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Norman Rockwell |
Receitas há muitas, e para
muitas atividades. Há, inclusive, quem acredite em fórmulas precisas para se
escrever um texto, e há quem as postule, desde os ingredientes (melhores temas,
gêneros textuais mais adequados, tipos de orações, etc.), até o modo de fazer
(distribuição das ideias, emprego da pontuação e tamanho dos parágrafos,
por exemplo).
Antonio Prata brinca com a
ideia, na crônica Receita. Depois de sua
leitura, talvez cheguemos à conclusão de que o principal de sua “receita” está,
mesmo, na ironia e no exagero de seu dizer, que aponta aspectos negativos e,
sutilmente, encaminha direções positivas.
Proponho conhecer tal
“receita”, que o autor divide em “partes”, como se verá pelos subtítulos.
(Destaquei em cores meus
comentários e os trechos comentados do texto.)
Receita1
[Leitor, repare na crítica mais ou menos velada à banalização
e uniformização, presente neste trecho.]
Fazer um texto não é
difícil. Como tudo na vida, basta que sigamos um método. Depois de muitos
estudos sobre o assunto, tendo consultado desde os mais ancestrais pergaminhos
ciganos da Checoslováquia até as últimas pesquisas científicas
norte-americanas, juntei conhecimento suficiente para produzir um pequeno
tratado sobre o tema. Se o publico aqui não é por
vaidade ou capricho, mas porque acho que todo conhecimento deve ser compartido.
Dessa forma, tenho esperança, chegará o dia
em que todo o saber humano poderá ser reunido e centralizado em um único
programa de computador, ou software – que é o termo correto – e vendido a
preços módicos nas bancas de jornal, postos de gasolina, ou virá grátis nas
compras acima de 50 reais nos supermercados Mambo (*). Aí vai, portanto, a minha modesta contribuição.
(*) Promoção válida apenas para as lojas Mambo em São Paulo (capital), Rio
de Janeiro e Belo Horizonte. Macapá, Acre e Roraima: que se danem!
Como escrever um texto
[Aqui, a simplificação negativa.]
Assim como para fazer uma
sopa é preciso, antes de mais nada, escolher os ingredientes, para escrever um texto é necessário, primeiramente,
selecionar as palavras que vamos usar. Se para os ingredientes da sopa
vamos ao mercado, para encontrarmos as palavras
recorremos ao dicionário.
Algumas considerações
desnecessárias (porém interessantes)
[Com sutileza e em meio à brincadeira, o cronista, ao valorizar
a antiguidade para a dicionarização de um vocábulo (“ser velho é condição sine
qua non”), faz-nos pensar no peso de cada palavra que usamos, resultante dos
muitos sentidos adquiridos, ao longo do tempo, nos vários textos em que se fez
presente.]
O dicionário é superior ao
mercado em muitos aspectos. Em primeiro lugar, porque no dicionário o preço das
palavras não cresce a cada dia – como ocorre com os legumes no mercado –, posto
que todas são de graça. Ademais, os dicionários podem ser guardados na estante da
sala, o que seria impossível de se fazer com um mercado – não por sua forma,
muitas vezes retangular como os dicionários, mas devido ao tamanho (mais
provável seria guardar a estante da sala no mercado, mas isso seria inútil
tendo em vista que nosso objetivo não é dar cabo da estante e sim escrever um
texto). Há uma diferença básica entre os
mercados e os dicionários: se nos primeiros os produtos entram novos e saem
assim que fiquem velhos, no segundo não se encontra um só artigo novo, pois ser
velho é condição sine qua non para estarem ali.
Apesar das considerações anteriores, é
impossível provar logicamente a superioridade de um mercado sobre um dicionário
ou vice-versa. Prova disso é que podemos tanto encontrar dicionário em um bom
mercado, como mercado em um bom dicionário. Assim sendo, deixemos de lado essas
comparações inúteis e voltemos ao tema em questão: como escrever um texto.
Agora sim, como
escrever um texto, parte I: Ritmo
[Principalmente em texto poético
– e, muitas vezes, em grandes discursos –, o ritmo concorre para o sentido e
para prender o leitor, despertando-lhe emoções ou capturando-o com
argumentação. Entretanto, aqui, Prata vai apontar não exatamente para o ritmo,
mas, digamos, para o que não é ritmo. Melhor, para o que não é
importante enquanto ritmo: a métrica pela métrica, o ritmo sem função
significativa. Ou, ainda melhor: para o equilíbrio entre palavras, mas apenas
segundo sua extensão – não importando a sonoridade, o sentido, a adequação ao
texto. E o faz, detalhando passos e técnicas “necessárias”, com a aparente gravidade
de um especialista.
[Mais além, detalha “dramáticas”
ferramentas e suportes da escrita, como condição para se conseguir determinado
efeito – o que é verdadeiro, apenas em parte...]
Tanto os pergaminhos ciganos
da Checoslováquia como os cientistas norte-americanos estão de acordo em um
ponto: um texto deve ter ritmo. Por isso, uma vez
aberto o mercado, perdão, o dicionário, é importante ter em mente que um bom
escrito leva um número equivalente de palavras pequenas, médias e grandes.
Um método infalível na hora de separar as palavras é, sempre que escolhermos
uma curta, como chá, lua ou oi, buscarmos imediatamente uma comprida, como
halterofilismo, mononucleose ou antropomorficamente.
Assim que você sentir que já
tem em mãos um bom número de palavras curtas e longas — isso depende do tamanho
do texto que quiser escrever —, parta para a busca de um número igual de
palavras médias, tais como sudorese, abobado ou alicate. Aconselha-se anotar
essas palavras num papel, com lápis ou caneta, ou datilografá-las num
computador ou máquina de escrever, de acordo com as condições infraestruturais
de cada um. (O texto final, no entanto, poderá ser escrito de muitas outras
maneiras, como com sangue nas paredes, com canivete
num tronco de árvore ou com um arco de violoncelo nas areias de Jericoacoara,
dependendo não só das condições infraestruturais como do efeito desejado.
Isso fica a cargo do autor.)
Parte II: Etiqueta
ou bom senso
[As palavras usadas têm que ser adequadas ao que se quer
dizer: é o que o cronista aborda a seguir. No entanto, sabemos que a adequação
não é mera formalidade, como brinca o cronista, mas implica no uso de termos
justos e necessários para o que se quer dizer.]
Se para uma sopa de batatas
precisamos de muitas batatas e para uma sopa de beterraba muitas beterrabas, para um texto triste precisamos de palavras tristes, para
um texto audacioso de palavras audaciosas e para um texto semierótico de
palavras semieróticas. Se o autor tem em vista
um texto fúnebre, por exemplo, não cairão bem as palavras lantejoula ou
meretrizes, assim como num convite de casamento dificilmente se poderá usar a
palavra excremento (apesar de, todo o apelo que a rima possa ter). É sempre bom
observar essa pequena, porém importante, formalidade da escrita.
Parte III: Pontuação
[A pontuação é tratada como o tempero da comida... A
afirmativa não deixa de ter sua lógica, pois a pontuação, ajudando a formar
blocos de sentido, é elemento importante para a compreensão do que se lê. Por
outro lado, o que a crônica faz, ironizando, é a crítica aos que usam
aleatoriamente os sinais de pontuação, ou acreditam que vírgula, ponto, etc.
são pausas para o leitor respirar e tomar fôlego... Deixo ao leitor apreciar e
julgar as “dicas” dadas pelo cronista, especialmente as que assinalei.]
Nesta altura, o
futuro autor já tem consigo um bom número de palavras, harmoniosamente
divididas entre curtas, médias e longas, anotadas em alguma superfície de
celulose ou cristal líquido. Chegou a hora de condimentar essas palavras. Os
pontos são no texto o que os temperos são para a sopa, e é importante saber
usá-los. Para cada
cinco palavras, em média, o autor deverá ter uma vírgula. Para cada dez, um
ponto. Para cada 15, uma interrogação e/ou uma exclamação.
Algumas dicas:
para um texto mais picante, acrescente muitas exclamações. Nunca use muitas
interrogações se o texto se destina a um grande público. Por
último, evite as crases, os tremas e o ponto-e-vírgula, pois são de sabor muito
forte e devem ser usados com parcimônia, assim como o gengibre ou o curry na
culinária.
1PRATA,
Antonio. Disponível em: http://www.releituras.com/antonioprata_receita.asp.
Leitor...
A
receita vai adiante. Mas penso que, por hoje, já estamos bem aparelhados para
começarmos a pensar em nossa escrita, segundo a receita dada...
Continuarei
em outra data. Até mais.
Abraço.