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Anselm Kiefer |
Passados os quinze primeiros dias de
tranquilidade de janeiro, algo acontece na cidade de São Paulo: mais turistas a
visitam, à cata de diversão e cultura; estudantes, ao encontro de cursos; profissionais,
objetivando trabalho, mas sem esquecer o lazer – porque o ano mal começou, e ninguém
é de ferro...
A metrópole faz por merecer e
incrementa o “agito”, pois é seu aniversário, ocasião de se multiplicarem os
eventos: exposições de arte, ensaio de escolas de samba, shows musicais,
atrações infantis, festivais de arte e gastronomia, acontecimentos múltiplos em
bairros tradicionalmente boêmios.
Assim, fica difícil não falar desta
São Paulo – ou Sampa, ou, metaforicamente, cidade da garoa (ainda, às vezes),
cidade-país, selva de concreto, locomotiva do Brasil (há quem não concorde), pauliceia
desvairada (não é, Mário?) o avesso do avesso do avesso do avesso (não é,
Caetano?).
Aproveito, então, para rever e reviver
literariamente a cidade. Lanço-lhe um olhar, filtrado por outros olhares, atentos
e poéticos.
Uma cidade, por vezes, revela-se em
miúdos detalhes, mais que em sua totalidade. Como diz o poeta português Albano Martins, “uma cidade pode ser / apenas um rio, uma torre, uma rua / com varandas
de sal e gerânios /de espuma”¹. Que o diga o viajante que vem de fora e se
vê marcado por esta ou aquela face de Sampa: um bairro, uma rua, um momento. Ou
o nativo, para o qual nada é mais importante que a região onde nasceu, ou a
praça que testemunhou namoros adolescentes.
Vamos, pois, leitor/a, em busca dessas impressões tornadas
poemas, como pequenas pistas que, em sua singularidade, revelam características
do universo / cidade de São Paulo.
¹[Disponível em:
citador.pt/poemas/uma-cidade-albano-martins]
Canto de
regresso à pátria
Oswald de
Andrade
Paráfrase à Canção do Exílio de Gonçalves Dias, o
poema do paulista Oswald de Andrade redireciona o sentimento saudosista do país.
O eu poético louva São Paulo, não o
Brasil: São Paulo e sua rua 15 de novembro, símbolo de progresso e riqueza, no
início do século XX.
Minha
terra tem palmares
Onde
gorjeia o mar
Os
passarinhos daqui
Não
cantam como os de lá
Minha
terra tem mais rosas
E quase
que mais amores
Minha
terra tem mais ouro
Minha
terra tem mais terra
Ouro
terra amor e rosas
Eu quero
tudo de lá
Não
permita Deus que eu morra
Sem que
volte para lá
Não
permita Deus que eu morra
Sem que
volte pra São Paulo
Sem que
veja a Rua 15
E o
progresso de São Paulo.
[ANDRADE, Oswald de. Poesias Reunidas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1971.]
Às minhas costas
Sérgio Alcides
O progresso, agora, ganha
velocidade e modernidade: o metrô, o ar condicionado, a escada rolante. O
habitante recebe passivamente (“às minhas costas”) a fria impessoalidade comum
às grandes cidades, traduzida pela voz poética de Sérgio Alcides, escritor e
pesquisador carioca, mas que morou (ou ainda mora?) na terra paulistana.
As portas do metrô
mastigam
o ar condicionado.
Estou em trânsito,
com os demais.
Percorremos a rede incorpórea
que há de permanecer.
Não se ultrapassa a
linha amarela.
Nada cheira. E a
escada rolante
– áspera via – até se
alegoriza
ao conduzir-nos de
volta ao simulacro
passageiro das
avenidas.
Na saída, ponho os
óculos escuros.
[Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142011000100016]
O vento nessa cidade
Paulo Ferraz
Também contemporâneo e
conhecedor de São Paulo, Paulo Ferraz privilegia o movimento natural do vento e
o personaliza – mas já contaminado pela ação do morador urbano (fumaça, papéis,
lixo, enfim). O vento agressivo (“vem sempre na mão contrária”; “pois nessa
cidade o vento não aceita ser
contestado”) parece reagir vingativamente à fuligem e sujeira que o
homem produz, maculando a natureza.
O vento nessa cidade
vem sempre na mão
contrária.
Fumaça, papéis e
poeira
pegam
carona, sem rumo
(pessoas
também, se bem que elas
não se
diferenciam muito
de
papéis, poeira ou fumaça). O
preto,
que à mão só tem dedos,
grava
na sarjeta o mapa
de seu
tesouro escondido,
já são
vistos traços brancos,
mas
vamos de olhos cerrados,
pois
nessa cidade o vento
não
aceita ser contestado.
[Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142011000100016]
Soneto
sentimental à cidade de São Paulo
Vinicius
de Moraes
O
carioca Vinicius de Moraes embala em poesia as contradições da metrópole
paulistana, flagrada, qual mulher da noite, no estranhamento apaixonante de sua
vida noturna.
Ó
cidade tão lírica e tão fria!
Mercenária,
que importa - basta! - importa
Que à
noite, quando te repousas morta
Lenta e
cruel te envolve uma agonia
Não te
amo à luz plácida do dia
Amo-te
quando a neblina te transporta
Nesse
momento, amante, abres-me a porta
E eu te
possuo nua e fugidia.
Sinto
como a tua íris fosforeja
Entre
um poema, um riso e uma cerveja
E que
mal há se o lar onde se espera
Traz
saudade de alguma Baviera
Se a
poesia é tua, e em cada mesa
Há um
pecador morrendo de beleza?
[Disponível
em: viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas.]
A poesia é da cidade...
... Mas o
poema é seu, leitor/a.
Parafraseei
Vinicius ("a poesia é tua") e explico: deixei algumas pistas interpretativas, em cada texto; no
entanto, para cada poema, é sua a
leitura, e sua a interpretação.
Ademais, quem sabe, após sua leitura, surja-lhe o desejo de criar, também, um
poema inspirado em sua cidade? Se for o caso, compartilhe conosco!
Um abraço.
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