O
Natal passa ao lado
Mesmo entre os que acreditam e amam o Natal, os Sem Natal são muitos.
Há os que não têm o que festejar, por
tristeza ou pobreza extrema. Há os esquecidos pela sorte, pela família, pela
sociedade. Há os doentes de corpo e alma. E há os que, abnegados ou obrigados,
deixam de festejar o Natal para que outros o façam.
Os personagens do conto que se segue
enquadram-se na última categoria, e vale a pena acompanhar seu (não) Natal, na
crônica de Lourenço Diaféria. A linguagem é coloquial e despojada, e o
acontecimento, aparentemente banal, revela aspectos sensíveis da alma humana.
O texto usa dois diferentes tempos
verbais; o fato, em si, é narrado no passado, mas as descrições estão no
presente, o que permite ao leitor estender e generalizar as qualificações. Com
efeito, o cabo Fagundes e o Tonelada são “tipos”, isto é, representam
características e ações pertencentes e encontradas em outros
personagens afins – como estar atento ao rádio para saber das ocorrências,
parar no bar para um lanche, contar casos, fazer bicos para aumentar a renda, acorrer
a emergências de toda espécie e correr riscos. A diferença é que, neste conto,
é Natal, e...
Peço que reparem como é tratado o Natal:
a obrigação rotineira de patrulhamento não deixa que os policiais festejem a
data, mas a emergência a que acodem (o possível nascimento de um bebê, em meio
a dores, risco e pobreza) e o modo como age o aparentemente impessoal cabo
Fagundes (especialmente em relação ao “pequeno guri”) dão a conhecer que o
Natal está, sim, presente, enquanto sentimento de solidariedade, conduta humanitária
e continuação do ciclo da vida.
A não esquecer, também, a voz que,
pelo rádio, deseja “bom Natal”. Desse modo, a crônica termina com uma pitada de ironia, pelo contraste entre a mensagem e o drama que se desenrola. O resultado, para o leitor, talvez seja uma doce melancolia... Vamos à leitura, sem mais comentários.
OK. Bom Natal
O cabo Fagundes estava de serviço, ele mais o Tonelada. O
Tonelada tem esse apelido porque é magro pra burro. O cabo Fagundes não tem
apelido. O serviço deles era numa viatura pequena, com radinho que roncava,
chiava e dava os informes sobre o que estava acontecendo nas ruas. Era o
trabalho de rotina. A diferença é que essa noite era véspera de Natal, e também
isso era rotina. Mas Fagundes não se importava com isso, e nem o Tonelada. Eles
são milicianos, estavam cumprindo a escala de serviço normal. Tinham de acudir
às ocorrências. O radinho havia informado que um bêbado criara confusão na rua
Harmonia, e na confluência de duas ruas de Cangaíba havia o cadáver de um homem
aparentemente atropelado. O atropelador fugira. Portanto, era uma noite igual
às outras noites. Mesmo o tal de cometa que, dizem, apareceria no céu era apenas
uma promessa. A olho nu viam-se somente as estrelas de sempre.
Sempre que podia, durante o serviço, o Tonelada tinha mania
de contar casos do tempo em que ele não era miliciano da Polícia Militar. Vivia
dizendo que sua família tinha terras e gado num lugar chamado Cabrália. Era
solteiro, com duas namoradas. O cabo Fagundes era casado, os três filhos
estavam dormindo em casa, a mulher também. E mais a sogra, que morava com eles.
Nas horas de folga o cabo Fagundes dirigia táxi de frota, como outros colegas.
E às vezes fazia uns trambiques, mas numa boa. Comprava uma coisinha aqui,
vendia ali. E tencionava, com o tempo, montar um bar que somente servisse
bebida e petisco. Era o que mais dava – ele dizia.
Na ronda, sempre paravam num boteco que oferecia um
churrasquinho com queijo derretido no meio do pão. Tonelada aproveitava para
tomar um gole de cachaça disfarçado, que o dono do boteco, escolado, vertia num
copo americano de beber água. Cada um tinha comido um churrasco, estavam
palitando os dentes, o radinho da viatura chiou. Era pedido de ajuda na
Marginal, perto do Parque Novo Mundo. Cabo Fagundes conhecia bem a região, o
Tonelada já havia registrado umas ocorrências nas cercanias, sabiam das
favelas. Uma delas era quente. Tinham de entrar devagar, mas pisando firme.
Quando chegaram com as luzes piscando e deram a volta no
quarteirão de barracos, viram dois homens acenando e uma criança, pequena,
descalça, mas vestida com roupa. O Tonelada desligou os faróis da frente, ficou
só com as luzes de cima e as lanternas, pôs a cabeça para fora, a mão embaixo,
no coldre:
– Que está
acontecendo aí?
– Uma janela, outra janela, e mais outras janelas se
abriram um pouco.
– É a mulher dele,
está passando mal.
O cabo Fagundes empurrou a porta da viatura e já foi pensando
logo – é mulher dando à luz, amanhã a gente conta, os caras dizem que é
história de Natal, essas coisas.
– Que que ela tem?
– Está soltando sangue por baixo.
O Tonelada contra a luz do barraco ficava ainda mais magro,
parecia um cipó com duas pernas. Contudo, era parada. Quem se louvasse na
magreza dele, acabava se dando mal. Tinha olho de mosca, via num relance. O
barraco cheirava azedo, mas estava organizado. Tinha urinol, televisor de 16,
moringa de barro, toalhinha na mesa e uma folhinha de O Barateiro. No fogo, em
cima da boca de gás, fervia um bule soltando vaporzinho.
– Já demos comprimido e não passou.
Embrulharam a mulher num lençol. Chegou mais gente a
espiar.
– Que que sucedeu, Mãozinha?
– É a Nega. Não está nada boa. Cansei de avisar pra ela não
carregar peso.
A Nega não gemia. Estava cor de azeitona. Fungava com o
nariz seco.
– Vamos pro pronto-socorro. E ligeiro, que pode sujar o
banco.
Se acomodaram, espremidos.
– Posso ir, pai?
O cabo Fagundes olhou o moleque. Tinha acordado e perdera o
sono. – Fica aí, filho. A gente volta logo. Entra pra dentro e tranca a porta.
Cabo Fagundes imaginou o pequeno guri dentro do barraco, a
porta fechada, madrugada. A mãe no pronto-socorro, o pai sabe lá que horas
voltaria. Os vizinhos podiam olhar e podiam não olhar. Com os olhos, conferiu a
cara do Tonelada. Tonelada concordou com a cabeça, acenando.
– Sobe, guri. Se aperta aí atrás. O guri saltou que nem
mola, nunca havia entrado num carro assim, com sirena e luzes piscando. A mãe
tocou sua mão pequena, apertou. Agora ela se sentia melhor. Estava indo para o
pronto-socorro, o marido estava junto, e o filho perto deles. A dor passaria.
A viatura saiu zunindo. Cabo Fagundes estava comunicando a
ocorrência, informando as providências. Do outro lado do rádio uma voz
respondeu: “OK. Bom Natal”.
[DIAFÉRIA, Lourenço. O invisível cavalo voador. São Paulo:
FTD, 1990.]
O
Natal passa ao largo
Eduardo Galeano, em um pequeno conto de Natal, e de modo conciso, consegue trazer o contraste entre a festa e o sofrimento. A carga extra de dramaticidade vem concentrada na criança doente e solitária e em sua única fala, carregada de sentidos.
Noite de Natal
Fernando Silva dirige
o hospital de crianças, em Manágua. Na véspera do Natal, ficou trabalhando até
muito tarde. Os foguetes espocavam e os fogos de artifício começavam a iluminar
o céu quando Fernando decidiu ir embora. Em casa, esperavam por ele para
festejar.
Fez um último
percorrido pelas salas, vendo se tudo ficava em ordem, e estava nessa quando
sentiu que passos o seguiam. Passos de algodão: virou e descobriu que um dos
doentinhos andava atrás dele. Na penumbra, reconheceu-o.
Era um menino que
estava sozinho. Fernando reconheceu sua cara marcada pela morte e aqueles olhos
que pediam desculpas ou talvez pedissem licença.
Fernando aproximou-se,
e o menino roçou-o com a mão: – Diga para... – sussurrou o menino –. Diga para
alguém que eu estou aqui.
[GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre:
L&PM, 2002.
Disponível em: http://groups.google.com.br/group/digitalsource]
Para
terminar, um texto Sem Natal
Por quê isso? Porque os textos são, bem frequentemente, “seres viventes”. E revelam, sem o dizer – como o cabo Fagundes, de Diaféria, e como o pequeno hospitalizado, de Galeano –, sentimentos ligados a natais.
Portanto, despeço-me trazendo, ainda
uma vez, a palavra de Galeano, sabendo que meus amigos leitores saberão me
compreender e compreendê-lo. E o faço, com meus melhores desejos de que a vida
se multiplique em natais de esperança.
Abraço a todos.
De Desejos Somos
A vida sem nome, sem memória, estava
sozinha. Tinha mãos, mas não tinha em quem tocar. Tinha boca, mas não tinha com
quem falar. A vida era uma, e sendo uma, era nenhuma. Então, o desejo disparou
sua flecha. E a flecha do desejo partiu a vida pela metade, e a vida tornou-se
duas. As duas metades se encontraram e riram. Ao se ver, riam; e ao se tocar,
também.
[Disponível
em: http://pensamentosjucordeiro.blogspot.com.br/2010/09/de-desejos-somos-eduardo-galeano.html]
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