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Carnaval antigo |
Não
tem jeito, o carnaval brasileiro – falo aqui de festa, e de festa popular,
claro – induz a brincadeiras, vadiagens, pequenas ou grandes malandragens, rendição
às fantasias e máscaras.
Esse
espírito, que vem de outras eras e países, já estava no entrudo, inspirou o
nome da primeira escola de samba brasileira – a carioca “Deixa Falar” (depois “Estácio
de Sá”) – e continuou na escolha de fantasias, nos nomes de cordões e blocos,
nas letras gaiatas e críticas das músicas carnavalescas.
Em
homenagem a esse mesmo espírito – leve, travesso –, trago à apreciação do
leitor ou leitora três textos de brasileiros consagrados.
Inicio
com a ironia fina de Machado de Assis, comentando, em crônica, o desejo
(irrealizado) de soltar as amarras da imaginação e compor uma fantasia para o
Carnaval de 1889.
Bons
dias!
(27
de fevereiro)
Ei-lo
que chega... Carnaval à porta!... Diabo! aí vão palavras que dão ideia de um
começo de recitativo ao piano; mas outras posteriores mostram claramente que
estou falando em prosa; e se prosa quer dizer falta de dinheiro (em cartaginês, está claro) então é que falei
como um Cícero.
Carnaval
à porta. Já lhe ouço os guizos e tambores. Aí vêm os carros das ideias...
Felizes ideias, que durante três dias andais de carro! No resto do ano ides a
pé, ao sol e à chuva, ou ficais no tinteiro, que é ainda o melhor dos abrigos.
Mas lá chegam os três dias, quero dizer os dois, porque o de meio não conta; lá
vêm, e agora e a vez de alugar a berlinda, sair e passear.
Nem
isso, ai de mim, amigas, nem esse gozo particular, único cronológico, marcado,
combinado e acertado, me é dado saborear este ano. Não falo por causa da febre
amarela; essa vai baixando. As outras febres são apenas companheiras. . . Não;
não é essa a causa.
Talvez
não saibam que eu tinha uma ideia e um plano [...]
Mas
a falta de dinheiro (prosa, em língua púnica) não me permite pôr esta ideia na
rua. Sem dinheiro, sem ânimo de o pedir a alguém, e, com certeza, sem ânimo de
o pagar, estou reduzido ao papel de espectador. Vou para a turbamulta das ruas
e das janelas; perco-me no mar dos incógnitos.
Já
alguém me aconselhou que fosse vestido de tabelião. Redargui que tabelião não
traz ideia; e depois, não há diferença sensível entre o tabelião e o resto do
universo. Disseram-me que, tanto há diferença, que chega a havê-la entre um
tabelião e outro tabelião.
–
Não leu o caso do tabelião que foi agora assassinado, não sei em que vila do
interior? Foi assassinado diante de cinquenta pessoas, de dia e na rua, sem
perturbação da ordem pública. Veja se há de nunca acontecer coisa igual ao
Cantanheda...
–
Mas que é que fez o tabelião assassinado?
–
É o que a notícia não diz, nem importa saber. Fez ou não fez aquela escritura.
Casou com a sobrinha de um dissidente político. [...] Vista-se você de tabelião
da roça, com um tiro de garrucha varando-lhe as costelas.
–
Mas como hei de significar o tiro?
–
Isto agora é que é ideia; procure uma ideia. Há de haver uma ideia qualquer que
significa um tiro. Leve à orelha uma pena, na mão uma escritura para mostrar
que é tabelião; mas como é tabelião político, tem de exprimir a sua opinião
política. É outra ideia. Procure duas ideias, a da opinião e a do tiro.
Fiquei
alvoroçado, o plano era melhor que o outro, mas esbarrava sempre na falta de
dinheiro para a berlinda, e agora no tempo. para arranjar as ideias. Estava
nisto, quando o meu interlocutor me disse que ainda havia ideia melhor.
–
Melhor?
–
Vai ver: comemorar a tomada da Bastilha, antes de 14 de julho.
–
Trivial.
–
Vai ver se é trivial. Não se trata de reproduzir a Bastilha, o povo parisiense
e o resto, não senhor. Trata-se de copiar São Fidélis¹...
–
Copiar São Fidélis?
–
O povo de São Fidélis tomou agora a cadeia, destruiu-a, sem ficar porta, nem
janela, nem preso, e declarou que não recebe o subdelegado que para lá
mandaram. Compreende bem, que esta reprodução de 1789, em ponto pequeno, cá
pelo bairro é uma boa ideia.
–
Sim, senhor, é ideia... Mas então tenho de escolher entre a morte pública do
tabelião e a tomada da cadeia! Se eu empregasse as duas?
—Eram
duas ideias.
—
Com umas brochadas de anarquia social, mental, moral, não sei mais qual?
—
Isso então é que era um cacho de ideias... Falta-lhe só a berlinda.
—Falta-me
prosa, que é como os soldados de
Aníbal chamavam ao dinheiro. Uba sacá
prosa nanupacatu. Em português: "Falta dinheiro aos heróis de Cartago
para acabar com os romanos." Ao que respondia Aníbal: Tunga loló. Em português: Boas noites.
[ASSIS,
Machado de. Diálogos e reflexões de um
relojoeiro – Escritos recolhidos da “Gazeta de Notícias”. Rio de Janeiro:
Ed. Civilização Brasileira, 1956.]
¹ Município do Rio de
Janeiro.
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Carnaval de Carybé |
O
cronista Moacyr Scliar aproveita uma notícia da Folha, de 2001: “Ensaios da escola de samba Mocidade Alegre
atrapalham sono de moradores da região”, para criar uma situação em que deixa
claro o apelo incontrolável da alegria carnavalesca.
Espírito Carnavalesco
Cansado,
ele dormia a sono solto, quando foi bruscamente despertado pela esposa, que o
sacudia violentamente.
–
Que aconteceu? – resmungou ele, ainda de olhos fechados.
–
Não posso dormir. – queixou-se ela.
–
Não pode dormir? E por quê?
–
Por causa do barulho – ela, irritada: – Será possível que você não ouça?
Ele
prestou atenção. De fato, havia barulho. O barulho de uma escola de samba ensaiando
para o carnaval: pandeiros, tamborins… Não escutara antes por causa do sono
pesado. O que não era o caso da mulher. Ela exigia providências.
–
Mas o que quer você que eu faça? perguntou e, agora, também irritado.
–
Quero que você vá lá e mande eles pararem com esse barulho.
–
De jeito nenhum – disse ele. – Não sou fiscal, não sou policial. Eu não vou lá.
Virou-se
para o lado, com o propósito de conciliar de novo o sono. O que a mulher não
permitiria: logo estava a sacudi-lo de novo.
Ele
acendeu a luz, sentou na cama:
–
Escute, mulher. É carnaval, esta gente sempre ensaia no carnaval, e não vão
parar o ensaio porque você não consegue dormir. É melhor você colocar tampões
nos ouvidos e esquecer esta história.
Ela
começou a chorar.
–
Você não me ama – dizia, entre soluços: – Se você me amasse, iria lá e acabaria
com a farra.
Com
um suspiro, ele levantou-se da cama, vestiu-se e saiu, sem uma palavra.
Ela
ficou à espera, imaginando que em dez ou quinze minutos a batucada cessaria.
Mas
não cessava. Pior: o marido não voltava. Passou-se meia hora, passou-se uma
hora: nada. Nem sinal dele.
E
aí ela ficou nervosa. Será que tinha acontecido alguma coisa ao pobre homem?
Será que – por causa dela – ele tinha se metido numa briga? Teria sido
assassinado? Mas neste caso, por que continuava a batucada? Ou seria aquela
gente tão insensível que continuava a orgia carnavalesca mesmo depois de ter
matado um homem? Não aguentando mais, ela vestiu-se e foi até o terreiro da
escola de samba, ali perto.
Não,
o marido não tinha sido agredido e muito menos assassinado. Continuava vivo, e
bem vivo: no meio de uma roda, ele sambava, animadíssimo.
Ela
deu meia-volta e foi para casa. Convencida de que o espírito carnavalesco é
imbatível e fala mais alto do que qualquer coisa.
[SCLIAR, Moacyr. In O
imaginário cotidiano. São Paulo: Global, 2002.]
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Festa de Carnaval no céu |
Clarice
Lispector escreveu, para o público jovem, “doze lendas brasileiras”, uma para
cada mês do ano. A de fevereiro só poderia ter como pretexto... o Carnaval. No texto,
a pena elegante e bem-humorada da escritora renova uma narrativa bem conhecida e
mostra a inventividade malandra de um dos animais, a fim de não perder a festa – situação
oposta àquela do personagem da crônica de Machado. A pitada de irreverência à la
Clarice vem na “moral” que finaliza a história.
Fevereiro
Alvoroço
de festa no céu
Não
é que na véspera do Carnaval houve no céu uma festa para os bichos da selva?
Os
convites foram entregues por um beija-flor que delicadamente os deixava em cima
de corolas de vitorias régias. O bicho que ia passando via o seu nome no
envelope e pulava de alegria: tinha sido contemplado com um programa para o fim
de semana!
Mas
notaram todos que só recebiam convites os bichos de asa. O que era uma
injustiça. Pelo menos foi o que o sapo gordo pensou. Os animais de terra estavam
conformados, esperando o dia em que houvesse a festa la na selva mesmo. Mas,
como eu disse, o sapo verde não. Todos riam dele e de suas reclamações coaxadas
e inúteis.
Ele
aproveitou o fim manso de tarde para gritar bem alto e ser bem ouvido.
–
Eu também vou!
Os
pássaros caçoaram e perguntaram:
–
Cadê tuas asas, bicho feio?
Foi
então que pensou: devo consultar quem é igual a mim, porém mais velho. E
realmente, no brejo que ficava entre samambaias e avencas, encontrou um sapo
velho e cheio de sabedoria chamado Quá-quá-quá, este se amedrontou com as
intenções do sapo jovem:
–
Olhe, é melhor para a sua saúde não sair do chão e ter água por perto.
Então
o sapo jovem disse-lhe:
–
O senhor é capaz de guardar um segredo? Pois bem, eu vou dançar lá em cima.
Basta-me que o urubu feio leve o seu violão.
Quá-quá-quá
disse-lhe que não o entendia.
O
sapo foi falar com o urubu:
–
Você vai levar seu violão, urubu?
O
urubu, de violão debaixo da asa, nem se dignou a responder.
–
Senhor urubu, quer me fazer um único favor? O de ver se estou naquela esquina?
O
urubu, meio burro, replicou que, já que era um só favor, ele iria. E não
carregou o violão. O sapo mais que depressa entrou no violão e ficou lá bem
quieto, embora tivesse uma vontade louca de fumar. O urubu voltou para lhe
dizer que não o havia encontrado na esquina – mas cadê o sapo? Sumira, pensou.
E pensou: agora vou para o céu.
Para
encurtar a história, o sapo, dentro do violão, chegou ao céu e mais do que
depressa pulou para fora e começou a dançar todo feliz. Os pássaros se espantaram,
perguntaram ao senhor sapo como havia chegado. Mas a alma do negócio é o
segredo e o sapo só respondeu malcriado:
–
É que eu me arranjo sempre!
E
entrou de novo sorrateiro no violão para ir embora. Mas o urubu percebeu a
coisa e ficou raivoso:
–
Espertinho, não é? Pois agora mesmo é que você vai voar, vou te soltar no ar.
Então o sapo pediu todo manhoso:
–
Está vendo aquela pedra e aquele lago? Pelo amor de Deus, deixe eu cair na
pedra porque se eu cair no lago eu me afogo!
–
Pois é no lago que eu vou te largar, para você morrer!
O
sapo, bem feliz, caiu no lago, e salvou-se.
Moral
da festa? Bem, não houve.
[LISPECTOR,
Clarice. Como nasceram as estrelas - doze lendas brasileiras. Ed. Nova
Fronteira.
Disponível
em: portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/ClariceLispector.pdf]
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