Drummond, o artífice de maravilhosos textos
de prosa e poesia, é um deles. E é sua, a deliciosa criação que venho oferecer
aos leitores e leitoras, como complemento ao tema ambiguidade, da matéria
anterior (de 02/08/2016).
Notem a escolha feliz: com apenas uma (1) expressão de sentido dúbio, o autor compõe uma linha ininterrupta de desentendimentos familiares e aponta aspectos da personalidade (especialmente, a paterna) e do relacionamento de personagens.
Notem a escolha feliz: com apenas uma (1) expressão de sentido dúbio, o autor compõe uma linha ininterrupta de desentendimentos familiares e aponta aspectos da personalidade (especialmente, a paterna) e do relacionamento de personagens.
Noite na casa da serra, a luz apagou. Entra o garoto:
– Pai, vó caiu na
piscina.
– Tudo bem, filho.
O garoto insiste:
– Escutou o que eu
falei, pai?
– Escutei, e daí? Tudo
bem.
– Cê não vai lá?
– Não estou com
vontade de cair na piscina.
– Mas ela tá lá...
– Eu sei, você já me
contou. Agora deixe seu pai fumar um cigarrinho descansado.
– Tá escuro, pai.
– Assim até é melhor.
Eu gosto de fumar no escuro. Daqui a pouco a luz volta. Se não voltar, dá no
mesmo. Pede à sua mãe pra acender a vela na sala. Eu fico aqui mesmo,
sossegado.
– Pai...
– Meu filho, vá
dormir. É melhor você deitar logo. Amanhã cedinho a gente volta pro Rio, e você
custa a acordar. Não quero atrasar a descida por sua causa.
– Vó tá com uma vela.
– Pois então? Tudo
bem. Depois ela acende.
– Já tá acesa.
– Se está acesa, não
tem problema. Quando ela sair da piscina, pega a vela e volta direitinho pra
casa. Não vai errar o caminho, a distância é pequena, você sabe muito bem que
sua avó não precisa de guia.
– Por que cê não
acredita no que eu digo?
– Como não acredito?
Acredito sim.
– Cê não tá
acreditando.
– Você falou que a sua
avó caiu na piscina, eu acreditei e disse: tudo bem. Que é que você queria que
eu dissesse?
– Não, pai, cê não
acreditou ni mim.
– Ah, você está me
enchendo. Vamos acabar com isso. Eu acreditei. Quantas vezes você quer que eu
diga isso? Ou você acha que estou dizendo que acreditei mas estou mentindo?
Fique sabendo que seu pai não gosta de mentir.
– Não te chamei de
mentiroso.
– Não chamou, mas está
duvidando de mim. Bem, não vamos discutir por causa de uma bobagem. Sua avó
caiu na piscina, e daí? É um direito dela. Não tem nada de extraordinário cair
na piscina. Eu só não caio porque estou meio resfriado.
– Ô, pai, cê é de
morte!
O garoto sai,
desolado. Aquele velho não compreende mesmo nada. Daí a pouco chega a mãe:
– Eduardo, você sabe
que dona Marieta caiu na piscina?
– Até você, Fátima?
Não chega o Nelsinho vir com essa ladainha?
– Eduardo, está escuro
que nem breu, sua mãe tropeçou, escorregou e foi parar dentro da piscina,
ouviu? Está com a vela acesa na mão, pedindo para que tirem ela de lá, Eduardo!
Não pode sair sozinha, está com a roupa encharcada, pesando muito, e se você
não for depressa, ela vai ter uma coisa! Ela morre, Eduardo!
– Como? Por que aquele
diabo não me disse isto? Ele falou apenas que ela tinha caído na piscina, não
explicou que ela tinha tropeçado, escorregado e caído!
Saiu correndo, nem
esperou a vela, tropeçou, quase que ia parar também dentro d’água.
– Mamãe, me desculpe!
O menino não me disse nada direito. Falou que a senhora caiu na piscina. Eu
pensei que a senhora estava se banhando.
– Está bem, Eduardo –
disse dona Marieta, safando-se da água pela mão do filho, e sempre empunhando a
vela que conseguira manter acesa. – Mas de outra vez você vai prestar mais
atenção no sentido dos verbos, ouviu? Nelsinho falou direito, você é que teve
um acesso de burrice, meu filho!
[ANDRADE, Carlos
Drummond. Vó caiu na Piscina. São
Paulo: Editora Record. Disponível em portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.]
...E
não apenas crônicas
Propagandas, anedotas e tiras também se valem
da confusão de sentidos para efeitos de humor.
Trago um exemplo de anedota colhido no artigo
Análise de Texto Humorístico¹:
A velhota, superantiquada, recomenda à neta:
– Benzinho,
há duas palavras que eu quero que você prometa nunca mais dizer. Uma é bacana e
a outra é nojenta. Você promete?
– Claro,
vovó. E quais são as palavras?
No pequeno texto, a oralidade favorece
a interpretação diversa dada por avó e neta. Observem que, na escrita, a
ambiguidade seria resolvida com o recurso da pontuação... e a piada não
existiria, a menos que a neta fosse má leitora. Mais ou menos como segue:
“A velhota, superantiquada, recomenda à neta: –
Benzinho, há duas palavras que eu quero que você prometa nunca mais dizer. Uma
é: “bacana”; e a outra é: “nojenta”. Você promete? [...]
¹BORGES, Eliana M; FREITAS, Sonia M. P. Análise de
texto humorístico - As piadas. Disponível em: www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno05-05.html.
Para terminar
Muito interessante, Lilian. Beijo e obrigada por nos trazer.
ResponderExcluirAgradeço a leitura e o carinho, Jade. Beijo.
ExcluirMuito interessante, Lilian. Beijo e obrigada por nos trazer.
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