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Dia das Mães...
Parece que intenções e sentimentos
contrastantes acompanham a data, desde seu início:
Historicamente, o Dia das Mães moderno surgiu nos Estados Unidos
a partir da iniciativa de uma mulher chamada Anna Jarvis, que queria homenagear
sua mãe, Ann Maria Reeves Jarvis, nascida em 1832.
Casada com um pastor metodista, Ann teve 12 filhos, mas só viu
quatro deles chegarem à idade adulta. Na época, as condições de higiene eram
muito precárias e as crianças frequentemente morriam por doenças como diarreia.
Preocupada com isso, ela fundou centros (Mothers’ Day Work Clubs) em diversas
cidades para tentar melhorar as condições de higiene e saúde das crianças e
suas famílias e diminuir a mortalidade infantil. [...]
O caráter e o ativismo de Ann influenciaram profundamente sua
filha, Anna, que ficou muito entristecida com a morte da mãe. Para tentar
amenizar essa dor e também homenagear o legado de Ann, Anna e algumas amigas
fizeram uma homenagem às mães na igreja que frequentavam, no dia 12 de maio de
1907. [...]
Anos depois de o Dia das Mães ser incluído no calendário oficial
dos EUA, Anna preocupou-se com o caráter meramente comercial de que a data
estava se revestindo. Para ela, limitar a comemoração aos presentes seria
distorcer o verdadeiro sentido do Dia das Mães.
[http://pt.aleteia.org/2016/05/05/voce-sabe-como-surgiu-o-dia-das-maes/]
[http://pt.aleteia.org/2016/05/05/voce-sabe-como-surgiu-o-dia-das-maes/]
A oscilação entre o desejo sincero de
homenagear e o impulso “teleguiado” para consumir viajou no tempo e no espaço: hoje, como ontem, Dia das Mães pode significar dia de mãe receber afetos e afagos, ou
dia de filho espremer o bolso e consumir, para alegria do comércio...
Também é bom não esquecer que o Dia
das Mães – como Natal, Ano Novo e outras festas cíclicas grupais e sociais –
gera outro tipo de oposição, a de sentimentos: alegria versus tristeza, euforia versus
depressão, ansiedade versus
indiferença. E a Literatura, com sua “mania” de dizer a vida, contempla essas
vertentes opositivas (com seus matizes intermediários) e oferece ao leitor
tanto o texto risonho, com palavras demonstradoras de amorosa alegria, quanto
seu oposto, a verbalização de angústias e de sofrimentos variados.
Talvez porque o nosso seja um tempo de
incertezas e desequilíbrios, inclino-me, hoje, à segunda tendência, e trago
textos que abordam dores e instituem a dolorosa falta, na delicada relação
mãe-filho.
São dois: um poema e uma crônica.
► O
filho sem mãe
A crônica de Utzeri, O triste sono sem mãe, lança um olhar
angustiado a feridas sociais que estremecem o universo familiar – neste caso, o
menor abandonado à própria sorte. A leitura (e mais o realce das letras
coloridas) revelará a peculiaridade desse olhar.
O
triste sono sem mãe
Na manhã fria de
Ipanema, o menino dorme
um sono profundo. Estaria sonhando? Enrolado numa
manta, encolhido para proteger-se do frio, falta
algo àquele menino sem nome no dia de festa. O Dia das Mães. Quem será a mãe do menino? Por que não estão juntos nesse dia, como tantos filhos e tantas mães, de todas as idades, que
brincam na praia e fazem grandes filas em churrascarias, exibindo presentes?
Como ele, centenas de meninos, milhares de meninos, em
todo o Brasil, não tiveram a alegria de ver as mães em seu dia.
Dorme o menino, alheio a trabalhos de especialistas que registram aumento
do consumo de cola de sapateiro entre os menores de rua nesses dias de festa. A droga-cola, que alivia, ajuda a fugir do triste dia a dia e
acaba por matar.
O que esperar desse menino
que dorme? O que cobrar dele mais tarde? Provavelmente
a sociedade lhe reserva repulsa e repressão e, se tiver sorte, chegará a
ser um adulto. Que tipo de adulto? Inocente e indefeso, dorme o menino. Está só, todos passamos
indiferentes por ele quando o vemos em sinais, vendendo doces, limpando vidros,
pedindo esmola.
Por que tem de ser assim?
Que tipo de vida e de sociedade leva uma mãe a abandonar sua cria à própria
sorte? Nem os animais fazem isso, mas as circunstâncias, muitas vezes, obrigam
o ser humano a ser mais insensível do que os bichos. O que vamos fazer todos, a
começar pelo governo das estatísticas sem alma? Esse menino não seria
consequência de um modo de conduzir a sociedade? Não seria melhor que os
políticos e governantes prestassem mais atenção nele e na legião de sem-mães
que assolam nossas ruas? E nós, o que vamos fazer a respeito? Não seria a hora
de, pelo menos no dia das mães, pensar um pouco a respeito disso?
Dorme o menino,
na frieza dura da pedra,
e se pudesse sonhar, sonharia com o calor macio do regaço materno, com uma
canção de ninar, cheia de carinho. Dorme o menino,
dorme com frio...
[UTZERI, Fritz. Jornal
do Brasil, 1º Caderno.
15/05/2000.
Disponível em: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=18949]
Disponível em: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=18949]
Comentários
No registro do texto, a contraposição
de duas cores de letras ajuda-nos a perceber o modo como o cronista descreve e
avalia duas distintas visões do Dia das Mães, fortemente atreladas ao enorme
desequilíbrio entre duas faixas sociais. De um lado (em azul), nós – os privilegiados – que “passamos
indiferentes” ante o outro lado: a brutalidade de uma infância perdida pela
droga (cola, crack, dá no mesmo) e, especialmente, pelo abandono por parte de
instituições públicas e da sociedade.
O olhar afetivo e preocupado do
cronista revela-se na linguagem. Vale ressaltar:
> As
repetições
A frase “o menino dorme” percorre todo o texto, como a não deixar que o
leitor esqueça a enormidade do horror: o
menino dorme um sono profundo / Dorme o menino, alheio / menino que dorme /
Dorme o menino, na frieza dura da pedra / Dorme o menino, dorme com frio...
> A
adjetivação
Não basta reiterar que “o menino
dorme”. É preciso descrever como e por que dorme: em condições precárias –
enrolado, encolhido, alheio (às
estatísticas sobre drogas), inocente, indefeso, com frio – e nas quais
falta o essencial: sem nome, sem mãe.
> As
interrogações
Os argumentos em defesa do menino são
feitos mediante sucessivas perguntas retóricas (parágrafos 3 e 4) que, antes de
apenas interrogar, afirmam a omissão de todos: do “governo das estatísticas sem alma” à sociedade – ou seja, a nós,
que “passamos
indiferentes por ele”.
Essas interrogações produzem ao menos
dois efeitos: em primeiro lugar, enfatizam o tom emocional e de libelo do
cronista. Em segundo, incluem o leitor, chamam-no a refletir, a avaliar, a
responder, a se indignar também, a buscar soluções.
> Um
acalanto?
Fácil perceber a emoção crescente construída
na linguagem, e que vai aumentando até o final. A coroação emotiva vem no
último parágrafo, em que cessam as perguntas e são retomadas as ideias de sono e sonho da introdução. A pergunta inicial – “estaria sonhando?” – é, então, substituída pela constatação /
afirmação, uma vez mais, da impossibilidade e da carência: “Dorme o menino, na frieza dura da pedra, e se
pudesse sonhar, sonharia com o
calor macio do regaço materno, com uma canção de ninar, cheia de carinho” .
Na frase final, fica ao leitor uma
leve percepção de que o cronista, ele próprio, procura suprir a falta, e ninar
o menino (notem a repetição do verbo e as reticências):
“Dorme
o menino, dorme com frio...”
► A mãe sem o filho
O
triste sono sem mãe lembra,
pelo tema da falta, da ausência e do sofrimento, o poema O
menino de sua mãe, de Fernando Pessoa. Se o cenário, o “campo de batalha” é
diverso, as consequências devastadoras que esfrangalham vidas e afetos são
semelhantes.
O
menino de sua mãe
No
plano abandonado
Que a
morna brisa aquece,
De
balas trespassado
—
Duas, de lado a lado —,
Jaz
morto e arrefece.
Raia-lhe
a farda o sangue.
De
braços estendidos,
Alvo,
louro, exangue,
Fita
com olhar langue
E cego
os céus perdidos.
Tão
jovem! que jovem era!
(Agora
que idade tem?)
Filho
único, a mãe lhe dera
Um
nome e o mantivera:
«O
menino da sua mãe».
Caiu-lhe
da algibeira
A
cigarreira breve.
Dera-lha
a mãe. Está inteira
E boa
a cigarreira.
Ele é
que já não serve.
De
outra algibeira, alada
Ponta
a roçar o solo,
A
brancura embainhada
De um
lenço... Deu-lho a criada
Velha
que o trouxe ao colo.
Lá
longe, em casa, há a prece:
«Que
volte cedo, e bem!»
(Malhas
que o império tece!)
Jaz
morto, e apodrece,
O
menino da sua mãe.
[PESSOA, Fernando. Cancioneiro. In Fernando Pessoa – Obra
poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977.]
Comentários
Como na crônica, o leitor
encontra, aqui, o tratamento afetivo do tema. Vejamos como isso se dá.
Nas duas primeiras
estrofes, o eu lírico descreve o corpo morto, realçado, por contraste, pelo
cenário. Reparem nas oposições entre “a
morna brisa [que] aquece” e o corpo, que “jaz morto e arrefece”.
Assim, também, as cores
contrapõem o branco (do jovem) e o vermelho (do sangue), como se o corpo não
fosse mais que uma paisagem clara, de onde brota e escorre o rio vermelho: “Raia-lhe a farda o sangue [...] Alvo, louro,
exangue”.
Infere-se, inclusive, o
contraste entre olhar e ver: os olhos fitam os céus, mas o olhar
(“langue e cego”) já é incapaz de
ver. Aliás, a bela imagem “os céus
perdidos” transfere para o cenário o vazio dos olhos mortos.
Na terceira estrofe, a
pontuação expressiva e as repetições revelam o espanto do eu lírico frente ao
abandono e à separação entre mãe e filho: “Tão
jovem! que jovem era! / (Agora que idade tem?)”
O peso da ruptura fica
ainda maior, com a confirmação dos antigos laços. O jovem soldado não é “sem
nome e sem mãe”, como na crônica de Utzeri. Ao contrário, revela um passado de
tal maneira enriquecido pelo amor materno, que é nomeado “o menino da sua mãe”.
As
duas estrofes seguintes (4ª e 5ª) comprovam o ambiente afetuoso, onde, além da
mãe, há a velha criada, a darem-lhe presentes e cercá-lo de proteção, no
passado. A segurança do lar (mãe, criada, colo, presentes) ainda existe, mas
não acompanha o filho no campo de batalha, como atestam os versos: “Está inteira / E boa a cigarreira. / Ele é que já não serve”, pois teve
a vida abreviada. Daí, “a cigarreira breve” – outra vez, a contaminação de um
elemento (a cigarreira) por outro (a vida do jovem: esta, sim, breve).
Daí,
também, a última estrofe, em que se contrapõem as duas realidades: a do lar,
onde se reza pelo regresso, e a do campo, onde o menino perde a vida e, com
ela, a capacidade de ser “o menino da sua
mãe” – esta, por sua vez, despojada de seu “filho único”.
► Pergunta
final
Querido/a leitor/a, em uma
comemoração como o Dia das Mães, se não for dos que ignoram a data, onde e como
você se situa: junto aos rotineiramente consumistas, ou aos alegremente
afetuosos? Ainda: a comemoração lhe desperta sorrisos e sentimentos doces, ou
olhares sombrios e reflexões melancólicas?
Esperando sua resposta,
deixo meu abraço.
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