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Maternidade - Di Cavalcanti |
Ainda é maio, e acabamos de passar pelo dia das Mães.
Comercial, é verdade, não adianta
negar; mas, ao mesmo tempo, a data desperta velhos afetos e lembranças
esquecidas. Aliás, embora frequentemente instigados pela insistência do apelo comercial,
é bastante alentador que ainda consigamos resgatar laços umbilicais e, nessas
homenagens às mães, ter nossos bons sentimentos aguçados e nossas boas
intenções retomadas.
Comercial, sim, hoje mais que ontem.
No entanto, hoje como ontem, haverá seres sensíveis que se inspirem na dimensão
da maternidade para compartilhar bons pensamentos e realizar obras meritórias. E
como nosso mundo anda precisando disso!
Houve e haverá, também, músicos, pintores,
poetas – uma infinita gama de artistas – para expressar as trocas afetivas que
fluem entre mães e filhos. Os poetas,
principalmente, arquitetam falas, imaginam diálogos reveladores de toda a gama
de alegrias e angústias envolvidas nessa particular relação. Ando
revisitando-os, nestes dias, e trago um pouco dessa conversa íntima, em
criações de escritores portugueses contemporâneos1. O de hoje é de
Ana Luísa Amaral.
1 O poema aqui registrado está
disponível em www.citador.pt/poemas, site de poesia que recomendo.
Voz
materna – a lição
Ana Luísa Amaral nasceu em Lisboa, em
5 de Abril de 1956. É poeta, tradutora e professora de Literatura e Cultura
Inglesa e Americana.
Em seu poema Carta à minha filha, o eu lírico traz, pela voz da mãe, que recorda
o olhar de sua filha quando criança, a fila
como metáfora da vida: a linha cronológica, com o suceder de antes e depois.
Esta visão primeira, fácil e mais ou
menos previsível, a mãe retoma e amplia, como que a dar à filha lições de vida
e para a vida. Em seu olhar – mais complexo, porque mais experiente –
surgem, em conjunto, amenidades e doçuras, por um lado, e perigos e dores por
outro. Em meio, o desejo materno de preservar a filha de sofrimentos, como se
lê aqui:
Porque te amo, queria-te
um antídoto
igual a elixir, que te
fizesse grande
de repente, voando, como
fada, sobre a fila.
A última estrofe resume os aspectos negativos e positivos: a vida como fogo
destruidor e pesadelo, mas também como planta (bolbo) que cresce e se
desenvolve, se bem cuidada.
Carta à minha filha
Lembras-te de dizer que
a vida era uma fila?
Eras pequena e o cabelo
mais claro,
mas os olhos iguais. Na
metáfora dada
pela infância,
perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e
de quem se seguia
e porque se seguia, ou
da total ausência
de razão nessa cadeia em
sonho de novelo.
Hoje, nesta noite tão
quente rompendo-se
de junho, o teu cabelo
claro mais escuro,
queria contar-te que a
vida é também isso:
uma fila no espaço, uma
fila no tempo
e que o teu tempo ao meu
se seguirá.
Num estilo que gostava,
esse de um homem
que um dia lembrou Goya
numa carta a seus
filhos, queria dizer-te
que a vida é também
isto: uma espingarda às
vezes carregada
(como dizia uma mulher
sozinha, mas grande
de jardim). Mostrar-te
leite-creme, deixar-te
testamentos, falar-te de
tigelas – é sempre
olhar-te amor. Mas é
também desordenar-te à
vida, entrincheirar-te,
e a mim, em fila descontínua
de mentiras, em carinho
de verso.
E o que queria dizer-te
é dos nexos da vida,
de quem a habita para
além do ar.
E que o respeito inteiro
e infinito
não precisa de vir
depois do amor.
Nem antes. Que as filas
só são úteis
como formas de olhar,
maneiras de ordenar
o nosso espanto, mas que
é possível pontos
paralelos, espelhos e
não janelas.
E que tudo está bem e é
bom: fila ou
novelo, duas cabeças
tais num corpo só,
ou um dragão sem fogo,
ou unicórnio
ameaçando chamas muito
vivas.
Como o cabelo claro que
tinhas nessa altura
se transformou castanho,
ainda claro,
e a metáfora feita pela
infância
se revelou tão boa no
poema. Se revela
tão útil para falar da
vida, essa que,
sem tigelas, intactas ou
partidas, continua
a ser boa, mesmo que em
dissonância de novelo.
Não sei que te dirão num
futuro mais perto,
se quem assim habita os
espaços das vidas
tem olhos de gigante ou
chifres monstruosos.
Porque te amo, queria-te
um antídoto
igual a elixir, que te
fizesse grande
de repente, voando, como
fada, sobre a fila.
Mas por te amar, não
posso fazer isso,
e nesta noite quente a
rasgar junho,
quero dizer-te da fila e
do novelo
e das formas de amar
todas diversas,
mas feitas de pequenos
sons de espanto,
se o justo e o humano aí
se abraçam.
A vida, minha filha,
pode ser
de metáfora outra: uma
língua de fogo;
uma camisa branca da cor
do pesadelo.
Mas também esse bolbo
que me deste,
e que agora floriu,
passado um ano.
Porque houve terra,
alguma água leve,
e uma varanda a
libertar-lhe os passos.
Deixo ao leitor e à leitora outras
descobertas de texto tão rico. Por exemplo, a passagem do tempo pelos cabelos
da filha; o(s) sentido(s) de “tigela”; a relação entre a fila e o novelo
(porque, na organização da linha, intromete-se a dissonância do novelo: “fila ou novelo, duas cabeças tais num corpo só”);
e, ainda as filas, quando relacionada a “pontos
paralelos, espelhos e não janelas” (4ª estrofe).
Meu abraço.
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