Na matéria “A ambiguidade e seus
estragos”, de 02/08/2016, registrei o seguinte título de notícia: “Relatora
vota contra autorização para publicar biografias” – que, por sua imprecisão,
distorcia o verdadeiro teor da informação que se queria divulgar, ou seja: que
a relatora de determinado processo era contra a obrigatoriedade de
autorização prévia para a publicação de biografia; e não estava,
como o título fazia supor, desautorizando a publicação em si.
A
verdade é que o mau título pode comprometer, contrariar ou distorcer o
verdadeiro sentido da informação veiculada. Em contrapartida, o bom título pode
antecipar o assunto e, ainda, espicaçar a curiosidade do leitor, levando-o a
proceder à leitura integral do texto.
Imaginemos,
por exemplo, que o leitor ou a leitora encontre, em seu jornal diário, o
título:
Foram trens que passaram em minha vida
A
frase, com um quê “romântico”, poderia ser até o título de uma crônica, não
acham? No entanto, nesse exercício de imaginação que fazemos, a matéria está
publicada na seção “Questões urbanas” de um hipotético jornal, em que vocês, leitores assíduos,
invariavelmente encontram debates que muito interessam ao morador de médias e
grandes cidades. Essa pista faz com que esperem, então... algo relacionado a
trens: quem sabe, a necessidade de se revalorizar o transporte ferroviário? Ou,
então, a moderna (e eterna) carência de trens metropolitanos?
Mas, vamos adiante.
Esqueçam aquele título. Agora, a mesma matéria, no mesmo espaço do jornal, intitula-se:
Esqueçam aquele título. Agora, a mesma matéria, no mesmo espaço do jornal, intitula-se:
A gestão
da mobilidade nas grandes cidades
Neste
segundo caso, em comparação com o anterior, vocês devem estar notando que as palavras permitem prever mais: justificando estar na seção “Questões Urbanas”, o artigo, certamente, irá tratar de mobilidade, problema recorrente em
metrópoles. Em compensação, a frase não delimita um foco, uma vez que não fala
especificamente em “trens”. Dizendo de outro modo: é título mais objetivo no
que se refere ao assunto a ser tratado e, ao mesmo tempo, mais vago (ou amplo) quanto
ao ponto, ou pontos específicos que abordará.
Seria
diferente se fechasse mais:
A gestão
da mobilidade sobre trilhos nas grandes cidades
Ah!
Agora, sim: já sabemos que o artigo não tratará da mobilidade do ciclista, ou
do pedestre, ou de quem se locomove sobre quatro rodas, mas...
Para efeito de
comparação
Pronto.
O último título – A gestão da mobilidade sobre trilhos nas grandes cidades –,
com pequena modificação, ficou claro e direto. E é ele que vamos comparar
àquele primeiro, lembram-se dele? (Foram trens que passaram em minha vida.)
Nas
condições de suporte (jornal) e seção (“Questões Urbanas”) dadas acima, ambos são
possíveis para introduzir a matéria sobre mobilidade urbana; porém, sugerem diferenças significativas – na intenção
do autor e no direcionamento do público leitor. Assim:
A gestão
da mobilidade sobre trilhos nas grandes cidades – além de antecipar com precisão o assunto,
indicia a intenção de alcançar, prioritariamente, leitores interessados em
dados mais técnicos quanto à mobilidade urbana.
Por
outro lado, em Foram trens que passaram em minha vida, o eventual autor do artigo opta por
uma abertura menos técnica, talvez em favor de atrair um universo mais amplo de
leitores, ou seja: não apenas aquele conhecedor e interessado na gestão da
cidade, mas também o cidadão leigo e usuário do transporte coletivo. Para isso,
usa o componente afetivo e a vivência do leitor, isto é: faz
alusão à realidade do usuário – que está acostumado a esperar uma, duas, três conduções – e parafraseia, simultaneamente, um título de canção popular brasileira famosa – “Foi um
rio que passou em minha vida”, de Paulinho da Viola.
Nos títulos, pistas
variadas
Além
de dar mostras do que se vai dizer e de indicar o público leitor, o título pode
revelar a opinião/posição do autor a
respeito do tema abordado. Comparem os títulos que se seguem e infiram, por
eles, a direção argumentativa do texto:
Velhos
casarões: valerá a pena conservar?
Velhos
casarões: é imprescindível conservar
A
opinião incisiva a favor da preservação só se manifesta em um deles. No outro,
o tempo verbal (“valerá”) e a interrogação insinuam um posição dúbia, ou até
contrária à preservação. Em contrapartida, o segundo pode
espicaçar mais a curiosidade do que o primeiro, tão afirmativo.
Nada como a prática...
Ainda
que breves, essas pinceladas permitem depreender que a presença e a escolha do
título não é mera formalidade. Contudo, nada como a prática: para que vocês,
leitores e leitoras, experimentem sua importância para a compreensão do
texto, convido-os à leitura de uma narrativa – editada sem título e com pequenas
alterações.
Proponho
que, ao fim, descubram a identidade da personagem principal.
Convite
(ou desafio...) aceito?
Narrativa
Um dia, ele resolveu fazer uma aliança com os homens.
E por que não? – perguntava. – Tenho coragem, inteligência e,
ainda por cima, sou bonito.
Acontece que, além dessas qualidades, era também muito arrogante
e achava-se o maior e o mais importante de todos os seres vivos. Ora, quem é
assim costuma afastar os outros, em vez de atraí-los.
– Aliar-me a ele? Deus me livre! – horrorizavam-se as pessoas. –
Seria como aliar-me ao próprio Diabo.
– Se não for por bem, vai por mal – ameaçava o arrogante, como
se fosse possível fazer alianças por mal.
Mas até os tiranos têm o seu momento de fraqueza e esse momento
chegou também para ele. Passando por certa campina, avistou uma linda pastora
e, no mesmo instante, apaixonou-se perdidamente por ela.
Não teve dúvidas:
– Já sei como fazer minha aliança com os homens: casando-me com
essa pastora.
Habituado a ver suas vontades atendidas, procurou o pai da moça
e pediu-a em casamento.
Diante daquele pretendente, que pedia em casamento exigindo, que
fazer? O pai ficou de dar uma resposta dentro de dois dias, e o pretendente
retirou-se, não muito satisfeito. Só mesmo por estar tão apaixonado é que
aceitava aquela demora. Era a primeira vez na vida que admitia esperar.
– Prefiro um genro um pouco menos feroz – disse a mãe da moça,
depois que o candidato se foi.
– Eu também – respondeu o pai. – Mas se recusarmos o pedido,
isso pode ser perigoso para a nossa família.
– Pode – concordou a mãe. – E, além do mais, se a resposta for
negativa, tenho medo de que eles se casem às escondidas.
– Imagina se a minha filha vai querer casar-se com ele! –
indignou-se o pai.
– A tua filha não é
diferente das outras moças – respondeu a mãe. – E as moças encantam-se
facilmente por ninharias, como, por exemplo, uma bela cabeleira. Já reparaste
que bonita cabeça ele tem?
O pai foi dormir muito preocupado.
Dois dias depois, o apaixonado veio saber a resposta. E veio
certo de receber um sim. Já não via a hora de ter sua amada só para si.
Ficou muito espantado quando o pai disse:
Eu teria muito gosto nesse casamento, se não fosse uma coisa.
– Ora, mas que coisa? O senhor está me fazendo perder a
paciência! Quero casar-me com a sua filha e está acabado.
– Não há dúvida, não há dúvida! – respondeu o pai. – Mas a minha
filha é uma jovem muito delicada. Unhas longas poderão feri-la, quando o senhor
quiser abraçá-la. Se permitir que sejam aparadas, estará tudo resolvido.
– Bom, bom. Se é só isso, então está bem. Mas que seja logo.
Quero casar-me o quanto antes.
O pai não esperou segunda ordem e mandou aparar-lhe as unhas.
– Está satisfeito agora? – esbravejou o pretendente. – Para
quando marcamos a data?
– Para breve – disse o pai. – Vou consultar minha mulher e
amanhã mesmo dou-lhe uma resposta.
– Eu já estou ficando farto! Se até amanhã não tiver essa tal
resposta, levo a sua filha à força e caso-me com ela, mesmo sem o seu
consentimento.
– Imagine! Não será preciso chegar a tais extremos – disse o
homem. – Sempre foi nosso desejo tê-lo na família. Mas sabe como são as
mulheres: gostam de ser consultadas para tudo.
Resmungando ameaças, o pretendente retirou-se. E só fez isso
porque não queria desagradar à sua eleita.
No dia seguinte, pontualmente, veio saber a resposta.
– Desculpe a insistência – disse o pai, cheio de mesuras –, mas
ainda há um problema: são os seus dentes. Minha mulher acha que é indispensável
limá-los porque, senão, está convencida de que nossa filha não quererá beijá-lo
nunca.
– Mas por quê? – impacientou-se. – São dentes absolutamente
normais.
– Sim, sim. Normais para você. Mas compreenda: ela não está
habituada.
Então, o pobre apaixonado acabou por permitir que lhe serrassem
os dentes.
[...]
Quais são as hipóteses?
Imagino
que, a cada trecho, possa ter-lhes ocorrido um perfil de personagem: um
gigante, um monstro, um vampiro, um...
Claro, não
é sempre que a ausência de título causa tamanha confusão no entendimento de textos. Essa narrativa, como já disse, foi adaptada para fins didáticos, de modo a ter (exemplarmente) nublada sua clareza. Mas, garanto, há muitos outros textos com essas características: redações escolares e... de jornais, revistas, artigos etc.
Entretanto,
sosseguem: o original (uma fábula) vem logo aí, na íntegra. Comparem!
Abraços.
O Leão apaixonado (texto
original)
Um
dia, o Leão resolveu fazer uma aliança com os homens.
E
por que não? – perguntava. – Tenho coragem, inteligência e, ainda por cima, sou
bonito.
Acontece
que, além dessas qualidades, era também muito arrogante e achava-se o maior e o
mais importante de todos os seres vivos. Ora, quem é assim costuma afastar os
outros, em vez de atraí-los.
–
Aliar-me ao Leão? Deus me livre! – horrorizavam-se as pessoas. – Seria como
aliar-me ao próprio Diabo.
–
Se não for por bem, vai por mal – ameaçava o Leão, como se fosse possível fazer
alianças por mal.
Mas
até os tiranos têm o seu momento de fraqueza e esse momento chegou também para
ele. Passando por certa campina, avistou uma linda pastora e, no mesmo
instante, apaixonou-se perdidamente por ela.
Não
teve dúvidas:
–
Já sei como fazer minha aliança com os homens: casando-me com essa pastora.
Habituado
a ver suas vontades atendidas, procurou o pai da moça e pediu-a em casamento.
Diante
daquele pretendente, que pedia em casamento rugindo, que fazer? O pai ficou de
dar uma resposta dentro de dois dias, e o Leão retirou-se, não muito
satisfeito. Só mesmo por estar tão apaixonado é que aceitava aquela demora. Era
a primeira vez na vida que admitia esperar.
–
Prefiro um genro um pouco menos feroz – disse a mãe da moça, depois que o
candidato se foi.
–
Eu também – respondeu o pai. – Mas se recusarmos o pedido, isso pode ser
perigoso para a nossa família.
–
Pode – concordou a mãe. – E, além do mais, se a resposta for negativa, tenho
medo de que eles se casem às escondidas.
–
Imagina se a minha filha vai querer casar-se com um leão! – indignou-se o pai.
– A tua filha não é diferente das outras moças
– respondeu a mãe. – E as moças encantam-se facilmente por ninharias como, por
exemplo, uma bela cabeleira. Já reparaste que bonita juba ele tem?
O
pai foi dormir muito preocupado.
Dois
dias depois, o Leão veio saber a resposta. E veio certo de receber um sim. Já
não via a hora de ter sua amada só para si.
Ficou
muito espantado quando o pai disse:
Eu
teria muito gosto nesse casamento, se não fosse uma coisa.
–
Ora, mas que coisa? O senhor está me fazendo perder a paciência! Sou o Leão,
quero casar-me com a sua filha e está acabado.
–
Não há dúvida, não há dúvida! – respondeu o pai. – Mas a minha filha é uma jovem
muito delicada. Suas garras poderão feri-la, quando o senhor quiser abraçá-la.
Se permitir que sejam aparadas, estará tudo resolvido.
–
Bom, bom. Se é só isso, então está bem. Mas que seja logo. Quero casar-me o
quanto antes.
O
pai não esperou segunda ordem e mandou aparar as unhas do Leão.
–
Está satisfeito agora? – rugiu o pretendente. – Para quando marcamos a data?
–
Para breve – disse o pai. – Vou consultar minha mulher e amanhã mesmo dou-lhe
uma resposta.
–
Eu já estou ficando farto! – urrou o Leão. – Se até amanhã não tiver essa tal
resposta, levo a sua filha à força e caso-me com ela, mesmo sem o seu
consentimento.
–
Imagine! Não será preciso chegar a tais extremos – disse o homem. – Sempre foi
nosso desejo ter um leão na família. Mas sabe como são as mulheres: gostam de
ser consultadas para tudo.
Resmungando
ameaças, o Leão retirou-se. E só fez isso porque não queria desagradar à sua
eleita.
No
dia seguinte, pontualmente, veio saber a resposta.
–
Desculpe a insistência – disse o pai, cheio de mesuras –, mas ainda há um
problema: são os seus dentes. Minha mulher acha que é indispensável limá-los
porque, senão, está convencida de que nossa filha não quererá beijá-lo nunca.
–
Mas por quê? – impacientou-se o Leão. – São dentes absolutamente normais.
–
Sim, sim. Normais para um leão. Mas compreenda: ela não está habituada.
O
Leão acabou por permitir que lhe serrassem os dentes.
–
Bem, espero que agora esteja tudo resolvido – disse, quando o serviço terminou.
–
Sim, está – respondeu o pai. – Passe daqui para fora!
O
Leão ficou pasmo:
–
Como assim? Não estou entendendo!
–
Pensou que eu ia dar a minha filha em casamento a uma fera como o senhor? Tem
muita graça! – zombou o pai.
E
gritou para dentro:
–
Soltem os cães!
Só
então o Leão deu-se conta de que, sem garras e sem dentes, não tinha como
reagir.
Antes
que os cães aparecessem, fugiu com quantas pernas tinha e nunca mais foi visto
pelos arredores.
[ALMEIDA,
Fernanda Lopes de. A lei do mais forte e
outros males que assolam o mundo. São Paulo: Ática, 2007.]
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