Já escrevi sobre a necessidade –
premência, mesmo – de que a Poesia tenha seu merecido lugar na escola e na vida.
E coloquei-me em boa companhia para isso (matéria "Lugar de Poesia é...", de 26/01/2017); afinal, viver
sem Poesia é caminhar em terreno árido e frio. Ouso dizer que só a Poesia – em
seu mais amplo sentido – é criadora; e que, por ela, o Universo fica mais
inteligível ao ser humano.
E é com essa visão – de encontrar
poesia, sempre – que apresento a você, leitor, uma pequena narrativa... em prosa.
Adianto que ela está presente em vários livros didáticos, prestando-se ao
estudo de interpretação de texto e de características do gênero ‘narrativa’.
Contudo, eu o convido a ir além, e a apreciá-la com olhos poéticos, a fim de saborearmos não só a beleza inerente à
história, mas, também, o quanto a forma sensível de apresentar o tema leva o
leitor a refletir sobre aspectos importantes da vida. Afinal, como diz Morin:
Literatura,
poesia e cinema devem ser considerados não apenas, nem principalmente, objetos
de análises gramaticais, sintáticas ou semióticas, mas também escolas de vida,
em seus múltiplos sentidos.¹
Meu convite não para aí.
Espero, ainda, que o leitor seja meu companheiro de viagem por meandros do texto que levam à descoberta da Poesia, no seio da inspirada escrita em
prosa da autora do conto, Ana Maria Machado. Para tanto, partiremos do original, que conta a vida de um simples espantalho; e o faremos parando, comentando,
sublinhando e colorindo o texto aqui e ali, com o objetivo de aprofundar e
ampliar nossa compreensão.
¹ MORIN,
Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a
reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
Disponível em: uesb.br/labtece/artigos/A%20Cabeça%20Bem-feita.pdf.
Fiapo de trapo
Nossa primeira parada,
bem ao início da leitura, é para que você, leitor amigo, preste atenção
ao título, pois voltaremos a ele, ao final.
Pronto? Agora, o conto em si. Desde o começo, o
espantalho já aparece com uma marca de diferença – que o distingue de um
simples objeto de espantar pássaros –, não apenas pela fala do narrador, como
também pelas palavras da personagem Dito Ferreira. As características positivas
do espantalho (beleza, elegância etc.) são reforçadas exatamente pelo jogo
entre narrador e Dito, um confirmando o que o outro diz:
1 Espantalho tão
bonito e elegante nunca se tinha visto por aquelas redondezas. Nem por outras,
que ele era mesmo carregado de belezas. Precisava só
ouvir a conversinha do Dito Ferreira enquanto montava o espantalho, todo
orgulhoso do seu trabalho.
2 – Nunca vi coisa
igual. O patrão caprichou de verdade. Vai botar no campo um espantalho com
roupa de gente ir à festa na cidade.
3 E era mesmo. Tudo roupa velha, claro, como convém a um
espantalho que se preza. Mas da melhor qualidade, roupa de se ir à igreja em
dia de procissão e reza.
4 Dito Ferreira
mostrava todo prosa:
5 – Esse chapéu é de
um tal de veludo. E vejam que beleza essa camisa cor-de-rosa. Tem até coração
bordado... O patrãozinho pensou em tudo. Com uma gravata de seda, fez esse
cinto estampado. Até a palha do recheio é toda macia e cheirosa.
6 Não é que era mesmo, a danada? Tinha um perfume forte,
que ajudava a espantar a passarada.
7 Ah, porque é
preciso também dizer que aquilo tudo dava certo, funcionava tanto... O
espantalho elegante era mesmo um espanto. Passarinho nem chegava perto. E lá
ficava sozinho, espetado no milharal deserto.
O leitor atento já
deve ter percebido a presença de rimas. Pois bem: rima, palavras em eco, são
elementos nem sempre desejáveis na prosa. Mas, aqui, a rima, o ritmo e a sonoridade
“funcionam” para acentuar o conteúdo afetivo da narrativa. Com o uso dessa
linguagem – entre prosa e poesia –, o narrador “poetiza” o espantalho, que não
é apenas “coisa”, com função utilitária, mas quase humano; tinha um coração e sentia, o que era, do ponto de vista prático,
um defeito: eis o conflito da
narrativa, que se anuncia com o uso de “só que” e “mas”. É um conflito
interior, no coração do próprio espantalho, personagem principal:
8 O patrão ficava
feliz com um defensor tão eficiente. Dito Ferreira se alegrava com aquela
figura imponente. Que espantalho diferente! Só que eles nem sabiam que diferença
era essa.
9 Como todo
espantalho, esse não andava nem falava, mas tinha o dom de poder sentir as coisas ao seu
jeito – para um boneco de palha, isso era um grande defeito.
As marcas da narração
mostram que o narrador pende para o espantalho, é-lhe solidário. (Ver parágrafos
10 a 17: seleção de adjetivos, repetição de palavras e pontuação.) Na verdade,
o narrador conduz a descrição de modo a levar o próprio leitor a se ligar
afetivamente ao espantalho:
10 E era só por causa do desenho que tinha bordado no peito. Linhas
de cor em forma de coração – e pronto, lá estava o pobre espantalho sofrendo
com a solidão! Ninguém se aproximava
dele, ninguém fazia um carinho, e ele ficava tão triste, só,
espantando passarinho....
11 De longe via uma
passarada, de todo tipo e feição. Pintassilgo e saíra, cambaxirra e corruíra,
rolinha e corrupião. Pássaro de toda cor, de todo canto e tamanho, de todo
a-e-i-o-u – sabiá, tiê, bem-te-vi, curió e nhambu.
12 Vontade de chamar:
13 – Vem cá me ver,
bem-te-vi! Vontade de mostrar:
14 – Tico-tico, olha
lá o teco-teco!
15 Mas não adiantava.
Ninguém chegava perto. E o tempo passava. Horas e dias,
dias e semanas, semanas e meses, meses e anos.
16 E o espantalho
ficava no tempo. No bom tempo
e no mau tempo. No sol que queimava e na chuva que molhava. No mormaço que
fervia e no vento que zunia.
17 E seu cheiro se
gastava, sua cor se desbotava, sua seda desfiava, seu veludo se puía.
Caro
leitor, reparou nos tempos verbais do bloco acima (tinha / estava / aproximava
/ fazia / ficava etc.)? Verbos no pretérito imperfeito, mostrando ação contínua
num passado. Pois, repare que essa
continuidade é quebrada, a seguir, pelo “até que um dia” do parágrafo 18, com
reforço do 19.
Depois
disso, tudo muda na narrativa. Delicie-se com o modo de contar essa mudança: a
descrição da chuvarada, a volta do sol e dos passarinhos:
18 Até que um dia...
19 No tempo tem sempre um dia. Um dia em que muda o tempo e um
tempo novo se inicia.
20 Pois foi o que
aconteceu. Houve um dia em que choveu. Mas não foi chuva miúda, foi pra valer,
de verdade, foi mesmo um deus nos acuda, uma imensa tempestade, de granizo,
raio, vendaval, com aguaceiro e temporal, chuva de muito trovão que virou
inundação.
21 Quando a chuvarada
passou e o sol voltou, um arco-íris no céu se formou. E na beleza do dia novo,
azul lavado, vieram os pássaros, em bando assanhado, ocupando todo o campo,
ciscando no milharal. Livres, soltos, à vontade, numa alegria sem igual.
22 Foi aí que Dito
Ferreira reparou:
23 – Cadê o
espantalho velho?
Agora, o desfecho do conto,
mostrando como o conflito do “pobre espantalho” resolveu-se positivamente; e
como o título do conto faz todo o sentido:
24 Saiu todo mundo
procurando. Não acharam. Nem podiam achar. Ele tinha
desmanchado, tinha sido carregado, pelo vento espalhado, pela chuva semeado,
com a terra misturado, plantado naquele chão, sua palha adubando muito pé de
solidão.
25 Do que sobrou por
aí, foi tudo virando ninho protegendo com carinho filhotes que iam nascer. Veludo em trapos, seda em
farrapos, coração bordado em fiapos,
maciezas boas de se aquecer.
26 E hoje em dia, sua
palha misturada na terra ajuda a plantação a crescer.
27 Os trapos de sua seda, o seu forro de bom cheiro, farrapos de seu veludo se espalham desde o galinheiro
até a mais alta árvore que tenha um ninho barbudo.
29 E em cada ovo que
nasce ali por aquele lugar, cada ninhada que se achega à procura de calor, em
cada vida a brotar, em cada marca de amor, seu coração sobrevive num fiapinho de cor.
[MACHADO, Ana Maria. Quem perde
ganha. Nova Fronteira, Rio de Janeiro. 1985.]
Lugar de poesia é também na prosa!
Resta enfatizar o quanto o modo poético
de contar a história harmoniza-se com o lirismo das ações narradas e,
principalmente, de sua principal personagem, o espantalho. De fato, é possível
mudar a formatação do texto e escrevê-lo em versos, valendo-se do ritmo e da
rima – o que nos fará ver claramente sua poeticidade.
Observando ritmo, rima, ecos e paralelismos,
ficará fácil ao leitor (e ao estudante, sem dúvida: anote, professor/a)
verificar a magia de uma linguagem que, por sua construção, auxilia e reforça a
compreensão dos sentidos do texto, acentuando o predomínio do valor afetivo sobre o utilitário, representado pela humanização do espantalho.
Por isso, peço que continuemos nossa
viagem, para empreendermos o voo criativo de transformar a prosa em poema e
descobrirmos outras possibilidades de leitura.
Fiapo
de trapo como poema
Uma observação inicial
e geral: sempre que há comentário do narrador, o ritmo da linguagem tende para
a prosa. Quando a narrativa focaliza o espantalho, a linguagem – ritmo, rima,
jogo sonoro – tende para a poesia.
Fiapo de Trapo
Na
descrição, uso de rimas, mas ritmo mais frouxo. Isso irá se repetir, sempre que
houver comentário do narrador:
Espantalho tão bonito e elegante nunca se
tinha visto por aquelas redondezas.
Nem por outras, que ele era mesmo carregado
de belezas.
Precisava só ouvir a conversinha do Dito
Ferreira
enquanto montava o espantalho,
todo orgulhoso do seu trabalho.
– Nunca vi coisa igual. O patrão caprichou de
verdade.
Vai botar no campo um espantalho com roupa de
gente ir à festa na cidade.
E era mesmo. Tudo roupa velha, claro, como
convém a um espantalho que se preza.
Mas da melhor
qualidade, roupa de se ir à igreja em dia de procissão e reza.
Ritmo um pouco mais marcado, quando o foco é o espantalho:
Dito Ferreira mostrava todo prosa:
– Esse chapéu é de um tal de veludo.
E vejam que beleza essa camisa cor-de-rosa.
Tem até coração bordado...
O patrãozinho pensou em tudo.
Com uma gravata de seda,
fez esse cinto estampado.
Até a palha do recheio
é toda macia e cheirosa.
De
novo, em descrição e fala do narrador, uso de rimas, mas ritmo mais frouxo:
Não é que era mesmo, a danada? Tinha um perfume forte, que ajudava a espantar
a passarada.
Ah, porque é preciso
também dizer que aquilo tudo dava certo,
funcionava tanto...
Ritmo um pouco mais marcado, quando o foco é o espantalho:
O espantalho elegante
era mesmo um espanto.
Passarinho nem chegava perto.
E lá ficava sozinho,
espetado no milharal deserto.
O patrão ficava feliz
com um defensor tão eficiente.
Dito Ferreira se alegrava
com aquela figura imponente.
Que espantalho diferente!
Só que eles nem sabiam que diferença era
essa.
Como todo espantalho, esse não andava nem falava,
mas tinha o dom de poder
sentir as coisas ao seu jeito
– para um boneco de palha,
isso era um grande defeito.
E era só por causa do desenho
que tinha bordado no peito.
A
seguir, a pontuação expressiva, bem como a palavra “só” (que, propositalmente,
coloquei isolada) orientam o sentido.
A
notar, também, a repetição de “ninguém”, que marca a solidão do espantalho, em
contraposição à quantidade e variedade de pássaros mencionados. O leitor pode
fechar os olhos e visualizar toda essa imensa solidão...
Linhas de cor
em forma de coração
– e pronto, lá estava o pobre espantalho sofrendo
com a solidão!
Ninguém se aproximava dele,
ninguém fazia um carinho,
e ele ficava tão triste,
só,
espantando passarinho...
De longe via uma
passarada,
de todo tipo e feição.
Pintassilgo e saíra,
cambaxirra e corruíra,
rolinha e corrupião.
Pássaro de toda cor,
de todo canto e tamanho,
de todo a-e-i-o-u
– sabiá, tié, bem-te-vi,
curió e nhambu.
Vontade de chamar:
– Vem cá me ver, bem-te-vi!
Vontade de mostrar:
– Tico-tico, olha lá
o teco-teco!
Narrador:
Mas não adiantava.
Ninguém chegava perto.
Contagem
do tempo: paralelismo e repetição das palavras:
E o tempo passava.
Horas e dias,
dias e semanas,
semanas e meses,
meses e
anos.
E o espantalho ficava no tempo.
No bom tempo e no mau tempo.
No sol que queimava
e na chuva que molhava.
No mormaço que fervia
e no
vento que zunia.
Ritmo
ligeiramente mais rápido:
E seu cheiro se gastava,
sua cor se desbotava,
sua seda desfiava,
seu veludo se puía.
Até que um dia...
Ritmo mais lento:
No tempo tem
sempre um dia.
Um dia em que
muda o tempo
e um tempo
novo se inicia.
Pois foi o que aconteceu.
Houve um dia em que choveu.
Ritmos
mais rápido e mais lento, em alternância:
Mas não foi chuva miúda,
foi pra valer, de verdade,
foi mesmo um deus nos acuda,
uma imensa tempestade,
de granizo, raio, vendaval,
com aguaceiro e temporal,
chuva de muito trovão
que virou inundação.
Quando a chuvarada passou
e o sol voltou,
um arco-íris no céu se formou.
E na beleza do dia novo,
azul lavado,
vieram os pássaros,
em bando assanhado,
ocupando todo o campo,
ciscando no milharal.
Livres, soltos, à vontade,
numa alegria sem
igual.
Parada:
ritmo lento, bem mais prosa que poesia.
Foi aí que Dito Ferreira reparou: – Cadê o
espantalho velho?
Saiu todo mundo
procurando. Não acharam. Nem podiam achar.
Volta
do ritmo marcado. A partir daqui, deixo ao leitor o prazer de descobrir rimas e
ritmos, continuando a leitura que já fizemos.
Ele tinha desmanchado,
tinha sido carregado,
pelo vento espalhado,
pela chuva semeado,
com a terra misturado,
plantado naquele chão,
sua palha adubando
muito pé de solidão.
Do que sobrou por aí,
foi tudo virando ninho
protegendo com carinho
filhotes que iam nascer.
Veludo em trapos,
seda em farrapos,
coração bordado em fiapos,
maciezas boas de se aquecer.
E hoje em dia, sua palha misturada na terra
ajuda a plantação a crescer.
Os trapos de sua seda,
o seu forro de bom cheiro,
farrapos de seu veludo
se espalham desde o galinheiro
até a mais alta árvore
que tenha um ninho barbudo.
E em cada ovo que nasce
ali por aquele lugar,
cada ninhada que se achega
à procura de calor,
em cada vida a brotar,
em cada marca de amor,
seu coração sobrevive
num fiapinho de cor.
Ao
fim da viagem...
Eu me sentiria muito feliz se você,
professor (e também se você estudante e apreciador), fizesse bom uso deste e de
outros materiais do blog.
Muitas vezes, o que nos falta, é
alguém que nos ajude a ver com olhos de leitor sensível. Essa tarefa pode ser
de todo bom leitor, mas destina-se, especial e tradicionalmente, ao professor.
Por isso, a ele me dirijo, neste final, com palavras que tomei de empréstimo:
“...O que realmente precisa é de
um professor leitor. Um que descubra a poesia escondida no dia a dia, que leia
poemas. Porque, se ele aprende a olhar com olhos de poesia, então ele muda o
olhar sobre a palavra. E ajuda o aluno a mudar também.” [Christina
Dias e Marô Barbieri, no artigo Poesia,
criança & escola, via Internet.]
Meu abraço a todos, desejando que
possamos, sempre, usufruir da Poesia da Vida.
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