A compreensão do que lemos depende de várias e diferentes condições. Por exemplo, de qualidades intrínsecas ao texto – como clareza, conexões bem feitas, coesão entre ideias, adequação do título.
Entretanto, tal compreensão depende, também, de particulares do leitor – como ter conhecimento da língua e do assunto a ser tratado, além de conseguir relacionar o que lê àquilo que já conhece, por experiência de vida e de outras leituras.
É
essa experiência de leitor que
focalizo hoje, para comentar a relação que tem com uma parte específica do
texto: seu título.
Não
nos damos conta, geralmente, mas o título é a primeira “cutucada” em nossos
prévios conhecimentos, enquanto leitores. Chama-nos a acionar o que já sabemos,
até a respeito do gênero a que pertence
o que lemos.
Assim, “A abelha e o urso”, ou “A princesinha
dos cabelos cacheados” remetem-nos preferencialmente à literatura de ficção. São
nossos saberes, adquiridos em leituras anteriores, que aqui nos ajudam: o
título com animais faz lembrar vários semelhantes, como “A cigarra e a formiga”,
“A rã e o boi”, “A raposa e as uvas”, que reconhecemos serem introdutórios de
pequenas historietas do gênero fábula. “A princesinha dos cabelos cacheados” poderá fazer-nos pensar em títulos de contos de fada, que tantas vezes ouvimos e lemos na infância, como
“A princesa do grão de ervilha”, “A menina dos cachinhos dourados”.
Não
seria o mesmo, se o título fosse “A vida das abelhas e dos ursos”, ou “Como
manter por mais tempo seus cabelos cacheados”, concordam? Porque o primeiro apontaria, quem sabe, para um texto de explicação / divulgação
científica; o segundo, para um texto instrucional, uma orientação estética.
O outro lado
Ah!,
quantos meandros comporta o estudo do texto...
Meu
assunto continua a ser a relação título
X conhecimentos prévios. Entretanto, meu ponto de vista, agora, será outro.
Em
matéria anterior (30/08/2016), comentei as brechas na compreensão que podem ser
causadas pela falta de título. Quero
mostrar, agora, o inverso: como a mesma falta de título pode ser (ao menos
parcialmente) suavizada pelos conhecimentos prévios do leitor.
Para
isso, peço, antes, a leitura do fragmento de narrativa sem título, que transcrevo a seguir .
_____?_______
Acordou. Levantou-se. Aprontou-se. Lavou-se. Barbeou-se.
Enxugou-se. Perfumou-se. Lanchou. Escovou. Abraçou. Beijou. Saiu. Entrou.
Cumprimentou. Orientou. Controlou. Advertiu. Chegou. Desceu. Subiu. Entrou.
Cumprimentou. Assentou-se. Preparou-se. Examinou. Leu. Convocou. Leu. Comentou.
Interrompeu. Leu. Despachou. Conferiu. Vendeu. Vendeu. Ganhou. Ganhou. Ganhou.
Lucrou. Lucrou. Lucrou. Lesou. Explorou. Escondeu. Burlou. Safou-se. Comprou.
Vendeu. Assinou. Sacou. Depositou. Depositou. Depositou. Associou-se.
Vendeu-se. Entregou. Sacou. Depositou. Despachou. Repreendeu. Suspendeu.
Demitiu. Negou. Explorou. Desconfiou. Vigiou. Ordenou. Telefonou. Despachou.
Esperou. Chegou. Vendeu. Lucrou. Lesou. Demitiu. Convocou. Elogiou. [...]
O
que acharam, soou compreensível? Sentiram necessidade de ler uma vez mais, ou
de voltar atrás na leitura?
Creio
que, por ser diferente do usual, esse conjunto de palavras cause estranhamento.
À primeira vista, assemelha-se, até, a mera listagem para estudo do pretérito
perfeito de verbos – decoreba para a escola...
Quem
lê, provavelmente, reluta em perceber que são “palavras tecidas em texto” –
ligadas, conectadas para apresentar uma ideia organizada. Contudo, aos poucos,
formam-se imagens na cabeça do leitor experiente – e elas têm a ver com o mundo
que ele já conhece.
Observem:
os verbos expressam ações da vida diária e, em sua sucessão, compõem cenas de
antes e depois, que, em sua articulação, delineiam uma pequena narrativa, referente
a uma só personagem – sem nome próprio, é verdade; porém, com atuação
profissional definida.
E
qual seria, então, sua ocupação/profissão? Certamente, ninguém deve ter pensado
em padeiro, professor, faxineiro, ator...
Ah,
e por que só citei personagens masculinas? Por que não: atriz, faxineira etc.? Simples:
porque o gênero masculino está
determinado em uma ação específica:
uma só, mas esclarecedora. Notaram?
(Trata-se de “Barbeou-se”. )
Vamos
em frente, em nossa pesquisa leitora / detetivesca.
Ao
ler “Ganhou. Ganhou. Lucrou. Lucrou.
Lucrou. Lesou. Explorou. Escondeu. Burlou. Safou-se.” – o leitor de hoje (infelizmente!!)
poderia até pensar em algum político...
Mas
não. A sequência de ações encaminha o pensamento para outro alguém. Talvez
um comerciante, porque, além de lucrar e ganhar, pratica outras ações que lhe são próprias: “Despachou. Conferiu. [...]. Comprou. Vendeu. Assinou. Sacou.
Depositou. [...] Repreendeu. Suspendeu. Demitiu
.”
Contudo,
não um modesto comerciante (que pouco vende e pouco lucra), pois as repetições dão conta da grandeza das
transações: “Ganhou. Ganhou. Ganhou.
Lucrou. Lucrou. Lucrou. [...] Depositou. Depositou. Depositou.”
Concluindo,
pode-se pensar em um executivo e/ou dono de empresa de porte considerável, com autoridade para examinar,
ler, convocar, comentar, interromper, despachar, vender, ganhar, lucrar,
repreender, suspender, demitir etc. Concordam comigo?
Por
esse fragmento de narrativa, podemos, ainda, conferir algumas características a tal executivo. Possui
algum laço afetivo (“Abraçou. Beijou.”);
é profissional de sucesso (volto às repetições: “Ganhou. Ganhou. Ganhou. Lucrou. Lucrou. Lucrou.” etc.) e de poder (“Ordenou. Telefonou. Despachou. [...]
Demitiu. Convocou.”); finalmente, sua moral deixa a desejar (“Lesou. Explorou. Escondeu. Burlou. Safou-se. [...] Sacou.
Depositou. Depositou. Depositou. Associou-se. Vendeu-se. [...] Negou. Explorou.”).
É
possível, também, perceber alguns dos espaços
onde acontecem as ações (não todos, uma vez que o texto não está registrado por
inteiro). De início, uma casa onde mora ou onde dorme: “Acordou. Levantou-se. Aprontou-se. Lavou-se. Barbeou-se. Enxugou-se.
Perfumou-se. Lanchou. Escovou. Abraçou. Beijou. Saiu.”
Em
seguida, algum prédio com escada ou elevador, onde tem escritório: “Entrou. Cumprimentou. Orientou.
Controlou. Advertiu. Chegou. Desceu. Subiu. Entrou. Cumprimentou. Assentou-se.”
Acrescento um
dado, que a leitura integral do texto (ver abaixo) deixará ainda mais claro: a
posição crítica (e desfavorável) do narrador em relação à personagem, evidenciada pelo exagero das repetições e pela enumeração de ações condenáveis.
Desse
modo, nosso conhecimento de mundo – mais precisamente, da rotina diária pessoal
e profissional de pessoas – permite a nós, leitores,mesmo na ausência do título, inferir que o texto narra,
criticamente, a rotina de um executivo ou empresário.
Para
finalizar, deixo o texto integral, que ajudará a confirmar certos aspectos da
leitura e a descobrir novas pistas e sentidos. Percebam que o título está bem
adequado à narrativa (construída por verbos conjugados, que montam o perfil de
uma personagem).
Boa
leitura!
Como se conjuga um
empresário
Acordou.
Levantou-se. Aprontou-se. Lavou-se. Barbeou-se. Enxugou-se. Perfumou-se.
Lanchou. Escovou. Abraçou. Beijou. Saiu. Entrou. Cumprimentou. Orientou.
Controlou. Advertiu. Chegou. Desceu. Subiu. Entrou. Cumprimentou. Assentou-se.
Preparou-se. Examinou. Leu. Convocou. Leu. Comentou. Interrompeu. Leu.
Despachou. Conferiu. Vendeu. Vendeu. Ganhou. Ganhou. Ganhou. Lucrou. Lucrou.
Lucrou. Lesou. Explorou. Escondeu. Burlou. Safou-se. Comprou. Vendeu. Assinou.
Sacou. Depositou. Depositou. Depositou. Associou-se. Vendeu-se. Entregou.
Sacou. Depositou. Despachou. Repreendeu. Suspendeu. Demitiu. Negou. Explorou.
Desconfiou. Vigiou. Ordenou. Telefonou. Despachou. Esperou. Chegou. Vendeu.
Lucrou. Lesou. Demitiu. Convocou. Elogiou. Bolinou. Estimulou. Beijou. Convidou.
Saiu. Chegou. Despiu-se. Abraçou. Deitou-se. Mexeu. Gemeu. Fungou. Babou.
Antecipou. Frustrou. Virou-se. Relaxou-se. Envergonhou-se. Presenteou. Saiu.
Despiu-se. Dirigiu-se. Chegou. Beijou. Negou. Lamentou. Justificou-se. Dormiu.
Roncou. Sonhou. Sobressaltou-se. Acordou. Preocupou-se. Temeu. Suou. Ansiou.
Tentou. Despertou. Insistiu. Irritou-se. Temeu. Levantou. Apanhou. Rasgou.
Engoliu. Bebeu. Rasgou. Engoliu. Bebeu. Dormiu. Dormiu. Dormiu. Acordou.
Levantou-se. Aprontou-se.
[MINO. Como se conjuga um empresário. In: PINILIA, Aparecida; RIGONI, Cristina;INDIANI,Maria Thereza. Coesão e coerência como mecanismo para a construção do texto. Disponível em: rede.novaescolaclube.org.br/grupo/por-uma-leitura-proficiente/como-se-conjuga-um.]
[MINO. Como se conjuga um empresário. In: PINILIA, Aparecida; RIGONI, Cristina;INDIANI,Maria Thereza. Coesão e coerência como mecanismo para a construção do texto. Disponível em: rede.novaescolaclube.org.br/grupo/por-uma-leitura-proficiente/como-se-conjuga-um.]
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