja uma má idéia). Não podemos deixar
de mencionar que um texto resulta mais prático que uma sopa, pois pode ser
guardado na estante da sala e não precisa ser resfriado nem muito menos
congelado.
Apesar das considerações
anteriores, é impossível provar a superioridade de um texto sobre uma sopa ou
vice-versa. Mesmo porque, é possível encontrar tanto letras em boas sopas,
quanto sopas nas boas letras. Assim sendo, vamos ficando por aqui. Afinal, os
textos e as sopas, os mercados e os dicionários, as palavras grandes, os
ingredientes, eu, você, os cientistas norte-americanos e os pergaminhos da
Checoslováquia nos assemelhamos numa única coisa: todos, em algum momento,
chegamos ao fim.
1PRATA,
Antonio. Disponível em: http://www.releituras.com/antonioprata_receita.asp.
Por último...
Como Antonio
Prata, chego também ao fim. E se, por último, ele conclui pela menor utilidade
e maior praticidade do teto em relação à sopa, eu termino por afirmar que um
bom texto e uma boa sopa são igualmente ótimas companhias para estes dias
friozinhos (ou nem tanto) de inverno.
Um abraço
aquecido a todos.
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