Em matéria anterior (25/02/2016), mostrei escritores que escolheram e
poetizaram aspectos específicos de São Paulo. Citei, em meu apoio, o poeta português Albano Martins: “uma cidade pode ser / apenas um rio, uma torre, uma rua / com varandas
de sal e gerânios /de espuma¹”.
O fragmento é parte do belo poema – Uma
cidade –, que merece ser conhecido na íntegra. Por isso, proponho sua leitura.
Uma
cidade
Uma cidade pode ser
apenas um rio, uma torre, uma rua
com varandas de sal e gerânios
de espuma. Pode
ser um cacho
de uvas numa garrafa, uma
bandeira
azul e branca, um cavalo
de crinas de algodão, esporas
de água e flancos
de granito.
Uma cidade
pode ser o nome
dum país, dum cais, um porto, um
barco
de andorinhas e gaivotas
ancoradas
na areia. E pode
ser
um arco-íris à janela, um
manjerico
de sol, um beijo
de magnólias
ao crepúsculo, um balão
aceso
numa noite
de junho.
Uma cidade pode ser
um coração,
um punho.
[Disponível
em: citador.pt/poemas/uma-cidade-albano-martins]
O texto “conceitua” liricamente a cidade, por meio de primorosas imagens
verbais, que os brancos da página unem ou separam, realçam ou ensombrecem.
Reparem, no primeiro bloco/estrofe: é como se um viajante penetrasse no
lugar pela primeira vez, e seu olhar privilegiasse grandes espaços – o rio, a
torre e, depois, mudando o foco, a rua. Contudo, em vez de toda a rua, o que o
impressionasse fossem imagens de menor volume e perenidade, que o eu lírico
registra, a começar pelas “varandas de
sal e gerânios de espuma” – referências que indiciam a cidade à beira-mar. As palavras bandeira,
cavalo, esporas, flancos podem
remeter o leitor a um tempo mais antigo e até heroico; porém, mais que isso,
nos versos em que estão presentes, também compõem, em conjunto e
metaforicamente, o mar.
No segundo bloco, após a reiteração da expressão “uma cidade” –
destacada por seu deslocamento no branco da página –, o olhar poético agrega outros
elementos à paisagem, fazendo com que o visitante-leitor perceba mais
claramente: é cidade portuária e
pesqueira.
Quem lê, se até agora encontrou as pistas de sentido com relativa
facilidade, talvez se detenha um pouco mais a partir de “E pode
ser um arco-íris à janela...” Então,
será interessante interpretar – junto com o eu poético e agregando a experiência
pessoal de cada leitor – o poder que um simples gesto, uma atmosfera, o perfume
de uma flor têm para evocar / simbolizar um espaço (no caso deste poema, a
cidade), reservando-lhe um lugar na memória afetiva.
Nessa
perspectiva, cada leitura enriquecerá o poema de significados múltiplos, ao
unir ou particularizar as belas e inusitadas figuras verbais que se sucedem: um arco-íris à janela, um manjerico de sol, um beijo de magnólias ao crepúsculo...,
compondo as impressões poéticas de uma cidade particular, semelhante, mas não igual à
cidade do poeta.
Deixo a
quem lê o prazer de ampliar o trajeto de leitura e descobrir outros sentidos no poema, traçando caminhos diferentes por entre suas linhas, vazios e palavras.
Impressões de uma avenida
“Uma cidade pode ser / apenas um rio, uma
torre, uma rua”... Pode ser, também, um bairro, uma avenida, um viaduto, por
que não? São Paulo, que há pouco comemorou seu aniversário, serve como exemplo,
pois muitos poetas e compositores elegeram algum de seus encantos para amar e louvar.
Lembro,
aqui, uma canção que homenageia uma de suas mais célebres
avenidas: a Paulista. Para uns, lugar de negócios, para outros, de lazer, para
outros, ainda, região de manifestações e eventos, não há como negar: de
avenida, parece que a Paulista se transformou em símbolo – monumento, mesmo –
da São Paulo agitada destes tempos. A percepção de Sampa enquanto metrópole
moderna e buliçosa “passa” pela Paulista...
Contrariando ou ampliando essa moderna visão, a música “Paulista”,
de Eduardo Gudin e Costa Netto, vem envolta em romantismo. E mostra que, até à
semelhança dos grandes lances – de
protesto ou de alegria – de ocorrência frequente por lá, os de amor também podem
se iniciar nela: na Paulista. Comprovem-no, ouvindo a voz doce e emotiva de
Vânia Bastos.
Paulista
Na Paulista os faróis já vão
abrir...
E um milhão de estrelas
prontas pra invadir, os jardins
onde a gente aqueceu uma
paixão...
Manhãs frias de abril.
Se a avenida exilou seus
casarões,
quem reconstruiria nossas
ilusões?
Me lembrei de contar prá você,
nessa canção,
que o amor conseguiu...
Você sabe quantas noites eu te
procurei,
nessas ruas onde andei?
Conta onde passeia hoje esse seu
olhar...
Quantas fronteiras ele já cruzou,
no mundo inteiro de uma só
cidade?
Se os seus sonhos imigraram sem
deixar
nem pedra sobre pedra prá poder
lembrar...
Dou razão, é difícil hospedar no
coração
Sentimentos assim.
Meu abraço.
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