Ah!,
bendita multiplicidade de significados das palavras! A nós, ouvintes ou
leitores, faz pensar mais, voltar ao dito que se “indefine”, para saber o que o
falante ou escritor quis, mesmo, dizer.
Se se
tratar de poesia, então, quanto nos confunde de maneira intrigante e deliciosa!
Manoel de Barros é mestre na arte de torcer significados e criar ambiguidades,
para fazer o leitor “enxergar” mais longe, jogando fora os olhos e a cabeça, a fim
de flagrar sentidos inaugurais, onde antes via apenas o corriqueiro:
Uso um deformante para a voz.
Em mim funciona um forte encanto a tontos.
Sou capaz de inventar uma tarde a partir de uma garça.
Sou capaz de inventar um lagarto a partir de uma pedra.
Tenho um senso apurado de irresponsabilidades.
Não sei de tudo quase sempre quanto nunca.
[...]
[BARROS, Manoel de. Retrato do Artista Quando Coisa. Rio de Janeiro:
Record, 2007.]
Ou:
Caracol
é uma casa que se anda
E a
lesma é um ser que se reside.
[BARROS,
Manoel de. Biografa do orvalho. In Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 2007.]
Mário
Quintana, por sua vez, ensina que nem todos têm sabedoria para alcançar o
êxtase caleidoscópico de sentidos que o mundo oferece ao poeta:
Cada vez que o poeta cria uma borboleta, o leitor
exclama: “Olha uma borboleta!”. O
crítico ajusta os nasóculos e, ante aquele pedaço esvoaçante de vida, murmura: –
Ah! sim, um lepidóptero...
[QUINTANA, Mário.
A borboleta. In Sapo amarelo. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1984.]
No entanto...
A
pluralidade de sentidos concebida pelos artistas da palavra remove a
cristalização da língua, torna-a movente e até imprevisível. No entanto, em
inúmeras situações, o que os usuários necessitam é da segurança de uma
linguagem precisa, pouco sujeita a ambiguidades.
Quando
alguém pergunta ao jornaleiro quando chegará a próxima edição de sua revista
preferida, não espera que a resposta seja à Manoel de Barros: “Não sei de tudo quase sempre quanto nunca”.
De igual modo, o professor de Ciências, na avaliação, não aceitará do aluno a
resposta: “Caracol é uma casa que se anda”.
Por mais
que a ambiguidade seja desejável em poemas, narrativas, crônicas, anedotas e
tiras humorísticas, espera-se de um artigo científico, de um texto didático, de
uma notícia ou reportagem, um grau de objetividade bem distante da linguagem
literária.
Do
contrário, a compreensão fica prejudicada, e não são poucos os possíveis
causadores. Por vezes, a dubiedade provém da frase mal elaborada; outras vezes,
de uma palavra mal colocada ou mal escolhida; outras, ainda, da pontuação
deficiente. E há casos em que o texto todo se apresenta desorganizado e, em
decorrência, pouco inteligível.
Ilustro com alguns exemplos,
colhidos aqui e ali, em livros didáticos, internet e no cotidiano.
Frases
- O ator reclamou das
palmas só no fim do espetáculo.
(O
que incomodou o ator foram as palmas ocorridas apenas no fim, e não antes? Ou
as palmas o incomodaram, mas ele só as criticou quando acabou o espetáculo?)
- Pedro disse a Paulo que
ele está doente.
(Quem
está doente, Pedro ou Paulo?)
- Maria prendeu o dedo de
João na porta do seu carro.
(No
carro de Maria ou de João?)
Cartas
de leitor
Estas duas cartas de
reclamação foram colhidas em sites. Conservam sua essência, mas foram
devidamente editadas, para conservar o anonimato. Reparem na significação
confusa dos trechos sublinhados.
Carta
1 - O leitor reclama da poda de árvores em praça:
Havia
árvores de grande porte, em sua sabedoria a prefeitura "podou" ou
simplesmente exterminou-as deixando a praça sem as mesmas, retirando dos
moradores e demais usuários sem sua sombra e frescor.
Pode-se imaginar que o
remetente da carta vislumbrasse duas formas alternativas de expressar a
consequência da retirada das árvores, a saber:
1. “deixando os moradores e demais usuários sem
sua sombra e frescor.”
2. “retirando dos moradores e demais usuários sua sombra e frescor.”
Entretanto, ao fazer a
seleção das palavras para organizar sua ideia (e optar por uma forma ou outra),
os modos de dizer entrelaçaram-se indevidamente, causando confusão de sentido.
Carta 2 - Este leitor clama
contra a ação predatória de moradores:
Moradores impunemente resolvem exterminar
as poucas árvores ainda restantes, que no mínimo costumam oferecer, no dia a
dia, algumas indispensáveis sombras durante o verão, mas também servindo de
abrigo temporário no período chuvoso quando passar a incomodar os
transeuntes.
Nesta
segunda carta, a imprecisão poderia ser contornada explicitando-se o sujeito (“período
chuvoso” ou “chuva”) da ação de incomodar: “quando a chuva passar a incomodar os transeuntes”.
Ressalte-se, porém, que outros
problemas organizacionais também contribuem para dificultar o entendimento do
texto (a partir de “mas também”). Com algumas modificações, e preservando o
original do autor, o parágrafo ficaria mais claro, por exemplo, assim:
“Moradores impunemente resolvem exterminar as
poucas árvores ainda restantes, que no mínimo costumam oferecer, no dia a dia, não só algumas indispensáveis sombras
durante o verão, mas também abrigo temporário no período chuvoso, quando a chuva vier a incomodar os
transeuntes.”
Ambiguidade em título de matéria jornalística
No texto a seguir, se o leitor se limitar
ao título, deixando de ler o corpo da matéria, entenderá que a ministra não dá
autorização para a publicação de biografia. Entretanto, o caso é bem diferente.
Vamos à leitura, com atenção ao
trecho grifado, que esclarece o verdadeiro sentido.
Relatora vota contra
autorização para publicar biografias
A ministra Cármen Lúcia, do STF, entendeu que pedir
consentimento do biografado seria "censura prévia"
10 JUN 2015- 17h15
A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF),
votou nesta quarta-feira (10) contra autorização prévia para publicação
de biografias não autorizadas. A ministra é relatora da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) da Associação Nacional dos Editores de Livros
(Anel) contra liminares que proíbem o lançamento das biografias. Após o voto de
Cármen Lúcia, nove ministros ainda irão proferir seus votos.
Para a
ministra, é inconstitucional o entendimento de que é preciso autorização prévia
dos biografados para publicação de obras bibliográficas ou audiovisuais.
Segundo ela, o entendimento contrário significa censura prévia. Apesar de
garantir a liberdade aos biógrafos, Cármen Lúcia garantiu que reparação
material poderá ser concedida em casos de abusos.
[Disponível em: noticias.terra.com.br › Notícias ›
Brasil]
Continho e Notícia
Eu reforço:
a interlocução diária pede clareza e precisão. Se “o que se diz” é expresso de
maneira desorganizada (com pontuação deficiente, palavras mal escolhidas ou
frases mal elaboradas, por exemplo), o ouvinte/leitor pode não interpretar do
modo como o emissor esperava, e a incomunicação se fará presente.
Que o digam
o vigário, do conhecido Continho, de Paulo
Mendes Campos; ou o gerente da loja de Guarabira, em episódio noticiado há algum tempo (2015).
No primeiro caso, as
respostas são baseadas numa interpretação ao pé da letra – correta, mas não
usual – das perguntas feitas, prejudicando o diálogo. No segundo caso, o
anúncio com informação (intencionalmente ou não) pouco clara tem o condão de
atrair o consumidor, mas... o resultado não é o esperado.
Vamos aos textos.
Continho
Era
uma vez um menino triste, magro e barrigudinho, do sertão de Pernambuco. Na
soalheira danada de meio-dia, ele estava sentado na poeira do caminho
imaginando bobagem, quando passou um gordo vigário a cavalo:
–
Você aí, menino, para onde vai essa estrada?
–
Ela não vai não: nós é que vamos nela.
–
Engraçadinho duma figa! Como você se chama?
–
Eu não me chamo não: os outros é que me chamam de Zé.
[CAMPOS, Paulo Mendes. Disponível em:
mgme1.blogspot.com.br/p/texto-e-interpretacao.]
O erro de português que virou caso de polícia
Erro de português em anúncio de loja virou caso de polícia na Paraíba. No
cartaz afixado na entrada da loja constava o anúncio “Oferta imperdível Chip
Vivo R$ 1 com aparelho”
Um erro de quem escreveu um cartaz
para anunciar uma promoção numa loja de eletrodomésticos criou uma grande
confusão na cidade de Guarabira, no interior da Paraíba.
No cartaz estava escrito “Oferta
imperdível. Chip Vivo. R$ 1 com aparelho”. Ao ler, o professor Aurélio Damião,
38, considerou a proposta irrecusável.
Com R$ 4 no bolso, ele entrou na loja
e pediu chips – com os quatro aparelhos celulares correspondentes. Ele havia
registrado a oferta com uma foto antes de ir ao trabalho e decidiu fazer a
compra no final do expediente.
“Passei na loja e pedi: me veja
quatro aparelhos de R$ 1 da promoção”, contou Damião. O atendente da loja
“explicou” o anúncio. Na verdade, o redator queria dizer que os chips da
operadora em questão sairiam por R$ 1 no caso da compra de qualquer celular
adquirido pelo preço normal de tabela.
O caso só foi
resolvido na delegacia
“Eu quis mesmo era dar mais uma lição
na loja do que qualquer outra coisa. Estava escrito errado, foi um erro de
português. Cheguei e falei que queria comprar quatro celulares e o gerente
começou a me destratar, me chamar de maluco. Disse que eu não era louco de
pegar um celular de lá. Eu falei que não queria pegar, não ia roubar. Eu estava
lá para comprar. Ele se recusou a vender e eu chamei a polícia”, explica
Aurélio.
Uma viatura da polícia militar chegou
ao local e convidou os dois – o professor e o gerente da loja – até a
delegacia. Aurélio alegou que a loja estava fazendo propaganda enganosa e que
tinha por direito, como consumidor, receber o que estava escrito no cartaz.
Na delegacia, as partes chegaram a um
acordo. Damião recebeu a doação de um vale de R$ 100 para aquisição de um
aparelho. Com chip. “Caso não chegassem a um acordo, teria de se usar a Justiça,
e as partes resolveram se entender logo”, disse um agente do 4º DP.
[Disponível em: www.pragmatismopolitico.com.br/2015/01/o-erro-de-portugues-que-virou-caso-de-policia.]
Meu abraço, amigo e nada ambíguo, a
todos.
Deixei o arroz queimar... sem problemas. Deliciei-me lendo esta página. MARAVILHA!!!!
ResponderExcluirAh, amiga ou amigo não nomeada/o...
ExcluirLamentei seu arroz queimado, mas... fiquei imensamente feliz com seu comentário!
Agradeço a leitura e seu bom-humor.
Volte sempre!
Lilian.