Eduardo Galeano, no seu Livro dos
Abraços, tem várias e deliciosas crônicas, que flagram a sensibilidade
feminina, em diferentes circunstâncias. Fiz delas uma pequena seleção, que
ofereço à leitora e ao leitor, ainda pensando no Mês da Mulher.
Afinal, como ensina Amós Oz, a leitura
consegue nos aprofundar na compreensão do outro, mais do que a própria
observação da realidade: “como leitor,
[você] observa não só a mulher que olha pela janela. Está com ela dentro da sua
casa, e até dentro da sua cabeça” (matéria de 08/03/2017).
Vamos aos textos.
O
tempo
Alejandra é a mulher, ainda menina, mas já capaz de empatia.
Numa dessas noites – me conta Alejandra
Adoum – a mãe de Alina estava se preparando para sair. Alina a olhava, enquanto
a mãe, sentada na frente do espelho, pintava os lábios, as sobrancelhas e
passava pó-de-arroz no rosto. Depois a mãe experimentou um vestido, e outro, e
pôs um colar de coral negro, e uma tiara nos cabelos, e irradiava uma luz limpa
e perfumada. Alina não desgrudava os olhos.
– Como eu gostaria de ter a tua idade –
disse Alina.
– Eu, em compensação... – sorriu a mãe
– daria qualquer coisa para ter quatro anos, como você.
Naquela noite, ao regressar, a mãe
encontrou-a acordada. Alina abraçou suas pernas com força.
– Morro de pena de você, mamãe –
disse, soluçando.
As
formigas
Tracey consegue dar sentido ao que vê e ao que faz. A menina,
capaz de imaginar e incorporar dor e angústia, levará a experiência (e o
remorso?) por muito tempo. Observem a fina ironia de Galeano e, mais ao fim, a
descrição das formigas, feita de modo a provocar a piedade do leitor.
Tracey Hill era menina num povoado de
Connecticut, e se divertia com diversões próprias de sua idade, como qualquer
outro doce anjinho de Deus no estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar
deste planeta.
Um dia, junto a seus companheirinhos
de escola, Tracey se pôs a atirar fósforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram
muito daquele sadio entretenimento infantil; Tracey, porém, ficou impressionada
com uma coisa que os outros não viram, ou fizeram como se não vissem, mas que
deixou-a paralisada e deixou nela, para sempre, um sinal na memória: frente ao
fogo, frente ao perigo, as formigas separavam-se em casais e assim, de duas em
duas, bem juntinhas, esperavam a morte.
Andanças/2
A premonição faz parte da sensibilidade feminina. Ouvir o vento,
interpretar seus movimentos e ruídos é parte da comunhão com a natureza, que
acompanha a mulher ancestral.
Não foi um vento errante, desses que
vagabundeiam de déu em déu, mas uma senhora ventania certamente disparada lá do
distante litoral quente até a cidade de Medellín, através das montanhas e dos
países. O vento chegou até a casa de Jenny e atravessou-a de ponta a ponta: de
repente abriu-se a porta da frente, como se tivesse sido chutada por algum
bêbado, e em seguida abriu-se a porta dos fundos, da mesma violenta maneira.
Jenny, então, soube. Restabelecida a
calma, até o ar duvidava, o ar machucado; mas ela sabia. E a lavadeira, que
morava longe, na cidadezinha de La Pintada, também sabia: estava enxaguando
roupa com água da chuva, naquela mesma meia-noite, quando sentiu que havia
alguém às suas costas:
– Eu a vi, menina. Posso jurar.
A notícia chegou a Medellín por
telegrama, na manhãzinha seguinte, mas já não era necessária: à meia-noite de
ontem, morreu Paula López, mãe de Jenny, muito amiga da lavadeira, na distante
cidade de Guayaquil.
Profecias/1
Se a premonição faz parte da sensibilidade feminina, como negar
crédito à mulher que é maga e, portanto, privilegiada por seus dons sobrenaturais?
No Peru, a maga cobriu-me de rosas
vermelhas e depois leu a minha sorte. A maga anunciou: – Dentro de um mês,
receberás uma distinção. Eu ri. Ri pela infinita bondade da mulher
desconhecida, que me presenteava com rosas e bons presságios e ri por causa da
palavra distinção, que tem um sei lá o quê de cômica, e porque me veio à cabeça
um velho amigo do bairro, que era muito tosco mas muito certeiro, e que
costumava dizer, sentenciando, levantando o dedo: "Cedo ou tarde, os
escritores se hamburguesam". E então ri; e a maga riu da minha risada.
Um mês depois, exatamente um mês
depois, recebi em Montevidéu um telegrama. No Chile, dizia o telegrama, tinham
me outorgado uma distinção. Era o prêmio José Carrasco.
A
paixão de dizer/1
A mulher de Oslo, contadora de histórias, tem o poder
encantatório de fazer reviver personagens e histórias.
Marcela esteve nas neves do Norte. Em
Oslo, uma noite, conheceu uma mulher que canta e conta. Entre canção e canção,
essa mulher conta boas histórias, e as conta espiando papeizinhos, como quem lê
a sorte de soslaio.
Essa mulher de Oslo veste uma saia
imensa, toda cheia de bolsinhos. Dos bolsos vai tirando papeizinhos, um por um,
e em cada papelzinho há uma boa história para ser contada, uma história de
fundação e fundamento, e em cada história há gente que quer tornar a viver por
arte de bruxaria. E assim ela vai ressuscitando os esquecidos e os mortos; e
das profundidades desta saia vão brotando as andanças e os amores do bicho
humano, que vai vivendo, que dizendo vai.
A
casa das palavras
No sonho, Helena Villagra percebe que as palavras vivem: têm
sons, movimentos, sabores, odores e cores.
Na casa das palavras, sonhou Helena
Villagra, chegavam os poetas. As palavras, guardadas em velhos frascos de
cristal, esperavam pelos poetas e se ofereciam, loucas de vontade de ser
escolhidas: elas rogavam aos poetas que as olhassem, as cheirassem, as tocassem,
as provassem. Os poetas abriam os frascos, provavam palavras com o dedo e então
lambiam os lábios ou fechavam a cara. Os poetas andavam em busca de palavras
que não conheciam, e também buscavam palavras que conheciam e tinham perdido.
Na casa das palavras havia uma mesa
das cores. Em grandes travessas as cores eram oferecidas e cada poeta se servia
da cor que estava precisando: amarelo-limão ou amarelo-sol, azul do mar ou de
fumaça, vermelho-lacre, vermelho-sangue, vermelho-vinho...
[GALEANO,
Eduardo. O Livro dos abraços. Trad. Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM,
2002. Disponível em
www.anarquista.net/wp-content/uploads/2013/03/O-Livro-dos-Abra%C3%A7os-Eduardo-Galeano.pdf]
Ao
fim e ao cabo...
O que fiz foi apenas um recorte do
autor, a que você, leitora ou leitor, poderá querer juntar outros exemplos. Se
for o caso – se os textos lembraram outros, de Galeano ou não –, que tal
sugeri-los ou reparti-los por esse blog?
Um abraço esperançoso.
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