Artur da
Távola, em crônica:
Li certa vez uma deliciosa
confissão de Oscar Wilde. Diz com
perfeição o que se passa de angústia na cabeça de um escritor, e como são
erráticas e fugidias as palavras às quais o poeta Thiago de Mello chamou com
perfeição de "o pântano enganoso das bocas". Mas
disse o Oscar Wilde, num desabafo: "Passei a manhã debruçado sobre um
poema. Tirei-lhe uma vírgula. Que
à tarde, aflito, repus". 1
A
nós, usuários cotidianos da língua, às vezes um simples bilhete traz dúvidas
sobre sua escrita: uma ordem, crítica ou reclamação – até uma informação – requer
escolha cuidadosa de palavras, para se evitar má interpretação ou mágoa. (Bem
por isso, é de bom conselho construir um discurso bem pensado, ao transmitir alguma
notícia ruim, ou fazer uma observação mais contundente a alguém...)
Essa
busca da palavra justa é (ou deveria ser) encarada como um dever, quando se
trata de textos a serem publicados (quaisquer que sejam – científicos,
literários, jornalísticos). Para os escritores mais rigorosos, que só se
contentam com o termo de melhor efeito estético ou com o modo de dizer que expresse
mais objetivamente fatos e conhecimentos, chega, mesmo, a ser obsessão.
É
que a palavra, aquela palavra tão desejada, aquela palavra tão necessária para
integralizar o sentido, faz-se viva no texto e o vivifica. Caça à Palavra, crônica do escritor e professor Gabriel Perissé, traz
essa perspectiva e desenha, de modo bem-humorado, a palavra enquanto entidade com vida própria: Quanto custa a vida de uma palavra? E se, para me
pressionar, os criminosos enviassem fonemas decepados de seu corpo para que eu,
encurralado, aceitasse pagar o valor impossível?
Convido-os a saborearem a
crônica de Perissé por inteiro: atenção às diversas formas de se referir à palavra procurada;
à consequência, para o texto, da falta dela (“estagnado”, “animal sem dono”); e...
ao desespero do escritor.
Peço que reparem, ainda, em
como as frases dos três últimos parágrafos encenam, resumem e, isoladas cada
uma em um parágrafo, escancaram e acentuam o “drama” do escritor e a solução tão
desejada.
Caça à palavra
Estava outro dia escrevendo um texto, cujo tema
agora não importa mais. E no meio do caminho senti necessidade de uma
determinada palavra. De um adjetivo em especial. Precisava daquela palavra e
não a encontrava ao meu lado.
Na mente, alguma clareza eu tinha. O conceito mais
ou menos delineado. A ideia mais ou menos definida. A mensagem mais ou menos
engatilhada. O objetivo mais ou menos objetivado. Vislumbrava a palavra, mas
não sabia seu paradeiro.
A palavra desejada estava em alguma praia, muito
longe daqui, descansando da vida verbal. Ou estaria passeando em ruas
improváveis, em outros países, cometendo estrangeirismos. Ou teria entrado em
órbita, perdida no espaço, à beira de universos paralelos.
Bem sabia eu que não haveria sinônimos ou
substitutos para aquela palavra. O texto e o contexto não permitiam outra
palavra. Certamente encontrara outros autores e a eles se entregara. Negando-se
a vir. Fugindo de mim.
Procurei-a em dicionários de papel e eletrônicos.
Percorri e vasculhei textos alheios, abrindo parágrafos ao meio para ver se a
flagrava ali escondida. A palavra apetecida estava desaparecida. Era preciso
caçar mais intensamente a palavra cobiçada. Era tudo ou nada!
Por ela perguntava a quantos encontrei. A
linguistas e filólogos, a gramáticos e professores, a leigos e doutores: “onde
está a palavra”?
Queriam descrições mais exatas, indicações mais
precisas. Em que linhas estava a palavra quando foi lida pela última vez? Que
páginas costumava frequentar nos finais de semana? Era vulgar? Erudita?
Esdrúxula? Era uma palavra de honra?
Com quem andava rimando nos últimos tempos? Sabe
algo de sua árvore etimológica? Quais sons emitia? Que sujeitos costumava
acompanhar? Que predicativos tinha?
Eu media as palavras para responder. Não fosse eu
acabar atrapalhando as investigações. Não acabasse por induzir os caçadores a
trazerem, viva ou morta, a palavra errada.
Não conseguia mais dormir. O texto, como animal sem
dono, me olhava, suplicando continuidade. E a palavra não vinha. O texto,
estagnado. Eu, desesperado.
Talvez a tivessem sequestrado e em breve me
telefonariam exigindo resgate absurdo. Quanto custa a vida de uma palavra? E
se, para me pressionar, os criminosos enviassem fonemas decepados de seu corpo
para que eu, encurralado, aceitasse pagar o valor impossível?
Cinco longos dias assim, sem a palavra.
Então, quando tudo parecia perdido, a porta se
abriu lentamente.
Ela mesma, capciosa, entrou sem
pedir licença. 2
1 Disponível em: http://www.portalentretextos.com.br/materia/escrever-agonia,12.
2 Disponível em: www.correiocidadania.com.br/colunistas/gabriel-perisse/6070-20-07-2011-caca-a-palavra.
Não
estamos sós...
Nós, Artur da Távola, Oscar
Wilde, Gabriel Perissé... quem um dia, atreveu-se a escrever – e não precisa
ser profissionalmente – conhece esse desconforto da procura da melhor forma, da
melhor palavra.
Também
Fernando Sabino – ele, jornalista, cronista e contista de talento reconhecido –
confessou, certa vez:
Outro dia escrevi três
vezes um bilhete para a empregada: troquei palavras, acrescentei vírgulas, foi
o maior esforço para ser claro, para me fazer entender. 3
Poderia citar muitos outros
escritores (e já o fiz, em certas ocasiões) que se dispuseram ou se dispõem a
refletir sobre o desafio que é buscar a perfeição na escrita. Contento-me, por
hoje, com uma pequena amostra de Drummond, mestre em tecer poemas que se
debruçam sobre a própria tessitura do texto. Seu final de Procura da Poesia4
é uma excelente – e dura – lição a quem se arrisca a “caçar palavras”:
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
É
reconfortante saber que escritores profissionais também se sentem desafiados
pela palavra, assim como nós, não é mesmo? Bem... A “única” diferença é que
eles chegam a textos incríveis, até mesmo ao revelar o sofrimento vivido na
criação de um texto!
Quanto
a nós...
Um
abraço!
3 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/coletanea.pdf.
4 ANDRADE, Carlos
Drummond de. In A Rosa do Povo. Reunião –
10 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
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