Pierrô
solitário.
Jovem,
solteiro, carinhoso, deseja conhecer moça que tenha entre 20 e 30 anos, meiga,
solteira e igualmente solitária, para relacionamento sério. Pede-se a quem se interessar
que envie uma carta, relatando seus dados e preferências. Escreva para C. P.
0000.
O texto acima, vê-se
logo, é um anúncio classificado, que
se caracteriza por ser curto, razoavelmente objetivo, descritivo e, ao mesmo
tempo, persuasivo – pois, nele, alguém oferece ou procura uma pessoa, um
serviço, um bem, ressaltando-lhe as qualidades positivas, desejáveis ou
desejadas.
Muitas vezes, o
classificado apresenta título chamativo (aqui, “Pierrô Solitário). O corpo do
texto descreve as qualidades do objeto do anúncio (aqui, “moça que tenha entre
20 e 30 anos, meiga e solitária”), de forma a atrair a atenção. Termina,
sempre, com o endereço para contato com o anunciante (aqui, “C. P. 000”).
Embora um pouco mais
longo, o texto que vem a seguir é, aparentemente, um classificado, que poderia
– como o anterior e tantos mais – estar inserido em algum jornal, revista ou
site:
CORREIO DO POVO – 27/09/73
Informações
Maria
Joana Knijnick, solteira, procura pessoa do sexo oposto para fim de casamento.
O interessado deve ser pessoa sensível, que goste de ouvir música, seja alegre,
que goste de passear domingo de manhã, que goste de pescar, que goste de
passear na relva úmida da manhã, que seja carinhoso, que sussurre aos meus
ouvidos que me ama, que tenha bom humor, mas que saiba também chorar. Que saiba
escutar os cantos dos pássaros, que não se importe de dormir ao relento numa
noite de luar, que saiba caminhar nas estrelas, que goste de tomar banho de
chuva, que sonhe acordado e que goste muito do azul do céu. Prefere-se pessoa que
saiba escutar os segredos de um riacho e que não ligue aos marulhos do mar, que
goste de bife com arroz e feijão, mas que prefira peru com maçã, dá-se
preferência a pessoa de pés quentes, que goste de andar de barco, que goste de
amar e que não puxe as cobertas de noite. Não se exige que seja rico, de boa
aparência, que entenda Kafka ou saiba consertar eletrodomésticos, mas exige-se
principalmente que goste de oferecer flores de vez em quando.
Endereço:
Rua da Esperança, 43.
...Eu disse
“aparentemente”, porque na verdade, esse anúncio faz parte de um texto maior,
que registro por inteiro, a seguir. Só a leitura integral poderá confirmar se
é, de fato, um anúncio classificado.
Notícias
CORREIO
DO POVO – 27/09/73
Informações
Maria
Joana Knijnick, solteira, procura pessoa do sexo oposto para fim de casamento.
O interessado deve ser pessoa sensível, que goste de ouvir música, seja alegre,
que goste de passear domingo de manhã, que goste de pescar, que goste de
passear na relva úmida da manhã, que seja carinhoso, que sussurre aos meus
ouvidos que me ama, que tenha bom humor, mas que saiba também chorar. Que saiba
escutar os cantos dos pássaros, que não se importe de dormir ao relento numa
noite de luar, que saiba caminhar nas estrelas, que goste de tomar banho de
chuva, que sonhe acordado e que goste muito do azul do céu. Prefere-se pessoa
que saiba escutar os segredos de um riacho e que não ligue aos marulhos do mar,
que goste de bife com arroz e feijão, mas que prefira peru com maçã, dá-se
preferência a pessoa de pés quentes, que goste de andar de barco, que goste de
amar e que não puxe as cobertas de noite. Não se exige que seja rico, de boa
aparência, que entenda Kafka ou saiba consertar eletrodomésticos, mas exige-se
principalmente que goste de oferecer flores de vez em quando.
Endereço:
Rua da Esperança, 43.
CORREIO
DO POVO – 02/10/73
Informações
Maria
Joana Knijnick, solteira, procura pessoa do sexo oposto para fim de casamento.
O interessado deverá ser pessoa sensível e que tenha o hábito de oferecer
flores.
Endereço:
Rua da Esperança, 43.
CORREIO
DO POVO – 10/10/73
Informações
Maria
Joana Knijnick procura pessoa que a ame e goste de oferecer flores de vez em
quando.
Endereço:
Rua da Esperança, 43.
CORREIO
DO POVO – 20/10/73
Informações
Maria
Joana Knijnick pede que qualquer pessoa goste dela e suplica que lhe mande
flores.
CORREIO
DO POVO – 14/11/73
Informações
A
família da sempre lembrada Maria Joana Knijnick comunica o trágico
desaparecimento daquele ente querido e convida os amigos para o ato de
sepultamento. Pede-se não enviar flores.
[LOPES, Artur
Oscar. In LAJOLO, Marisa e MANSUR, Gilberto, orgs. Contos jovens. São Paulo: Brasiliense, 1979.
Pontos discerníveis,
na primeira abordagem do conjunto, dignos de serem detalhados – e o serão,
daqui por diante:
- Os blocos – os
anúncios – vão se tornando mais curtos, do primeiro ao penúltimo (mas não no
último) o que, à primeira vista, pode fazer o leitor sentir que há diminuição
progressiva da informação.
- Todos os blocos se
mostram com um mesmo referente, Maria Joana Knijnik – ela, “autora”/anunciante,
nos quatro primeiros –, mas não no quinto e último.
- O título do texto é
“Notícias”, e não “Anúncios Classificados”.
- O nome da rua –“da
Esperança” – está ausente em alguns blocos.
Pitadas de análise
► Reexaminemos
o primeiro anúncio. É o mais completo, o que fornece dados mais pormenorizados,
embora não diretamente, sobre a anunciante Maria Joana. Descreve-a como
solteira e informa o objetivo do anúncio: ela quer alguém para se casar.
Por inferência, por
meio das características do pretendente procurado (deve gostar de música,
passear, saber rir e chorar, enlevar-se com aspectos da natureza, sonhar
acordado, oferecer flores...), o leitor infere que a personagem é romântica e
sentimental, tal qual o noivo que procura para si.
Confirma-o, o pequeno
“escorregão” emocional da segunda frase, na qual o anúncio adota,
momentaneamente, a primeira pessoa. Compare-se o início, em terceira pessoa – “Maria Joana
Knijnick, solteira, procura pessoa do sexo oposto para fim de casamento. O
interessado deve ser pessoa sensível, que goste de ouvir música [...]” –, com
o que vem um pouco depois: “que seja carinhoso, que
sussurre aos meus ouvidos que me ama”,
Aliás, a própria
enumeração exaustiva de requisitos – com muitos detalhes e muitas vírgulas,
como se saísse tudo num jorro por muito tempo represado – indicia a
profundidade de seu romantismo, a urgência de sua procura e o tamanho da
solidão de Maria Joana.
Importante notar que
há uma condição essencial: “exige-se principalmente que
goste de oferecer flores de vez em quando”.
► O segundo
anúncio é o resumo do anterior. Repete o objetivo – “para
fim de casamento” – e sintetiza características românticas do “produto”
procurado: “deverá ser pessoa sensível e que tenha o hábito de oferecer flores”.
A observar: o ato de
oferecer flores não é mais colocado como exigência, mas, em contrapartida, há a
esperança de que seja ação habitual de quem aceitar a proposta.
► O terceiro,
além de conciso, traz mudança significativa: alterou-se a finalidade da procura,
que não é mais alguém para casar-se com a anunciante – agora, basta que alguém ame Maria Joana.
► Para comentar
o quarto anúncio, voltemos a atenção, desde o início, para todos os verbos
indicadores das reivindicações de Maria Joana, quanto às flores – dado que,
como se disse mais acima, parece requisito fundamental de futuro marido, na
visão da anunciante solitária.
No primeiro, temos o
verbo “exigir”: “exige-se principalmente que goste de oferecer flores de vez em
quando”.
No segundo, ameniza-se
a exigência, mas pede-se constância: “deverá ser pessoa [...] que tenha o hábito de oferecer flores.”
No terceiro, não se
pede nem ao menos constância, a personagem insinua contentar-se com a
intermitência: “procura pessoa que [...] goste de
oferecer flores de vez em quando”.
Por sua vez, no
quarto, a desesperança e a angústia pela ausência de resposta faz com que a
reivindicação se transforme em súplica: “suplica que lhe mande flores”.
► Outra
comparação precisa ser feita, quanto à procura e ao objetivo da anunciante.
A finalidade de
casamento e a procura por “pessoa do sexo oposto”,
presentes no primeiro e no segundo anúncios, altera-se. A procura apequena-se,
e Maria Joana, no terceiro anúncio, apenas “procura
pessoa [sem definir sexo] que a ame”.
No quarto, então, não
há mais procura, e sim, pedido; também
não se fala mais em amor, e acentua-se a indefinição de quem possa querer bem à
mulher carente: “Maria Joana Knijnick pede que qualquer pessoa goste
dela”.
Breve pausa... para analisar a análise
► A esta
altura, como definir o texto? Pois é evidente que existe algo mais que um
conjunto de “procura-se”... Na verdade,
sob a aparência de série de anúncios classificados, há um conto sui generis: uma história ficcional,
estruturada como se fossem anúncios, ocorridos numa progressão cronológica.
Nela, se não são
encontrados diálogos e relação clara entre personagens, encontram-se
importantes elementos de uma narrativa. Há uma situação inicial (primeiro
anúncio) na qual, ao mesmo tempo em que se delineiam as características da
personagem principal (e única nomeada), acontece o primeiro passo da busca para
suprir uma carência e resolver um problema (a falta de um marido).
O problema não se
resolve de imediato, o que mostram os outros anúncios (2 a 4) já analisados, nos
quais a personagem diminui as exigências, como se numa tentativa de resolver,
ao menos parcialmente, sua solidão.
O narrador,
aparentemente ausente, revela-se em pormenores que podem passar despercebidos
em uma leitura desatenta. Um desses detalhes é o significativo (e irônico, o
leitor percebe, ao final) nome da rua – da Esperança –, que desaparece dos
textos finais, indiciando que a esperança ingênua foi substituída pelo progressivo
desalento. O detalhe das datas, que se vão distanciando, reforça essa ideia de
desesperança.
► Ambos os
aspectos – ausência de endereço e espaçamento de datas – anunciam a não solução
do problema e o desfecho trágico, que vem em forma de anúncio fúnebre: quem se
manifesta é, agora, a família de Maria Joana.
O dedo mordaz do
narrador acentua-se, neste anúncio final, em um comunicado de morte recheado de
clichês: a carente e solitária Maria Joana passa a ser “sempre
lembrada”, “ente querido”.
E, ironia derradeira,
“pede-se não enviar flores” a quem amava
flores; e omite-se o endereço do local de sepultamento...
► Resta
comentar o título que, a esta altura, mostra-se perfeitamente coerente.
“Notícias” (ou “Notícias de Joana”, como li em algum lugar) “dá notícias” sobre
Maria Joana. Sob forma não convencional, o conto narra o conflito psicológico
que atormenta a personagem, a tentativa de resolvê-lo e a não resolução final.
Despeço-me, esperando
que o leitor e a leitora tenham apreciado o texto tanto quanto eu; e que
descubram mais detalhes, além dos expostos acima.
Talvez, quem sabe,
alguém se aventure a criar um final diferente para o conto: mais suave ou mais
cruel, mais otimista ou mais pessimista...
Quem o fizer, por
favor, compartilhe conosco!
Meu abraço.
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