Nos
tempos de predomínio do jornal impresso, Drummond voltou sua atenção para o
processo de criação da notícia – do fato à impressão, passando pela escrita de
urgência (“a mão nervosa”) do repórter, a fim de garantir o
“furo” de reportagem:
Poema do jornal
O fato ainda não acabou de acontecer
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensanguentada grita.
Ladrões arrombam o cofre.
A polícia dissolve o meeting.
A pena escreve.
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensanguentada grita.
Ladrões arrombam o cofre.
A polícia dissolve o meeting.
A pena escreve.
Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.
[ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia. In Reunião – 10 livros de
poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.]
Com a matéria pronta, é hora de se
deixar embalar pela “doce música
mecânica” que vem da impressão do jornal – e o espaço em branco entre a penúltima e última linha
configura uma espécie de suspiro de alívio e de satisfação pela tarefa
cumprida.
Drummond vê poesia no processo de
criação do jornal: poematiza, tematiza
poeticamente uma tarefa que, em si, é até banal, talvez porque o acontecimento
– o fato a ser relatado – não o seja, pois que envolve vidas (muitas vezes, as nossas próprias).
Ontem como hoje, não há como e por que
ficar indiferente: principalmente se merecer primeira página ou destaque em
rádio e TV, lá iremos nós, leitores, dar toda atenção ao fato noticiado – novo,
ou continuação de um antigo – que acorda sentimentos e mobiliza opiniões. Por
outro lado, a reação de quem lê (ou ouve, ou vê, ou assiste) é diretamente
proporcional ao modo como o acontecimento afeta o pequeno universo (pessoal,
emocional, social, religioso, político, etc.) de cada um.
É proporcional, também, à forma pela
qual cada um de nós se relaciona com os outros seres, tempos e espaços: posturas
diferentes conduzem a percepções diferentes; assim, olhar amplamente ao redor é
bem outra coisa que olhar apenas para si...
Um poema (talvez pouco conhecido) de
Cecília Meireles, Jornal, longe,
ilustra o olhar, digamos, individualista. Nele, o eu lírico parece ser
indiferente aos acontecimentos e preferir o refúgio em seu mundinho sereno.
Vamos
à sua leitura, antes de mais comentários.
Jornal, longe
Que
faremos destes jornais, com telegramas, notícias,
anúncios, fotografias, opiniões...?
Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra:
e o sol empalidece suas letras infinitas.
Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens?
Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.
De dia, lemos na flor que nasce e na abelha que voa;
de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado.
Aqui, toda a vizinhança proclama convicta:
"Os jornais servem para fazer embrulhos".
E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.
anúncios, fotografias, opiniões...?
Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra:
e o sol empalidece suas letras infinitas.
Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens?
Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.
De dia, lemos na flor que nasce e na abelha que voa;
de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado.
Aqui, toda a vizinhança proclama convicta:
"Os jornais servem para fazer embrulhos".
E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.
[MEIRELES, Cecília. In Mar Absoluto. Disponível em: http://www.citador.pt/poemas/jornal-longe-cecilia-meireles]
"Os
jornais servem para fazer embrulhos": alienação? Sob esse ângulo, a
criação da sensível e ética Cecília pode parecer, no mínimo, polêmica – pois,
em seu poema, os jornais trazem notícias graves, das quais o eu lírico quer
distância.
Contudo,
aprofundemos a leitura, como se fôssemos repórteres à cata de detalhes. O quando (do poema e do eu) é um tempo de
guerra, documentado pelos jornais. O onde
(do poema e do eu) nos é dado pela quarta estrofe: não o campo de batalha, mas
o campo serenado; portanto, longe da violência bélica, “longe do mundo e dos
homens”, perto da natureza:
De dia,
lemos na flor que nasce e na abelha que voa;
de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado.
de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado.
Flor,
abelha, terra, céu, estrelas, campo: configura-se a “áurea mediocridade” que
Horácio canta em suas odes: a vida simples e livre de preocupações pesadas, do
bom e ingênuo homem do campo. Voltemos, então, ao “longe do mundo e dos homens”,
que aparece na terceira estrofe:
Que
faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens?
Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.
Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.
O
homem do campo parece fundir-se à natureza; melhor dizendo, parece ser natureza – distanciando-se, assim,
do “mundo”, e diferenciando-se dos “homens” que sobrecarregaram o mundo de
tensões.
Contudo,
imerso nesse universo ameno e protegido, no qual o que importa é unicamente a
leitura e vivência do mundo natural, o eu poético não parece ter sucumbido à
alienação. Ao contrário, ele retrata e vive a tranquilidade, mas, ao mesmo
tempo, presentifica e avalia, pela leitura, aquilo a que chama de “recado de
loucura”: telegramas, notícias, anúncios, etc.
Não
deixemos de notar, também, a visão subjetiva presente na segunda estrofe. A
referência explícita, aí, é à passagem do tempo (folhas secas e letras
“empalidecidas”); mas, por trás, o leitor percebe a melancolia (o empalidecer)
do próprio eu lírico, ao ler sobre a guerra sem fim (“longos relatos”; “letras
infinitas”).
Pensando a alienação
Um
poema tem o poder de deflagrar sentidos múltiplos, ambíguos e até
contraditórios, segundo o tipo de leitura que se faz. Desse modo, o poema de
Cecília pode representar a visão de um eu
descolado do real, ou pode ser a visão de um eu que se permite pesar e pintar duas realidades conflitantes,
possíveis no mesmo tempo e em espaços diferentes; e, até, revelar a angústia e
perplexidade ante a guerra e o desejo de fuga ao sofrimento, sem, no entanto
perder-se totalmente da realidade.
A
verdade é que tanto quem escreve como quem lê sobre um fato interpreta-o
segundo sua particular visão de mundo, como ficou dito antes. Essa visão
contagia as intenções de leitura ou de escrita: ler para inteirar-se de
acontecimentos, para buscar apoio às suas opiniões, para buscar emoções ou
diversões; escrever para relatar, para denunciar, para mostrar seu pensamento,
para conquistar leitor.
O próprio poema de Drummond, aqui registrado,
mostra a notícia a serviço do jornal,
que dela vive e se alimenta, podendo inclinar seu relato para a objetividade ou
para a subjetividade.
Afinal,
há vários modos de aproximar-se ou afastar-se da realidade; de respeitá-la, ou
não. A quem escreve, é possível até distanciar-se e ver com frieza os fatos
mais graves e, até, brincar com a dor do outro. A atitude paralela, do lado do
leitor, seria deixar-se levar acriticamente pelo que lê, sem comparar textos e
opiniões, e sem refletir.
Em
nossos tempos de superficialidade, muitas vezes, a veiculação de acontecimentos
(quaisquer que sejam) não significa mais que isto: da parte do leitor, simples
modo de encher o tempo; da parte do jornal, bom modo de ganhar leitores. Enfim,
parece que estamos nos tornando cada vez mais individualistas e indiferentes. E,
da indiferença à intolerância, há poucos passos, infelizmente...
Não
é o que vemos nos dias de hoje? O que importa é a vantagem sobre o outro, é a
supremacia do que eu penso e sinto... O debruçar-se sobre a dor, compreendê-la
e amenizá-la não existirá, se o outro for meu adversário, meu inimigo, meu
desconhecido...
É
aí que faz sentido a escrita poética, que vai mais fundo e consegue fazer-nos
refletir sobre as muitas formas de ler o sentimento humano, por trás da estrutura
física aparente. Porque a dor, mesmo a menor, “não sai no jornal” (como diz o
bom samba que fecha esta matéria), mas pode, muito bem, sair viva e contundente
da pena de um escritor sensível, como Mário Quintana, no poema que trago a
seguir.
O
olhar afetuoso
Pequena crônica policial
Jazia no
chão, sem vida,
E estava
toda pintada!
Nem a
morte lhe emprestara
A sua
grave beleza…
Com fria
curiosidade,
Vinha
gente a espiar-lhe a cara,
As fundas
marcas da idade,
Das
canseiras, da bebida…
Triste da
mulher perdida
Que um
marinheiro esfaqueara!
Vieram uns
homens de branco,
Foi levada
ao necrotério.
E quando
abriam, na mesa,
O seu
corpo sem mistério,
Que linda
e alegre menina
Entrou
correndo no Céu?!
Lá
continuou como era
Antes que
o mundo lhe desse
A sua maldita
sina:
Sem nada
saber da vida,
De vícios
ou de perigos,
Sem nada
saber de nada…
Com a sua
trança comprida,
Os seus
sonhos de menina,
Os seus
sapatos antigos!
[QUINTANA, Mario. Os melhores poemas de Mario Quintana. São
Paulo: Global, 1995.]
O poema contrasta, à “fria curiosidade”, o desamparo da
mulher machucada e enfeada pela vida (vejam-se a pontuação afetiva e a
adjetivação subjetiva). Entretanto, o olhar amoroso de eu lírico vai além da
aparência física e resgata, do interior da mulher perdida, a garota:
Com a sua
trança comprida,
Os seus
sonhos de menina,
Os seus
sapatos antigos!
Mais uma vez, é a dor pelo outro que
se revela na poesia e nos cutuca, a nos lembrar de que na dor e no amor nos
irmanamos, mesmo que uma e outra não saiam nos jornais.
Notícia de jornal
(Luiz
Reis e Haroldo Barbosa)
Tentou
contra a existência
Num
humilde barracão.
Joana
de tal, por causa de um tal João.
Depois
de medicada,
Retirou-se
pro seu lar.
Aí a
notícia carece de exatidão,
O lar
não mais existe
Ninguém
volta ao que acabou
Joana é
mais uma mulata triste que errou.
Errou
na dose
Errou
no amor
Joana
errou de João
Ninguém
notou
Ninguém
morou na dor que era o seu mal
A dor
da gente não sai no jornal.
Meu abraço, desejando que
saibamos sentir, compreender e respeitar a dor do próximo, quer saia ou não
noticiada e comentada em jornais. (E quer seja esse próximo nosso amigo ou não;
e comungue ou não de nossas ideias e nosso modo de vida.)
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