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Esmeralda Ribeiro e Conceição Evaristo |
Diz Esmeralda Ribeiro, em seu poema Ensinamentos: ”ser invisível quando não se quer ser é ser mágico nato”. Se me é permitido, direciono a frase para uma realidade que todos conhecemos: ser mulher e ser negra é caminho duplamente seguro para a "magia" da invisibilidade.
O que se dirá, então, quando essa
mulher escolhe traçar caminhos próprios, percorrendo estradas incertas de chão
tortuoso, como o da arte literária? Quanto é necessário de desprendimento e coragem!
Quanto empenho para fazer-se ouvir! Quanta entrega e vontade, quanta teimosia
paciente e aplicada para ir em frente!
Por isso mesmo, a mulher negra
escritora caminha com o olhar lúcido que a induz a produzir obras marcantes e a
faz ser, quase inevitavelmente, socialmente atuante.
Esmeralda Ribeiro1 é uma
delas: escritora e jornalista, empreende ações de valorização da literatura
afro-brasileira e da mulher negra, sua cultura, seu protagonismo. Porque sempre
existe a possibilidade (e necessidade) de se usar a própria segregação e invisibilidade
como impulso e força para a afirmação individual, social e, principalmente “para assim
construir-se humano”, em palavras de seu poema.
A seguir, registro o poema acima citado.
A seguir, registro o poema acima citado.
1Esmeralda Ribeiro “faz parte da Geração
Quilombhoje desde 1982, atuando em movimentos de combate ao racismo e na
construção de uma literatura negra – com incentivo à participação da mulher –,
a partir do resgaste da memória e das tradições africanas e afro-brasileiras. [...]
Tem poemas em diversas antologias no Brasil e no exterior”.
[Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2316-40182017000200276.]
[Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2316-40182017000200276.]
Esmeralda Ribeiro: ensinamentos
de poeta negra
Ensinamentos
ser invisível quando
não se quer ser
é ser mágico nato
é ser mágico nato
não se ensina, não se
pratica, mas se aprende
no primeiro dia de aula aprende-se
que é uma ciência exata
no primeiro dia de aula aprende-se
que é uma ciência exata
o invisível exercita o
ser “zero à esquerda”
o invisível não exercita cidadania
as aulas de emprego, casa e comida
são excluídas do currículo da vida
o invisível não exercita cidadania
as aulas de emprego, casa e comida
são excluídas do currículo da vida
ser invisível quando
não se quer ser
é ser um fantasma que não assusta ninguém
quando se é invisível sem querer
ninguém conta até dez
ninguém tapa ou fecha os olhos
a brincadeira agora é outra
os outros brincam de não nos ver
é ser um fantasma que não assusta ninguém
quando se é invisível sem querer
ninguém conta até dez
ninguém tapa ou fecha os olhos
a brincadeira agora é outra
os outros brincam de não nos ver
saiba que nos tornamos
invisíveis
sem truques, sem mágicas,
ser invisível é uma ciência exata
mas o invisível é visto no mundo financeiro
é visto para apanhar da polícia
é visto na época das eleições
é visto para acertar as contas com o leão
para pagar prestações e mais prestações
é tanto zero à esquerda que o invisível
na levada da vida soma-se
a outros tantos zeros à esquerda
para assim construir-se humano.
sem truques, sem mágicas,
ser invisível é uma ciência exata
mas o invisível é visto no mundo financeiro
é visto para apanhar da polícia
é visto na época das eleições
é visto para acertar as contas com o leão
para pagar prestações e mais prestações
é tanto zero à esquerda que o invisível
na levada da vida soma-se
a outros tantos zeros à esquerda
para assim construir-se humano.
[Disponível em: http://www.quilombhoje.com.br/sarau.php]
O que aprendemos dos Ensinamentos: a condição de invisibilidade imposta, há tantas gerações, a quem é negro e – penosa redundância – também pobre, está mais que denunciada nas palavras contundentes do eu poético:
o invisível exercita o
ser “zero à esquerda”
o invisível não exercita cidadania
as aulas de emprego, casa e comida
são excluídas do currículo da vida
o invisível não exercita cidadania
as aulas de emprego, casa e comida
são excluídas do currículo da vida
Este aprendizado imposto, exatamente
porque é imposto, porque é “ser invisível quando não se quer ser”, revela-se (angustiante
ironia!) magia desde o nascimento: é o destino ao qual não se escapa. Depois,
pelo viver em sociedade, torna-se conhecimento sistematizado, uma “ciência
exata”:
ser invisível quando
não se quer ser
é ser mágico nato
é ser mágico nato
não se ensina, não se
pratica, mas se aprende
no primeiro dia de aula aprende-se
que é uma ciência exata
no primeiro dia de aula aprende-se
que é uma ciência exata
Conceição
Evaristo: a sabedoria da experiência
Outra mulher poeta e atuante.
São outros ensinamentos. Ou são os mesmos, ditos de outra forma. Outra voz;
outra vivência; e a convergência para o mesmo foco.
Na verdade, Conceição
Evaristo2 é, talvez, uma das mais conhecidas poetas brasileiras
de agora. Justamente por isso, pode ser considerada inspiradora e ensinante de
quantas surgem no século XXI. O alcance e as virtudes literárias de Conceição Evaristo, somados à sua
militância literária e social, envolvem o empoderamento feminino e a diversidade,
em seu contexto mais amplo.
Registro, aqui, dois de seus
poemas.
No primeiro, a escritora mapeia a ancestralidade do sofrimento e a lucidez recebida como herança
materna. A inclusão de contrários e paradoxos (brandura / violência; meio riso /
alegria inteira; fé desconfiada e outros, que grifei no poema) detalha
características da dor aprendida:
quando se anda
descalço
cada dedo olha a estrada.
cada dedo olha a estrada.
...
E de sua transformação em arte, verdadeiro aprendizado de superação e de
sublimação:
fazer da palavra
artifício
arte e ofício
do meu canto
da minha fala.
artifício
arte e ofício
do meu canto
da minha fala.
Eis o poema todo, no qual intensamente se confere força e valor à imagem de mãe e de mulher:
De mãe
O cuidado de minha poesia
aprendi foi de mãe,
mulher de pôr reparo nas coisas,
e de assuntar a vida.
aprendi foi de mãe,
mulher de pôr reparo nas coisas,
e de assuntar a vida.
A brandura de minha
fala
na violência de meus ditos
ganhei de mãe,
mulher prenhe de dizeres,
fecundados na boca do mundo.
na violência de meus ditos
ganhei de mãe,
mulher prenhe de dizeres,
fecundados na boca do mundo.
Foi de mãe todo o meu
tesouro
veio dela todo o meu ganho
mulher sapiência, yabá,
do fogo tirava água,
do pranto criava consolo.
veio dela todo o meu ganho
mulher sapiência, yabá,
do fogo tirava água,
do pranto criava consolo.
Foi de mãe esse
meio riso
dado para esconder
alegria inteira
e essa fé desconfiada,
pois, quando se anda descalço
cada dedo olha a estrada.
dado para esconder
alegria inteira
e essa fé desconfiada,
pois, quando se anda descalço
cada dedo olha a estrada.
Foi mãe que me descegou
para os cantos milagreiros da vida
apontando-me o fogo disfarçado
em cinzas e a agulha do
tempo movendo no palheiro.
para os cantos milagreiros da vida
apontando-me o fogo disfarçado
em cinzas e a agulha do
tempo movendo no palheiro.
Foi mãe que me fez
sentir
as flores amassadas
debaixo das pedras
os corpos vazios
rente às calçadas
e me ensinou,
insisto, foi ela
a fazer da palavra
artifício
arte e ofício
do meu canto
da minha fala.
as flores amassadas
debaixo das pedras
os corpos vazios
rente às calçadas
e me ensinou,
insisto, foi ela
a fazer da palavra
artifício
arte e ofício
do meu canto
da minha fala.
[Disponível em:
www.revistaprosaversoearte.com/conceicao-evaristo-poemas]
A condição de ser mulher e a
consciência do que isso traz de peso e de poder vêm fortes em outro poema, Eu-Mulher.
Outra vez, o contraste, agora de cores, substâncias, sentimentos, que se fundem
na previsão, geração e ativação do mundo, por parte da mulher-mãe:“fêmea-matriz” e “força-motriz”: O leitor atento saberá desvendar estes e outros achados poéticos:
Eu-Mulher
Uma gota de leite
me escorre entre os
seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as
pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam
esperanças.
Eu-mulher em rios
vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos
do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes – agora – o que
há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
2
“Conceição
Evaristo é natural de Belo Horizonte e hoje vive no Rio de Janeiro. Estreou na
literatura na década de 1990, é doutora em literatura comparada pela
Universidade Federal Fluminense e militante ativa do movimento negro. Suas
obras abordam questões como o racismo brasileiro e a condição de ser mulher e
negra no país. Conceição tem diferentes obras publicadas e premiadas no
exterior.”
[Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/29/cultura/1501282581_629505.html]
[Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/29/cultura/1501282581_629505.html]
Vozes esclarecidas
Termino com afirmações, em
entrevistas, das duas poetas focalizadas. Que sirvam como uma espécie de
síntese e um retrato 3x4 de suas firmes convicções e lutas.
Esmeralda Ribeiro, sobre a
importância do fazer literário e a posição de “autora negra” no seio da
literatura brasileira:
“É como respirar para viver. No campo literário,
tenho que comemorar meu gol como eu sou. Sem cartão vermelho para minha opção
de ser mulher negra escritora. Fico os 90 milhões de minutos no campo
literário. Não aceito substituições. [...] Quero ser inteira: mulher negra
escritora. Há de se pagar um preço. Eu pago! Prefiro isso a ser apagada da
historiografia literária.”
[www.scielo.br/pdf/elbc/n51/2316-4018-elbc-51-00276.pdf.]
[www.scielo.br/pdf/elbc/n51/2316-4018-elbc-51-00276.pdf.]
Conceição
Evaristo, sobre a importância da literatura como expressão e representação da
identidade e da diversidade cultural:
“Quando falamos em literatura, quando
pensamos nela como uma forma de explicitação da identidade nacional, colocar
negros e índios é apenas nos colocar em nosso lugar de direito. Pensar na
literatura desta forma é pensar na diversidade não somente em termos teóricos,
mas em termos práticos de representação.”
[https://www.cartacapital.com.br]
[https://www.cartacapital.com.br]
Meu abraço a todos.
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