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Meninos brincando - Portinari |
São muitos os artistas que deixam
transparecer, em suas obras, vivências que a memória conservou. Por essa via,
sensações, sentimentos e impressões abandonam o status individual, para se
tornarem propriedade de uma coletividade, que delas toma conhecimento.
A infância é parte importante da
retomada do passado, enquanto impulso ou inspiração para o fazer artístico. Lembremos
Portinari, na pintura, e os quadros que registram os jogos infantis de sua meninice
em Brodowski, sua cidade natal. Lembremos, ainda, as obras musicais de
compositores clássicos que elegeram o folclore de seus países e, dentro do
folclore, os temas infantis como inspiração: Villa-Lobos com as Cirandas,
Schumann com as Cenas Infantis, Khatchaturian com as Aventuras de Ivan e
outros.
Na literatura, podem ser encontrados autores
que deixaram testemunho explícito de como experiências infantis e adolescentes de
leitura, escrita e contação de histórias influenciaram suas obras e em sua
opção pelo ofício de escrever. Circunscrevendo a visada apenas ao Brasil,
lembro alguns nomes (aliás, já citados em matérias anteriores, neste mesmo blog¹): Ana Maria Machado, Bartolomeu
Campos de Queirós, Ângela Lago, Marina Colasanti, Ricardo Azevedo, Tatiana
Belinky.
Em grande número, também, são os
escritores que se utilizam de cenários, personagens e situações dos primeiros
anos, para compor alguns de seus textos, em verso ou prosa. A visada
memorialística é bastante variada: pode ser melancolicamente saudosista,
alegremente rememorativa, simplesmente registradora de fatos ou, até, crítica e
revisionista. Entretanto, há sempre o olhar sensível e a competência artística
a unificar escritos tão variados.
Em matéria imediatamente anterior a
esta, relacionada à memória literária como fonte de compreensão da vida (01/06/2017),
comentei textos de Munduruku, Bandeira, Quintana
e Drummond. Os que agora registro têm, como traço de semelhança, a expressão da
memória (ainda e quase sempre da infância) como fonte de inspiração ou de impulso
para o ato escritor do adulto.
¹ Para os três
primeiros citados, ver http://www.embuscadaautoria.com/2014/09/a-construcao-leitora-e-escritora-tres.html,
de 08/09/2014. Para os seguintes, ver http://www.embuscadaautoria.com/2014/09/mais-tres-autores-memorias-inspiradoras.html,
de 16/09/2014.
► Bartolomeu
Campos de Queirós
As palavras de Bartolomeu Campos de Queirós, ditas em
entrevista de 2011, expressam a influência do círculo afetivo da infância sobre
o escritor maduro (em azul, trechos marcantes):
Meu avô
tinha um encantamento com as palavras. Eu fui aprendendo com ele a cultivar
esse encantamento. Lembro
que na casa dele tinha uma copa muito grande. Ele ficava sentado na ponta da
mesa fazendo cigarros para o dia seguinte. Havia um Cristo crucificado na
parede. De vez em quando, ele levantava a cabeça e falava para mim: “Sofreu,
né? Sofreu demais. Sofreu tanto. Mas morreu gordo, você não acha?”. Era toda
uma trama que me deslocava. Já fui criado com a
metáfora. Tive uma infância junto com as metáforas. Outra coisa que me
ajuda na literatura é ter nascido de sete meses. Fui sempre muito fraquinho.
Era miúdo, fraco, tratado com cuidado. Quando
adoecia, a mãe chamava o médico por via de dúvida. Mas por via de dúvida, ela
mandava benzer; e por via de dúvida, acendia uma vela; e por via de dúvida, me
dava um chá e eu, então, melhorava por via de dúvida. Depois, cheguei a uma
conclusão: Quem sabe as coisas faz livro didático e quem não sabe faz
literatura. Se você tem uma coisa a afirmar, você não tem que fazer
literatura. Literatura é uma conversa sobre as dúvidas. [...] A minha mãe era uma leitora. Não havia em casa literatura
infantil. Eu lia os livros que a minha mãe lia: A toutinegra do moinho
(Emílio Richebourg), As mulheres de bronze (Xavier de Montépin). Também ficou
uma coisa que hoje conto sem problemas. Quando a minha mãe morreu, eu tinha
seis para sete anos. Ela ficou doente por muitos anos. Eu sempre a conheci um
pouco doente. Minha mãe cantava muito bonito, ela era soprano. Quando a dor era
muito forte, quando a dor pesava muito, sabíamos que a morfina não era
suficiente, a minha mãe cantava. Ela cantava umas cantigas de Carlos Gomes. A
voz dela atravessava a casa e o quintal. Então, a
gente sabia que ela estava com muita dor. Outro dia, estava pensando que eu
também, quando dói muito, escrevo. É a mesma coisa. Quando pesa muito, eu
escrevo. Hoje, não fico na janela como meu avô ficava. Mas fico o tempo
todo em frente ao Windows. Trocamos os lugares, mas continuamos na janela.
[Disponível em: http://rascunho.com.br/bartolomeu-campos-de-queiros/]
► Manoel
de Barros
Que autor pode ser mais emblemático do que Manoel de
Barros, quando se trata de abordar a infância como fonte de inspiração? O
leitor atento facilmente percebe, em suas obras, o brincar com palavras e
ideias, comumente presente no universo infantil.
O eu lírico, indefectivelmente, lembra aquele “menino que carregava água na peneira”,
cuja mãe profetizava: “Meu filho, você
vai ser poeta! / Você vai carregar água na peneira a vida toda” (cf.matéria de 12/10/2014 - Ensinamentos de criança-poeta).
De fato, a palavra vira brinquedo de fazer ideias, e a
realidade só existe enquanto reinvenção permanente na /da poesia. Como está em “Autorretrato”:
[...]
Produzi desobjectos, 35,
mas pode que onze.
Cito os mais bolinados: um alicate cremoso, um
abridor de
amanhecer, uma fivela de prender silêncios,
um prego que
farfalha, um parafuso de veludo,
etc. etc.
Tenho uma confissão: noventa por cento do que
escrevo é
invenção; só dez por cento que é mentira.
Quero morrer no barranco
de um rio: – sem moscas
na boca descampada.
[Disponível em:
http://bibliotecariodebabel.com/literatura-brasileira./quatro-poemas-de-manoel-de-barros.]
Eis outra confirmação, pelo próprio escritor, de que as
“raízes crianceiras” forjaram seu ofício – e que sua “poetagem” não é, em
última análise, mais que “outro tipo de peraltagem”:
Manoel
por Manoel
Eu tenho um ermo enorme
dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho
saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é
o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando
eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não
havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que
pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido
e igual a um filhote de gafanhoto.
Cresci brincando no chão,
entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.
Porque se a
gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua
aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu
trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu
sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e
que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido
criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com
ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o
rio. Era o menino e as árvores.
[BARROS, Manoel de. Memórias inventadas – As Infâncias de Manoel
de Barros. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010. Disponível em:
http://pontodeencontrocomaliteratura.blogspot.com.br/2013/11/a-poesia-de-manoel-de-barros.html]
► Carlos Drummond de Andrade
Em agosto de 1987, pouco antes de falecer, Drummond, em
entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto, deixou um testemunho de seus
motivos para escrever (e, junto, de humildade ante sua obra). Um trecho
significativo: “Eu acredito que a poesia
tenha sido uma vocação, embora não tenha sido uma vocação desenvolvida
conscientemente ou intencionalmente. Minha motivação foi esta: tentar resolver,
através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia,
incompreensão e inadaptação ao mundo”².
Talvez que esta “inadaptação ao mundo” tenha levado tantas
vezes o poeta de volta às memórias de sua cidade, Itabira, e de sua infância.
Em verdade, a raiz da inadaptação é localizada justamente em seu passado
itabirano e no que lá deixou. Veja-se o que o sujeito poético expressa no poema
que se segue.
² Trecho extraído de
www.casadobruxo.com.br/poesia/c/entrevista.htm.
Confidência
do Itabirano
Alguns anos vivi em
Itabira.
Principalmente nasci em
Itabira.
Por isso sou
triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro
nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro
nas almas.
E esse
alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me
paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas
noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que
tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
[...]
Tive ouro, tive gado, tive
fazendas.
Hoje sou funcionário
público.
Itabira é
apenas uma fotografia na parede.
Mas como
dói!
[ANDRADE,
Carlos Drummond de. Sentimento do Mundo. In Reunião – 10 livros de poesia. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1974.]
Difícil escolher, entre tantos, apenas um ou dois textos
memorialísticos de Drummond. Quero registrar mais um, com algum remorso pela
exiguidade, e não sem certo sentimento de injustiça para com outros, igualmente
importantes.
Em “Infância”, o eu lírico desenha com detalhes a vida da família
interiorana e do menino já iniciante nas artes dos livros. Reparem que os
verbos, todos no imperfeito, marcam com insistência o caráter contínuo e
rotineiro da cena, que se constitui na própria matéria de construção poética, bem
mais importante que os conhecimentos livrescos, como o final deixa claro.
Infância
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
– Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
[ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia. In Reunião – 10 livros de poesia. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1974.]
► Hilda
Hilst
Fechando, por ora, o tema “memórias”, deixo a você
leitor/a, um texto que sintetiza o que vimos até agora e acentua o universo infantil
de descobertas, espantos, sonhos e fantasias que, de tão marcantes, chegam a se
sobrepor à vida do adulto e ao fazer do poeta.
Mais, não digo... Deixo a quem me lê, por exemplo, o prazer
de desvendar pontos do poema que indicam a transformação, pela arte do poeta,
do silêncio da criança “tão confundida”.
Testamento
lírico
Se quiserem saber se pedi
muito
Ou se nada pedi, nesta
minha vida,
Saiba, senhor, que sempre
me perdi
Na criança que fui, tão confundida.
À noite ouvia vozes e
regressos.
A noite me falava sempre
sempre
Do possível de fábulas. De
fadas.
O mundo na varanda. Céu
aberto.
Castanheiras douradas. Meu
espanto
Diante das muitas falas,
das risadas.
Eu
era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das
palavras.
Nem soube dizer das
aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas
amantes.
O
que vivia em mim, sempre calava.
E não sou
mais que a infância. Nem
pretendo
Ser outra, comedida. Ah,
se soubésseis!
Ter escolhido um mundo,
este em que vivo
Ter rituais e gestos e
lembranças.
Viver secretamente. Em
sigilo
Permanecer aquela, esquiva
e dócil
Querer
deixar um testamento lírico
E escutar (apesar) entre
as paredes
Um ruído inquietante de
sorrisos
Uma boca de plumas,
murmurante.
Nem sempre
há de falar-vos um poeta.
E ainda que
minha voz não seja ouvida
Um dentre
vós resguardará (por certo)
A criança que foi. Tão confundida.
[HILST, Hilda. Da Poesia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2017.]
Ah!, não resisti: sugiro, ainda, um “jogo” ou “brincadeira”
ledora, para este derradeiro texto: procurem ler apenas as linhas isoladas (que
marquei em itálico) e chegar a outro viés de leitura, percebendo com mais
clareza a quem se destina o testamento lírico.
Reparem que o primeiro verso isolado (“Na criança que fui, tão confundida”) refere-se ao eu
poético. O último, que encerra o texto, transforma-se ligeiramente, para
dirigir-se e encaminhar o poema-testamento à memória infantil daquele leitor,
ou seja, daquela possível “criança que foi.
Tão confundida”.
Agora, sim: abraços!
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