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Portinari "Criança Morta" |
Em
matéria anterior (de 30/11/2017), comentei a crônica Dieta do Homem, de Paulo Mendes Campos. Entre as informações científicas
ali encontradas, há classificações de alimentos, vitaminas e minerais
necessários à manutenção da vida, e alguns dados quantitativos, que o escritor
usa para pôr à mostra realidades perversas. Alguns breves trechos:
Nas carteiras da escola me
ensinaram, segundo o sábio Claude Bernard, que o caráter absoluto da vitalidade
é a nutrição: pois onde ela existe, há vida; onde se interrompe, há morte.
[...]
Me ensinaram que há alimentos ternários e quaternários. Mas
não me disseram que dois terços de nossos irmãos no mundo sofrem de fome. Me
ensinaram que os alimentos ternários constituídos pelas gorduras e pelos
hidratos de carbono, são superlativamente importantíssimos. Mas não me disseram
que, em cem, dez homens estão, a qualquer hora, às portas da inanição.
Lembrei-me,
então, de outros escritores que se serviram de informações reais e de quantificações
e estatísticas, como base e ponto de partida para construir, crítica e
poeticamente, imagens de brasileiros e seus sofrimentos.
Trago,
hoje, dois deles: Ferreira Gullar, e Mario Quintana.
Ferreira Gullar e a redundância denunciante
Ferreira Gullar é
um dos poetas brasileiros que mais se voltaram para os desníveis sociais e a penúria
dos desvalidos. Em seu Poema Brasileiro,
parte de um dado: “No Piauí, de cada 100 crianças que nascem, 78 morrem antes
de completar 8 anos de idade” .
Assim
descontextualizada, a frase é mera informação estatística. No entanto, o eu
lírico repete-a à exaustão, e de modo a tocar e sacudir o leitor, embora
sem lançar mão de qualquer qualificação subjetiva que o comova.
Ei-lo:
Poema Brasileiro
No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade
No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade
No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
[Disponível em: www.avozdapoesia.com.br/obras_ler.php?obra_id=11010]
No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade
No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade
No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
[Disponível em: www.avozdapoesia.com.br/obras_ler.php?obra_id=11010]
Se não há apelo emocional direto, então, o que faz o poema ser impactante? A redundância informativa, por si só, não teria força. Entretanto, há a considerar as importantes quebras da frase inicial – estas, sim, multiplicadoras de sentido. Registro alguns aspectos, estrofe a estrofe.
► A primeira estrofe mostra-se introdutória e declarativa, como
se fosse título de manchete de jornal, síntese de o que e onde acontece,
privilegiando, pela posição na frase, o “onde” (No Piauí): “No Piauí de cada 100 crianças que nascem 78 morrem antes de completar 8 anos de
idade”.
► Na segunda estrofe, a quebra depois de “no Piauí”
aparentemente reforça um lugar singular – Piauí –, mas serve, principalmente,
para tornar mais evidente o fato estatístico, isolado nos dois versos
subsequentes:
“de cada 100 crianças
que nascem / 78 morrem antes de completar 8 anos de idade”.
► Na terceira, o procedimento de fragmentação da frase é bem
mais incisivo, e faz com que a leitura tenha que pausar a cada verso,
com tempo para se refletir mais demoradamente sobre cada elemento. Assim é que os
processos naturais da vida – nascer e morrer –, associados à quantificação
incômoda (100 que nascem, 78 que morrem em idade precoce), aparecem como que
desenhados expressionisticamente, apontando bem claramente cada elemento do
fato e ajudando o leitor a perceber assustadoras relações. Observem, a esse respeito, os três últimos fragmentos, destacados em linhas separadas (e grifados
por mim):
No Piauí (onde)
de cada 100 crianças (quem)
que nascem (quem)
78 morrem (o que)
antes (quando)
de completar (ainda o quando)
8 anos de idade (ainda o quando)
de cada 100 crianças (quem)
que nascem (quem)
78 morrem (o que)
antes (quando)
de completar (ainda o quando)
8 anos de idade (ainda o quando)
► Entretanto, o quadro ainda precisa de um “dedo” que destaque o
detalhe mais cruel da imagem desenhada. E este dedo é a repetição na quarta
estrofe, que poderia se perpetuar, infinitamente, como um eco estridente: “antes de completar 8 anos de idade”.
► Necessário,
ainda, referir-se ao título: não “poema piauiense”, mas “poema brasileiro”. Com esse estratagema, o eu
poético remete sutilmente a todo o país, a realidade esboçada para uma parte do
território brasileiro, aumentando, assim, o alcance de sua crítica veemente.
Mario
Quintana e a suavidade que põe o dedo na ferida
Apesar de o título – Estatística – prometer dados gerais e
objetivos, como o poema anterior, o que Mario Quintana faz é tomar um exemplo
ainda mais particular que o de Ferreira Gullar: lá, havia um estado em
particular, “Piauí”, que simbolizava todo o país; aqui, o eu lírico simula
entrevistar uma única pessoa: a mulher-mãe, “comadre”.
De fato, o texto poético
refere-se apenas à “comadre”, e não se preocupa em situar o acontecimento em
algum tempo e espaço. No entanto, que o leitor não se engane, pois é essa mesma
vagueza que lhe permitir vislumbrar a amplidão do cenário aflitivo apontado.
Vamos à leitura do poema,
antes de mais considerações.
Uma
Estatística
As crianças,
sem um tiro aliás,
e isso
é que tornava o caso ainda mais
espantoso,
morriam mais do que índios nos
filmes norte-americanos,
e quando a gente acaso perguntava,
para se mostrar atenciosos
"Quantos filhos a senhora tem,
comadre?"
A comadre respondia, com ternura:
"Eu tenho quatro filhos e nove
anjinhos".
[Disponível em: http://blogdejadson.blogspot.com.br/2014/01/quintana-mentira-e-uma-verdade-que-se.html]
O suave Quintana bem sabe pôr a mão na
ferida, quando necessário; mas, sempre, sem perder a delicadeza. Claramente,
muito pouco é dito; porém, o leitor brasileiro conhece a realidade e, por isso,
usando de sua experiência de vida, pode preencher e iluminar a cena toda.
Por exemplo, onde se passa o diálogo
narrado? O indício para descobri-lo é o termo “comadre”, normalmente usado
em comunidades rurais ou de periferia, simples e com poucos recursos de
educação, saúde, saneamento básico.
Daí se depreende todo o resto: as crianças
morriam “sem
um tiro”, pois a violência era outra: ligada à fome, à falta de socorro,
à penúria própria do ambiente em que nasciam.
O eu lírico ameniza a violência da denúncia,
com uma comparação entre irônica e séria: “morriam mais do que índios nos
filmes norte-americanos” e com a adjetivação – “caso espantoso”
(e não cruel, trágico, ou algo parecido, como seria de se esperar).
A estatística? O leitor pode concretizá-la,
a partir da resposta da comadre: “Eu tenho quatro filhos e nove anjinhos". E o que dizer da qualificação de seu dizer: “com ternura”?
Outra vez, cabe ao leitor inferir: a ternura é o indício do conformismo e da
não revolta ante o drama pessoal, espelho e amostra de outros dramas iguais, de
outras comadres, de outras tantas comunidades semelhantes.
O drama que nada
suaviza
Ferreira Gullar e Mario Quintana desenham
uma situação que hoje, talvez, esteja amenizada em alguns paragens, mas não em
outras; infelizmente, é a imagem de um Brasil que ainda existe, apesar do
progresso e de algumas políticas públicas. É a morte sem tiros, de que nos fala
Quintana.
Contudo, há que se falar, no Brasil atual,
também da morte com tiros, ou seja, da violência que atinge especialmente os
centros urbanos, mudando rotinas, violentando corpos e mentes, esfacelando
famílias.
Crianças e jovens, sabemos, são os que mais
recebem e sentem os danos de viver nessas circunstâncias. É essa percepção que
dois jovens estudantes cariocas registraram, parafraseando a Canção do Exílio,
de Gonçalves Dias. Reparem na lucidez dos escritores, ao contrapor, ao cenário
romântico de outros tempos, este de agora, crivado de violência e medo.
Reparem, também, que o eu poético manifesta
o desejo de sobrepujar o caos e viver, idilicamente, “onde canta o sabiá” – o
que nos traz a voz do idealismo juvenil que, apesar de tudo (felizmente!) ainda resiste.
Minha terra...
Minha terra é a Penha.
O medo mora aqui.
Todo dia chega a notícia
Que morreu mais um ali.
Nossas casas perfuradas
Pelas balas que atingiu,
Corações cheios de medo
Do polícia que surgiu.
Se cismar em sair à noite,
Já não posso mais
Pelo risco de morrer
E não voltar para os meus pais.
Minha terra tem horrores
Que não encontro em outro lugar.
A falta de segurança é tão grande
Que mal posso relaxar.
"Não permita Deus que eu
morra"
Antes de sair deste lugar.
Me leve para um lugar tranquilo
"Onde canta o sabiá".
[Disponível em: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/minha-terra-tem-horrores-versao-de-poema-feita-por-alunos-do-rio-causa-comocao-nas-redes-sociais.ghtml]
Um abraço.
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