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Renoir |
Leitura, escrita e sociedade
A
leitura e a escrita (bastante ampliadas e transformadas pelos sistemas
altamente sofisticados da informática) ainda são a base de grande parte da
transmissão do conhecimento humano. Constituímos uma sociedade letrada e, nela,
tudo gira em torno da leitura: desde os cadastramentos para instituições,
formulários a serem lidos e preenchidos, talões de cheques, contratos, computadores,
jornais e revistas, livros, anúncios publicitários... tudo nos solicita ler (e
escrever, seu ato parceiro).
Temos
consciência de que precisamos equipar as novas gerações para essa demanda e
formá-las para conviver nesse mundo de comunicação infinita: são providências
que lhes permitirão aproximarem-se da diversidade de pessoas e povos, crenças e
opiniões, culturas e grupos, manifestando-se e atuando produtivamente numa coletividade
multíplice e crítica.
Como
alcançar tal propósito? Por meio de agentes de leitura/escrita, interessados e
dispostos a contribuir para a formação de novos e competentes leitores/escritores.
E que sejam capazes de provocar, nos jovens, a necessidade de ler – ou seja, o anseio de conhecer, de apoderar-se
de bens culturais representados na escrita, de descobrir outros mundos, de
buscar outras leituras que conversem com o leitor e com suas leituras anteriores
–, além do desejo de expressar, por
linguagem e ação, suas conclusões e descobertas.
Naturalmente,
leitor e leitora, vêm-nos logo à mente, nessa função, os educadores e
professores a quem confiamos nossos filhos. Simples, não?
Não
tanto, se entendermos todo o alcance de leitura e escrita.
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Jenny Nystrom |
Ler é mais que decifrar e
juntar palavras..
Escrever é mais que alinhavar frases...
Se a leitura se limitasse a um jogo de decifração, talvez não precisássemos, nem mesmo, de tantos professores, pois bastaria seguir algumas regras e ter agudeza e persistência para avançar cada vez mais. Como na montagem de um quebra-cabeça, por exemplo...
Contudo,
sabemos: compreender o que se lê, entender que situação o texto aponta, avaliar
e criticar as ideias é “jogo” bem mais complexo.
Ler
não é apenas decifrar letras, palavras e frases, mas descobrir e recriar os
sentidos do texto, entendendo suas intenções,
sua função social e as múltiplas possibilidades de sentido; O
leitor competente compreende o que lê, percebe os vários sentidos que podem ser
atribuídos ao texto e estabelece relações entre o que lê e outros textos já
lidos, à luz de conhecimentos que já tem.
Assim
também o escritor competente: não apenas organiza suas ideias, mas escolhe
palavras e modos de dizer, de acordo com sua intenção, a situação de
comunicação e ao provável leitor (ou leitores) – pelo menos.
Para aclarar as duas afirmações (sobre ler e escrever),
imaginemo-nos emitentes e, depois recebedores das três cartas que seguem:
Carta 1
Ao Excelentíssimo Senhor Juiz Federal
do Juizado Especial do Município de Lagoa, Estado de Baía do Sul
Ermírio Silva, brasileiro, casado, jardineiro, inscrito no
Cadastro de Pessoas Físicas sob o número XXX. XXX. XXX-XX, portador da cédula
de identidade Registro Geral número 000. 000-00, residente e domiciliado à Rua
do Monte, número 10, município de Lagoa, Estado de Baía do Sul, vem,
respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, por seus advogados
infra-assinados (mandato anexo), com Escritório Profissional no endereço
descrito no rodapé, onde recebem intimações de estilo, requerer Aposentadoria por Tempo de Serviço, mediante
apresentação de documentação anexa e com base nos fatos e fundamentos
jurídicos a seguir detalhados: [...]
Carta 2
São Paulo, 11 de janeiro de 2015
Sr. Editor do Jornal O Cidadão,
Aposentei em 2008 por idade com 70 anos e 30 anos de trabalho como jardineiro. Com
sol ou chuva e com dor sempre trabalhei e sempre contribuí com o órgão
competente pelo máximo. Na época fui informado que o valor de minha
aposentadoria devia ser proporcional ao tempo trabalhado, o que dava mais ou
menos 80% do máximo, mas hoje recebo em torno de 40%. Gostaria de receber uma
explicação da Seção Justiça para Você sobre o fato, e saber se existe possibilidade
de rever meu benefício.
Agradecido.
João de Oliveira.
Carta 3
Seu
Governo,
Meu avô
trabalhou a vida inteira e está muito cansado. Precisa descansar e não aguenta
mais ficar suando no calorão do sol.
Precisa
se sentar para ficar olhando o mar, tomando água de coco e pensando na vida. Ou
conversando e jogando dominó com os amigos, debaixo de alguma das árvores que
ele plantou. Não quer se preocupar mais com trabalho.
Ele tem
direito, sabe? [...]
Quem disse
que ele tem direito foi a minha professora. Ela é bonita e sabe muitas coisas.
Ela ensina para muita gente. Pode até lhe ensinar, senhor Governo. Se você
precisar aprender com ela, vou lhe explicar: a escola fica em frente à igreja e
ainda tem umas carteiras vazias na minha sala. Mas no time de futebol, não tem
lugar. [...]
Responda
logo, porque meu avô José está velhinho e não aguenta mais esperar muito tempo.
Atenciosamente,
Pepe.¹
O
aflitivo assunto das três cartas é o mesmo: problemas com a aposentadoria, referentes
a quem já deveria estar sossegado na vida. Mas o emissor, o destinatário, o
objetivo, o suporte (veículo em que circula o texto) são diferentes e
determinam dessemelhanças entre as missivas.
Não
deve ter passar despercebido que a carta nº 1 é escrita por advogado e tem como
destinatário o órgão competente para julgar o caso exposto. Por isso mesmo, os
termos são convencionalmente formais e técnicos, comuns à esfera de atuação de
remetente e destinatário.
Na
segunda carta, o emissor da “carta de leitor” escreve em causa própria. O tom é
convenientemente formal, mas as palavras são mais simples. Pode-se pensar que é
pessoa com razoável instrução, muito embora haja traços de linguagem coloquial (“aposentei com...”; “... que o valor de minha aposentadoria devia
ser proporcional ao tempo trabalhado, o que dava mais ou menos...”)
e pontuação deficiente.
Escolha
de tom e palavras da carta nº 3 – a linguagem coloquial e ingênua, a
informalidade e a subjetividade (e lirismo) dos argumentos não deixam dúvida: é
a ficção interpretando o sentimento de cuidado e amor entre gerações.
¹ As duas primeiras cartas são invenções pessoais, baseadas em cartas reais; a última faz parte do livro: MACHADO, Ana Maria. De Carta em Carta. São Paulo: Moderna, 2002.
¹ As duas primeiras cartas são invenções pessoais, baseadas em cartas reais; a última faz parte do livro: MACHADO, Ana Maria. De Carta em Carta. São Paulo: Moderna, 2002.
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Vanessa Bell |
Cartas, escola, família
A carta
escrita por advogado traz um apuro linguístico que só o estudo (em escola,
provavelmente) proporciona. Contudo, o conhecimento sobre a resistência humana
enfraquecida dos mais velhos (que faz o jardineiro sentir dores) e a
compreensão dos laços afetivos e familiares que podem levar um menino a importar-se
com o avô – essenciais para o leitor compreender o alcance e tom das demais
cartas – são resultado de um saber vivencial amplo.
O
que nos leva a perceber e entender a diferença e os sentidos das três cartas é
bem mais que simples decifração: é nosso conhecimento de vida, de outros
textos, e das várias esferas sociais em que atuamos, com suas convenções, mais
ou menos rígidas, que se refletem na linguagem que empregamos.
Sem
dúvida, a educação e instrução escolar são valiosas mediadoras de todo esse
conhecimento. No entanto, essas e outras situações estão no dia a dia e requerem – exigem –, em paralelo, aprendizado contínuo e cotidiano. E
quem melhor que as pessoas do círculo íntimo de convivência para, em momentos
de lazer e afetividade, alargar a experiência de crianças e jovens?
Daí
a importância de outras esferas de formação, além da escola. Falo,
especialmente, da responsabilidade da
família, na formação dos pequenos leitores e escritores. Mediadores
valiosos são os pais, avós, irmãos e os amigos próximos; pois o ideal é que a
leitura faça parte de nossos gestos diários, gerando a naturalidade do hábito.
Termino
com depoimentos de figuras conhecidas, sobre a influência de laços familiares
na formação leitora / escritora.
A
cantora Miúcha lembra como seu pai, o
historiador e socióloga Sérgio Buarque de Holanda, incentivava os filhos a ler:
Sua influência [...] se dava de forma sutil. As paredes da casa
da família eram cobertas por livros e o pai incentivava a leitura através de
desafios. Ele não ficava falando para a gente ler. Mas era uma apaixonado por Dostoievski,
conversava muito sobre ele. Nós todos líamos. E tinha Proust, aquela edição de
17 volumes. Ele dizia, desafiando e instigando: ‘Proust é muito interessante,
vocês não vão conseguir ler, é muito grande. Ah, mas se vocês soubessem como
era madame Vedurin...’ Aí, todo mundo pegava para ler.
[ZAPPA, Regina.Chico Buarque. In ROJO, Roxane. Letramento e capacidades de leitura para a
cidadania. Disponível em: debragancapaulista.educacao.sp.gov.br.]
Janaina Tokitaka,
escritora e ilustradora, destaca a importância da afetividade em sua formação
leitora / escritora:
Minha mãe tinha o costume de ler um livro do Monteiro Lobato a
cada mês de férias, um capítulo por noite, quando eu era pequena. Assim, as
férias de Pedrinho e Narizinho no Sítio do Pica-Pau Amarelo ficaram para sempre
misturadas às minhas próprias férias na praia, em Ilhabela. Esses momentos
criaram uma memória afetiva muito importante para minha formação como leitora e
escritora: a leitura como lazer, momento de ócio, como férias.
[Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/blogs/estante-de-letrinhas/no-dia-nacional-do-livro-infantil-escritores-e-ilustradores-falam-da-importancia-de-monteiro-lobato-para-a-sua-trajetoria/]
Sonia Rosa,
escritora, relata como se deu a intimidade com palavras e histórias:
Minha mãe inventava muitos versinhos com rimas engraçadas só
para mim. Era gostoso viver aqueles momentos. Estas primeiras experiências
despertaram o meu interesse para as histórias, me tornando íntima das palavras
para sempre. Na escola, foi com grande alegria que encontrei, nos livros de
Câmara Cascudo, muitas das histórias que minha mãe me contava. Eram os contos
populares brasileiros registrados por esse folclorista. A partir disso, fiquei
muito amiga dos livros e, desde então, as histórias e a literatura nunca mais
saíram da minha vida.
[Disponível em:
http://disneybabble.uol.com.br/br/criar-e-brincar/dentro-de-casa/escritores-e-ilustradores-revelam-livros-preferidos-da-inf%C3%A2ncia.]
Voltarei
ao assunto.
Abraços.
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