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Portinari |
Quantos crimes, quanta violência
presenciamos, não é, amigos leitores? Quantos caminhos sofridos têm percorrido
nossas vidas, especialmente se habitamos grandes cidades...
Mais que tudo, tira-me o sossego (e
tenho certeza de que também os preocupa) a condição de crianças e jovens que ainda
tão pouco viveram e, muitas vezes, já conhecem o sofrimento da fome, do frio,
das agressões físicas e morais, da discriminação, do abuso sexual.
Questões assim, tão prementes, parecem
silenciar as “inúteis” questões artísticas, como as que tratamos aqui, e
podem-nos tornar melancolicamente passadistas. Num momento em que me deixei levar por tal
estado de espírito, pensei ironicamente em Camões que, em Os Lusíadas, no século XVI, pede silêncio às Musas, para cantar
feitos e heróis de Portugal, pois “que outro valor mais alto se alevanta”1. Se aqui e agora vivesse,
quem sabe o poeta pediria que as Musas se calassem, não mais para exaltar a construção
épica de uma nação, mas para deplorar um “terror mais alto” que sangra e arruína,
de forma nada heroica, grupos e comunidades de uma sociedade adoentada.
No entanto, quer nos situemos no
passado, quer no presente, é necessário lembrar, relembrar, afirmar, reafirmar
que as Musas, por trás de sua aparente inocuidade, têm o poder de gerar
movimentos internos e externos. Dizendo de outro modo, se a Arte (qualquer que
seja a linguagem) é inútil, como dizem2, ela é também necessária – até
(ou principalmente...) nos momentos dolorosos, em que as pessoas se paralisam e
se petrificam.
Do contrário, não teríamos a
eternização de obras como Guernica,
de Picasso; Os Retirantes, de Portinari;
Vozes d´África, de Castro Alves;
inúmeras canções de Chico Buarque, Caetano, Edu Lobo... É infinita a lista de obras
que permanecem impressivas, por representarem e apontarem aspectos da vida
humana que necessitam ser repisados / reprisados para despertar consciências.
A arte, diz Fischer, “é necessária
para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo.”3 O que a faz mais que necessária –
imprescindível – é seu poder de cutucar a alma do homem e, assim, arrancá-lo da
inércia.
E como (infelizmente!) os erros humanos se
repetem, tais obras conservam-se atuais e não perdem sentido, mesmo frente a
gerações e épocas diferentes da História. Quero dar um pequeno exemplo – um
texto de Drummond –, para o qual peço sua companhia leitora.
1 CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas; Canto I. Disponível em: http://www.citi.pt/ciberforma/ana_paulos/ficheiros/lusiadas.pdf.
2 Oscar Wilde, em seu prefácio a O Retrato de Dorian Gray, afirma: “Toda
arte é completamente inútil”. Entenda-se: inútil, porque não utilitária.
3 FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1983.
Essas Meninas
As alegres meninas que
passam na rua, com suas pastas escolares, às vezes com os seus namorados. As
alegres meninas que estão sempre rindo, comentando o besouro que entrou na
classe e pousou no vestido da professora; essas meninas; essas coisas sem
importância.
O uniforme as
despersonaliza, mas o riso de cada uma as diferencia. Riem alto, riem musical,
riem desafinado, riem sem motivo; riem.
Hoje de manhã estavam
sérias, era como se nunca mais voltassem a rir e falar das coisas sem
importância. Faltava uma delas. O jornal dera notícia do crime. O corpo da
menina encontrada naquelas condições, em lugar ermo. A selvageria de um tempo
que não deixa mais rir.
As alegres meninas,
agora sérias, tornaram-se adultas de uma hora para outra; essas mulheres.
[ANDRADE,
Carlos Drummond de. Contos plausíveis
(1ª ed.). Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.]![]() |
Portinari |
Ficção e realidade
Sobre
o título do livro em que se insere o texto registrado acima – Contos Plausíveis –, escreve o próprio autor,
fornecendo pistas de leitura e sentido:
Esses contos (serão contos?) não são plausíveis na acepção
latina de merecerem aplausos. São plausíveis no sentido de que tudo neste
mundo, e talvez em outros, é crível, provável, verossímil. Todos os dias a
imaginação humana confere seus limites, e conclui que a realidade ainda é maior
do que ela.
Não posso dizer, verdadeiramente, que os escrevi. Escreveram-se
no dia a dia do Jornal do Brasil, sem a intermediação de forças misteriosas.
Queriam existir como estórias, ocuparam papel e hoje formam livro.
Preste
atenção, leitor: “a imaginação humana confere seus limites, e conclui que a
realidade ainda é maior do que ela”. De
fato, este conto (na verdade, crônica, como tantas publicadas “no dia a dia do
Jornal do Brasil”, veículo em que Drummond trabalhou de 1969 a 1984) faz-nos recordar
informações reais que excedem a imaginação, como as dolorosas notícias de
violação de crianças e adolescentes, que se repetem ano a ano, gerando
indignação.
São
vários os discursos e movimentos dedicados a combater tão terrível problema.
Cito o exemplo de campanha de 2015, denominada “Quanto custa a violência sexual
contra meninas?” , em que a Plan
International (organização voltada à
proteção dos direitos de crianças e jovens) buscou convencer e levar a
sociedade à ação de combate a essa tipo violência. Registro alguns trechos, em
que se listam dados objetivos e ações programadas:
Cerca de 50 mil casos de estupro são denunciados todos os anos
no Brasil, mas estima-se que isso represente menos de 10% do total de casos. [...]
O cenário é ainda pior quando se considera o universo infantil.
Uma série de situações previstas como crime no Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), em que adultos se aproveitam da fragilidade das crianças [...].
A campanha ‘Quanto Custa a Violência Sexual contra as Meninas?’
pretende promover e qualificar o debate sobre a violência sexual contra as
meninas que já chega a mais de meio milhão de casos por ano no Brasil. Para
isso, além de peças de comunicação e ações em mídias sociais, contará com uma
rede de organizações de todos os setores na realização de iniciativas pelo
Brasil, desde a exibição do filme India’s Daughter e debates [...] elaboração
de materiais informativos sobre a identificação de abuso e violência sexual.
Comparada
a dados e a propostas de ações como essas, uma pequena história como a de
Drummond terá alguma força argumentativa? Conseguirá promover mobilização? Se
pensarmos que ela foi/é lida por um grupo letrado restrito, frequente
consumidor de textos jornalísticos e literários (impressos ou digitalizados),
concluiremos que sempre será pequeno seu alcance e poder.
Por
outro lado, se observarmos sua linguagem simples (mas não fácil...), sua
dimensão e caráter quase fabular, próprios da transmissão oral – à semelhança
de contos e historietas de entreter e ensinar que se contavam a grupos de
crianças e de adultos –, chegaremos à conclusão de que, por trás de sua
simplicidade, o texto cumpre sutilmente a função de mover e comover o interlocutor – razão pela qual vale pararmos
um pouco mais sobre ele.
Emoção e argumentação
Não
é fácil esquecer este pequeno “conto plausível” de Drummond: muitos concordarão
comigo, quando digo que ele nos chama para mais de uma leitura, sem perder seu
dom de emocionar.
Qual
a causa? Certamente, porque nos remete a casos reais de agora e à nossa
experiência de vida. Contudo, há outro motivo,
e este é seu rigor construtivo (tão drummondiano!), que merece uma visada mais
atenta.
As
poucas linhas podem ser divididas em dois blocos de sentido, dois flashes de um
antes (parágrafos 1, 2) e de um depois (parágrafos 3,4), dois estados
diferenciados e bem definidos das personagens.
No
primeiro parágrafo, os verbos de ação – passar
(na rua), rir, comentar – compõem aparentemente uma cena de movimento, mas
estão, em verdade, a serviço da descrição do estado de alegria (notem o
gerúndio): são as “alegres meninas”, que “passam [...] com seus namorados” e
“estão sempre rindo, comentando [...]”.
Observem
com o parágrafo termina: “essas meninas; essas coisas sem importância”. Por certo,
as “coisas sem importância” não são as meninas, mas ligam-se estreitamente a
elas, ao resumir o caráter de brincadeira e leveza de suas vidas, que permitem comentar
coisas tão supérfluas e divertidas como o besouro na roupa da professora.
E,
se o leitor ainda não apreendeu o verdadeiro sentido – a alegria descuidada – do
início do conto-crônica, o segundo parágrafo o aclara definitivamente. Além de
identificá-las enquanto grupo (“o uniforme as despersonaliza”), o cronista as
reúne e as diferencia por meio do riso. As repetições acumulam e dão facetas
desse riso, marcam a brejeirice de suas vidas adolescentes: “riem alto, riem
musical, riem desafinado, riem sem motivo; (e finalizando e sintetizando tudo)
riem”.
Nesse
primeiro bloco (1º e 2º parágrafos), a par das repetições assinaladas, frases
longas e verbos de ação no presente detalham características de um rotineiro viver
descuidado de “coisas sem importância”.
À
suavidade desse estado, vai se contrapor o segundo bloco. A passagem – a
mudança brusca – é indicada por marcas temporais: “Hoje de manhã estavam sérias, era como se nunca mais voltassem a rir e falar das coisas sem importância”.
A
partir dessa inversão, as frases curtas, quase telegráficas, com verbos no passado,
dão conta do fato violento e de suas consequências.
Notemos,
ainda, os principais substantivos deste segundo bloco: jornal, notícia, crime, corpo, menina, condições, lugar, selvageria,
mulheres. Ou, melhor ainda, em suas relações textuais: notícia do crime, corpo da menina, naquelas condições, lugar ermo,
selvageria de um tempo, essas mulheres.
Se
os compararmos aos do primeiro bloco (meninas,
pastas escolares, namorados, besouro, vestido, uniforme), perceberemos um
campo semântico bastante diferente, que dá todo o caminho da mudança de estado.
Por
fim, na frase final, a marca temporal “agora” presentifica o novo estado das
(outrora) meninas: sérias, adultas, mulheres.
Ao
leitor, o derradeiro cutucão emocional, a derradeira chamada para fazer aflorar
sua indignação é dado pela retomada de expressões iniciais, mas transformadas:
Antes, “alegres meninas”, depois, “sérias”; antes, “essas meninas”, depois,
“essas mulheres”.
A
interrogação-título da campanha de 2015 a que me referi – “Quanto Custa a
Violência Sexual contra as Meninas?” – encontra reposta no texto conciso e
contundente do poeta. Custa, principalmente, o sofrimento e o amadurecimento
prematuro de jovens, custa a mudança de foco e de comportamento de pessoas que,
muito cedo, aprendem que o relacionamento humano comporta traições e acarreta
medo e desconfiança.
Assim,
a crônica de Drummond configura-se, ao mesmo tempo, poética e
argumentativamente. Nossa leitura mostrou sua intenção argumentativa, seu
caráter pedagógico (capaz de abalar afetivamente o leitor) de mostrar a causa e
suas consequentes e infelizes transformações.
Como
pudemos verificar, se esta crônica emociona, não é apenas devido ao fato de que
nos faz lembrar casos reais, mas, também, graças à sua fina elaboração enquanto
linguagem organizada poeticamente. Sua força argumentativa vem exatamente
disso: de seu poder de sedução, de seu poder de recriar, no leitor, um espanto
(negativo, no caso) perante a vida, semelhante àquele que deve ter movido o
escritor ao criá-lo.
Drummond,
por certo, apoiaria estas palavras de Ferreira Gullar sobre o fazer poético (o grifo é meu):
Sobre poesia eu não penso,
eu simplesmente faço: a minha poesia nasce do espanto. Qualquer coisa pode
espantar um poeta, até um galo cantando no quintal. Arte é uma coisa
imprevisível, é descoberta, é uma invenção da vida. E quem diz que fazer poesia
é um sofrimento está mentindo: é bom, mesmo quando se escreve sobre uma coisa
sofrida. A poesia transfigura as coisas, mesmo quando você está no abismo. A
arte existe porque a vida não basta.
[Entrevista de Ferreira Gullar,
disponível em: http://g1.globo.com/pop-arte/flip/noticia/2010/08/arte-existe-porque-vida-nao-basta-diz-ferreira-gullar.html.]
Um adendo
A escritora Noemi Jaffe, em entrevista publicada na Revista Época de
28/07/2017, foi questionada sobre o poder da literatura frente à violência
social. É outro olhar, outra voz sobre o assunto abordado acima; bem por isso,
julgo importante transcrever sua resposta à pergunta: “A literatura pode nos
ajudar a ver?”
Noemi
Jaffe – A literatura não é muito poderosa, não. Em termos de
transformações sociais e políticas, é pouco o que a literatura pode fazer. Num
país como o Brasil, pouca gente lê. Apesar de poder fazer pouco, a literatura é
capaz de fazer com que os indivíduos que se deixam tocar e mobilizar pela
palavra literária se sintam um pouco deslocados em relação à vida que levam. E
isso é importante. A vida é complicada, exige que a gente viva num tipo de
trilho. Se a gente sai do trilho, não consegue fazer tudo o precisa fazer. Mas
a literatura permite que saiamos do trilho, que nos desloquemos. E, nesse
deslocamento, a gente abre os olhos e percebe o quanto não estamos nos
espantando. A literatura parte do espanto e provoca o espanto, mas não é capaz
de mudar o mundo.
[Entrevista completa em: epoca.globo.com/cultura/noticia/2017/07/noemi-jaffe-literatura-causa-espanto-mas-nao-muda-o-mundo.html.]
[Entrevista completa em: epoca.globo.com/cultura/noticia/2017/07/noemi-jaffe-literatura-causa-espanto-mas-nao-muda-o-mundo.html.]
Até outro dia.
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