Tomo os textos que se
seguem, como ilustração introdutória ao assunto de hoje.
Texto
1
"Os alimentos são, como
sabemos, condição única e essencial para a manutenção da vida. Sem uma dieta
equilibrada, tanto em quantidade como em variedade, o organismo não se
desenvolve corretamente e não dispõe de resistências (reservas nutricionais)
para lutar ativamente contra determinadas doenças, podendo levar ao
envelhecimento precoce e à perda de qualidade de vida.
A alimentação deve ser
variada, de forma a fornecer equilibradamente todos os nutrientes necessários à
vida (vitaminas, sais minerais, proteínas, hidratos de carbono. lípidos e
água).
Uma dieta diária, para
ser equilibrada, deve ser adequada às características e hábitos de cada pessoa.
A quantidade de alimentos essenciais para a saúde depende de fatores muito
importantes, tais como: idade, sexo, atividade física e, até mesmo, situação
clínica."
Texto
2
"Segundo o sábio Claude
Bernard1, o caráter absoluto da vitalidade é a
nutrição; pois, onde ela existe, há vida; onde se interrompe, há morte.
Os alimentos fornecem ao
homem os elementos constituintes da própria substância humana; o homem é o
alimento que ele come.
Sem o concurso de certos
alimentos minerais e orgânicos, depressa a vida sobre a terra se extinguiria.
O carbono, o oxigênio, o
azoto, o fósforo e outros minerais são decisivos à vitalidade da célula. O
oxigênio é o primeiro elemento indispensável.
Há alimentos orgânicos
ternários e quaternários. Os alimentos ternários, constituídos pelas gorduras e
pelos hidratos de carbono são importantíssimos. O ovo, o leite e a carne são
alimentos extraordinários.
A sensação de fome é
acompanhada de contrações gástricas, uma espécie de cãibra no estômago.
As vitaminas são
substâncias influentes no crescimento e na saúde; quando elas faltam,
comparecem o escorbuto, o beribéri e outras doenças."
Os dois textos contêm informações bastante semelhantes às usualmente encontradas em livros didáticos ou em revistas e sites de divulgação científica, e procuram alertar o leigo sobre a importância de vida e nutrição saudáveis. A origem deles é, no entanto, diversa. O primeiro foi editado de textos facilmente encontrados em páginas eletrônicas dedicadas à saúde.
Já o segundo é recorte
de uma crônica de Paulo Mendes Campos: o texto, assim tratado e comparado ao
primeiro, serve para nos dar a certeza de que o cronista não parte de dados
hipotéticos ou fictícios; ao contrário, toma informação científica e, a ela,
contrapõe o retrato de uma dura realidade.
A seguir, registro a
crônica, na íntegra. A diferenciação de cor mostrará a parte que serviu de base ao texto editado e auxiliará nossa compreensão sobre o tratamento dado a conhecimentos científicos comumente veiculados e ensinados.
1 Fisiologista francês (1813
– 1878). Suas investigações deram a conhecer os mecanismos que regem o
funcionamento dos seres vivos. Bernard defendeu a teoria de que num organismo
existe uma equilíbrio complexo de reações químicas que é indispensável à vida.
[Fonte: Claude Bernard in Artigos de apoio Infopédia Porto: Porto Editora,
2003-2017. Disponível na Internet:
https://www.infopedia.pt/apoio/artigos/$claude-bernard.]
Dieta do homem
1 Nas
carteiras da escola me ensinaram,
segundo o sábio Claude Bernard, que o
caráter absoluto da vitalidade é a nutrição: pois onde ela existe, há vida;
onde se interrompe, há morte. Mas não me disseram
que entre os animais humanos, o lado que pende para a morte, por falta de
nutrição, é mais numeroso que o lado erguido para a vida.
2 Me ensinaram
que alimentos fornecem ao
homem os elementos constituintes da própria substância humana; o homem é o
alimento que ele come. Mas não me disseram que
existem homens aos quais faltam elementos que constituem o homem. Homens
incompletos, homens mutilados em sua substância, homens deduzidos de certas
propriedades humanas fundamentais; homens vivendo o processo da morte.
3 Me
ensinaram, no delicado modo condicional, que sem o concurso de certos alimentos minerais e orgânicos,
depressa a vida sobre a terra se extinguiria. Mas
não me disseram que, depressa, por toda a parte, a vida se extingue, no duro
modo indicativo.
4 Me
ensinaram que o oxigênio
é o primeiro elemento indispensável. Mas não me
disseram que o oxigênio é bem comum de toda a humanidade, salvo em minas e
galerias, onde é escasso.
5 Me ensinaram
que o carbono, o
hidrogênio, o azoto, o fósforo e outros minerais são decisivos à vida da
célula. Mas não me disseram (por óbvio, mas eu era
um estudante tão distraído) que aqueles elementos não se encontram no ar que
respiramos. E ainda que se encontrem na terra, acaso digerida por alguma
criança, seu poder de assimilação é nenhum.
6 Me
ensinaram que há
alimentos ternários e quaternários. Mas não me
disseram que dois terços de nossos irmãos no mundo sofrem de fome. Me ensinaram que os alimentos ternários
constituídos pelas gorduras e pelos hidratos de carbono, são superlativamente
importantíssimos. Mas não me disseram que, em cem,
dez homens estão, a qualquer hora, às portas da inanição.
7 Me
ensinaram que o ovo, o
leite e a carne são alimentos extraordinários. Mas
não me disseram que, em certas regiões do mundo, há homens que consomem ovos,
leite e carne em quantidade muito acima das exigências da máquina humana.
8 Me
ensinaram que a sensação
de fome é acompanhada de contrações gástricas, uma espécie de cãibra no
estômago; mas disseram isso de maneira impessoal,
como se fosse apenas a dedução teórica de um acidente possível.
9 Me
ensinaram que as
vitaminas são substâncias influentes no crescimento e na saúde; quando elas
faltam, comparece o escorbuto, o beribéri, a pelagra e outras doenças, mas não me disseram nem onde, nem quantos padecem de
avitaminoses.
10 Nas carteiras
da escola me disseram muitas coisas. Mas não me disseram coisas essenciais à
condição do homem. O homem não fazia parte do programa.
[CAMPOS, Paulo Mendes. O
anjo bêbado. Rio de Janeiro: Sabiá, 1969.]
O
que se ensina e o que não
► Na crônica,
repete-se uma organização frásica dividida em dois segmentos, unidos pelo conector
lógico “mas”, que estabelece relação de contradição, oposição entre partes,
assim:
“Me
ensinaram que... mas não me disseram que...”
► Essa estrutura
se faz presente de modo insistente, martelado – mas nunca redundante, em termos
de informação. Ao contrário, a cada passo, agregam-se elementos importantes, de
um e outro lado, como se em dois pratos de uma balança: de um lado, condições
essenciais à manutenção da vida; do outro, situações existentes, de ausência de
condições de vida ideais, ou meramente normais, do homem.
De um lado, a afirmação, a aprendizagem de conceitos que
“me ensinaram” – e que são aquelas condições ideais
para a vida saudável; do outro, a negação,
o que “não me disseram”, ou seja, a não
aprendizagem daquilo que contradiz o que a ciência postula, e que é, verdadeiramente, a vida real de muitos. Exemplifico com o primeiro parágrafo (notem como a nomeação “animais humanos”
acentua a dramaticidade do destino da maioria dos homens):
“... me
ensinaram [...] que o caráter absoluto da vitalidade é a nutrição: pois onde
ela existe, há vida; onde se interrompe, há morte. Mas não me disseram que entre os animais humanos, o lado que
pende para a morte, por falta de nutrição, é mais numeroso que o lado
erguido para a vida.”
► O segundo
parágrafo traz um contraste importante entre a palavra “homem” e seu plural
“homens”. Ao “homem”, enquanto espécie, aplicam-se sadios ensinamentos: “o
homem é o alimento que ele come”. Aos “homens”, individualizados, cabem os
adjetivos denunciadores da doença, da miséria e da insalubridade: “Homens incompletos, homens mutilados em sua
substância, homens deduzidos de certas propriedades humanas fundamentais;
homens vivendo o processo da morte.”
► Os
parágrafos seguintes detalham as
carências que justificam os adjetivos, aprofundando, assim, o quadro dramático
entre o que deveria ser e o que é. A necessidade
de ar puro, de vitaminas e minerais; o bem que fazem os alimentos de todas as
categorias; a importância desses elementos para a manutenção da energia e a
prevenção de doenças – tudo isso foi ensinado ao cronista. E ele chama a
atenção do leitor para a inocuidade dessa aprendizagem, não apenas ao mostrar o
contraste entre teoria e realidade, como também fazendo uso de argumentos menos
objetivos, mas, sem dúvida, bastante persuasivos, tais quais a ironia e a emoção.
Registro:
A contraposição, no 3º parágrafo, que apela à emoção (aqui, o cronista conta, inclusive, com o conhecimento linguístico do leitor):“Me ensinaram, no delicado modo condicional [...] Mas não me disseram que [...]a vida se extingue, no duro modo indicativo.”
A ironia no 5º parágrafo:“Mas não me disseram (por óbvio, mas eu era um estudante tão distraído) que aqueles elementos não se encontram no ar que respiramos.”
O apelo emotivo ao leitor, no 6º parágrafo, chamando-o à consciência da irmandade humana:“Mas não me disseram que dois terços de nossos irmãos no mundo sofrem de fome.”
No 8º parágrafo, ao referir-se à fome, a contundência fica maior, e a denúncia mais explícita:“...mas disseram isso de maneira impessoal, como se fosse apenas a dedução teórica de um acidente possível.
► Portanto, o 8º parágrafo já escancara a impessoalidade de uma escola desconectada da vida, que a frase final do texto sintetiza magistralmente:
“O homem
não fazia parte do programa.”
“O homem não fazia parte do programa”
Este fecho da crônica aponta que, sob a
aparente rememoração de uma não aprendizagem individual (“me ensinaram... não me
disseram), o texto, do começo ao fim, organiza-se como uma aguda crítica à
escola burocrática, que não prioriza o homem, em seu programa; que não volta
seu olhar para o outro, para o ser em si, para a vida; e que, portanto, não tem
interesse em incentivar o olhar do aluno para seu semelhante.
Na frase, o escritor usa o verbo no
pretérito imperfeito – “fazia” –, indicando tratar-se não de um evento pontual,
mas de um acontecimento contínuo e permanente, no passado anterior a 1969, ano da publicação. É interessante pensar: se Paulo Mendes Campos
vivesse e atualizasse hoje sua crônica, quais dados
mudaria? Quais suprimiria? Quais acrescentaria?
E, principalmente: como a terminaria?
Como educadora, entristeço-me em pensar que, ainda hoje, seria possível manter
a frase final, apenas mudando o tempo verbal; porque, efetivamente, em muitas
escolas, ainda, "o homem não faz parte do programa".
Sobre essa questão, gostaria muito de
conhecer a opinião de você, que me lê.
A todos, deixo meu abraço.
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