Em outra matéria (01/04/2016), fiz comentários sobre o valor da repetição em textos. Completo o
assunto, com um convite para visitarmos o
Poema da Necessidade, de Drummond.
Poema da necessidade
É preciso
casar João,
é preciso
suportar Antônio,
é preciso
odiar Melquíades,
é preciso
substituir nós todos.
É preciso
salvar o país,
é preciso
crer em Deus,
é preciso
pagar as dívidas,
é preciso
comprar um rádio,
é preciso
esquecer fulana.
É preciso
estudar volapuque,
é preciso
estar sempre bêbedo,
é preciso
ler Baudelaire,
é preciso
colher as flores
de que
rezam velhos autores.
É preciso
viver com os homens,
é preciso
não assassiná-los,
é preciso
ter mãos pálidas
e anunciar
o FIM DO MUNDO.
[ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento
do mundo. In Reunião – 10 livros de
poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.]
Leitor/a, depois de ler, imagine o
poema sem as repetições... (“Anáforas”, em linguagem técnica.) Tente, por
exemplo, algo assim: “É preciso casar
João, do mesmo modo como é urgente suportar Antônio e odiar Melquíades. Enfim,
é necessário substituir nós todos” (?!).
Toda a arte e engenho do poeta se
desvanecem, claro. Por que a repetição de palavras, neste poema, acarreta um
forte sentido: quase todos os versos iniciam-se por é preciso + verbo no infinitivo, sugerindo o ritmo constantemente
mecânico e as imposições da vida moderna. O “é preciso” reitera a necessidade de render-se às convenções e de
viver como a maioria: casar, suportar, odiar, crer, comprar, beber, etc.
Por duas vezes, apenas,
quebra-se a angustiosa e mecânica expressão. Da primeira vez, como que para
aliviar a tensão, há a sugestão de parada para olhar o passado e inspirar-se na
leitura de Baudelaire e de suas Flores do
Mal – convenhamos, um autor pouco apaziguador da inquietude humana...
A segunda quebra acontece no final do
texto, fechando-o, bem como à obrigação imposta pela vida, com uma solução apocalíptica:
o FIM DO MUNDO – assim mesmo, em
letras maiúsculas.
Desse modo, as não repetições, em vez
de aliviar a opressiva circunstância vivencial do ser poético, apenas apontam
para soluções que não solucionam.
A
insistência na palavra “pedra”
“Soluções que não solucionam” fazem
lembrar outro poema de Drummond: No meio
do caminho, em que o poeta retoma o famoso “Nel mezzo del cammin”, com que
Dante Alighieri inicia o Inferno de
sua Divina Comédia. Aqui estão os
primeiros versos, em tradução de Augusto de Campos:
No
meio do caminho desta vida
me
vi perdido numa selva escura,
solitário,
sem sol e sem saída.
[ALIGHIERI,
Dante. Inferno. Canto I - trecho
inicial.
Disponível em: www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet192.htm]
Disponível em: www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet192.htm]
Em Drummond, continua a percepção do
obstáculo, mas atualizado e reformulado, pela linguagem modernista mais “dura” e
seca, a romper com os cânones poéticos e a linguagem burilada e preciosista de
gerações anteriores.
O leitor percebe a dimensão do sofrimento
intransponível do viver, bem como a angústia resultante, pela simples e
constante repetição da palavra “pedra” – e da frase que a contém.
Por outro lado, o eu lírico declara-se
incapaz de se desvencilhar do peso dessa pedra existencial (nos versos 5 e 6, onde a
palavra “pedra” é momentaneamente suspensa), mas ela volta a preencher o caminho do
poema, como um grude, como um mantra, até o final. É a recriação e
multiplicação dos sentidos, pela construção original da Palavra.
No
meio do caminho
No meio do caminho tinha
uma pedra
tinha uma pedra no meio
do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha
uma pedra.
Nunca me esquecerei
desse acontecimento
na vida de minhas
retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que
no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio
do caminho
no meio do caminho tinha
uma pedra.
ANDRADE,
Carlos Drummond de. Alguma poesia. In Reunião – 10 livros de poesia. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1974.
A
reiteração da esperança na palavra “flor”
Em tempos de 2ª guerra mundial e
ditadura getulista, Drummond publica, em A
Rosa do Povo, poemas que expressam angústia vivencial e preocupação social.
É o caso de A flor e a náusea, que
tem como início:
Preso à
minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
No entanto, o final do
poema abre-se para a esperança, embora incipiente, na forma de “flor”. Aqui,
também, é pelo uso intencional da repetição que a flor-esperança cresce e se afirma:
[...]
Uma flor nasceu na rua!
Passem de
longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
Uma flor ainda desbotada
ilude a
polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto
que uma flor nasceu.
Sua cor
não se percebe.
Suas
pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas
é realmente uma flor.
Sento-me
no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e
lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas
é uma flor. Furou o asfalto, o
tédio, o nojo e o ódio.
[ANDRADE,
Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. In Reunião – 10 livros de poesia. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1974.]
Um ideia puxa outra, um poema lembra outro...
A flor de Drummond me faz lembrar a rosa de Gertrude Stein (do poema Sacred Emily): “Uma rosa é uma rosa é
uma rosa” – em que a força da “rosa”,
com todos os sentidos e sentimentos que evoca, amplia-se a cada repetição da
palavra.
A esses exemplos, certamente o leitor acrescentará
outros, com o concurso de seu próprio repertório.
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[Claudia Rogge - Mosaico humano] |
Reescrevendo Drummond
Concluo, retomando o Poema da Necessidade. Este e os outros do livro Sentimento do Mundo foram
escritos nos anos de 1930 a 1940, período pós-recessão econômica, entre duas
guerras mundiais e, no Brasil, sob a ditadura de Getúlio Vargas. Some-se a
isso, como vimos, o peso das injunções do dia a dia, interpretados poeticamente
por Drummond.
Proponho a você, leitor/a, um
exercício: recontextualizar o poema, de seu ponto de vista, trazendo-o para
nosso tempo /espaço, nosso contexto histórico.
O esqueleto está a seguir. Nele,
deixei os verbos – os quais, obviamente, também podem ser alterados.
Poema da necessidade
É preciso casar .........,
é preciso suportar .........,
é preciso odiar .........,
é preciso substituir ..........
É preciso salvar .........,
é preciso crer .........,
é preciso pagar .........,
é preciso comprar .........,
é preciso esquecer ..........
É preciso estudar .........,
é preciso estar sempre .........,
é preciso ler .........,
é preciso colher .........,
de que rezam ..........
É preciso viver .........,
é preciso não .........,
é preciso ter .........,
e anunciar ..........
Bom trabalho a quem aceitar o convite.
Um abraço.
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