Um
ano termina, outro começa, vêm os balanços do tempo que foi, e as promessas
para o que virá.
Vem,
também, a vontade de relaxar e comprazer-se com pequenos e grandes lazeres, que
nada têm a ver com sisudez e comprometimento. Para mim, é oportunidade para as
delícias da leitura descompromissada. Nela reencontrei-me, desta vez, com a
grande fonte inspiradora que é Carlos Drummond de Andrade.
Daí,
a ideia de unir o útil ao agradável, e extrair do poeta algum momento de
reflexão sobre passado, presente e futuro. Afinal, quem melhor que ele, para
puxar o fio da vida, permitindo a despedida do vivido e a recepção do que se
irá viver?
Quer
vir comigo, leitor/a? Aceite meu convite e seja meu companheiro/a, num passeio
poético por algumas joias do universo de Drummond. Que elas sirvam de impulso para voos, na imaginação e nas emoções, para trás e adiante no tempo, para
dentro e fora de nós.
Para rever o passado
Qual
o resíduo de nós próprios que deixamos para a experiência universal do ano que
finda? “Um pouco, não muito” – pode
tornar-se o detalhe que marca toda uma vida...
Resíduo
De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu
asco.
Dos gritos gagos. Da
rosa
ficou um pouco.
Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um
pouco
(muito pouco).
Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram
poucas
roupas, poucos véus
rotos
pouco, pouco, muito
pouco.
Mas de tudo fica um
pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
– vazio – de cigarros,
ficou um pouco.
Pois de tudo fica um
pouco.
Fica um pouco de teu
queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que
sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor
branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
Se de tudo fica um
pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no
barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em
Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o
evitam,
um pouco: não está nos
livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma
torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil
esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de
Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas
minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo,
cápsula
de revólver... de
aspirina.
De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de
loção
e abafa
o insuportável mau
cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível,
fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os
ventos
e sob as pontes e sob os
túneis
e sob as labaredas e sob
o sarcasmo
e sob a gosma e sob o
vômito
e sob o soluço, o
cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e
sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os
asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob
teus pés já duros
e sob os gonzos da
família e da classe,
fica sempre um pouco de
tudo.
Às vezes um botão. Às
vezes um rato.
[ANDRADE,
Carlos Drummond de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1963.]
Para encarar o presente
A
insegurança – nacional e universal – em que vivemos torna bastante atual o
poema que Drummond publicou em 1945. O leitor é defrontado com a palavra medo, inúmeras vezes repetida, como uma
sirene a alertar para o perigo da fixação do terror. No entanto, tal como o eu
poético sugere, que sejamos conduzidos a caminhos mais abrangentes que aquele da
angústia paralisante, pois: “O medo, com
sua física, / tanto produz: carcereiros, / edifícios, escritores, / este poema;
outras vidas.”
O
medo
Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são
poucas:
Carteiro, ditador,
soldado.
Nosso destino,
incompleto.
E fomos educados para o
medo.
Cheiramos flores de
medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.
Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as
fábricas,
Doenças galopantes,
fomes.
Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em
São Paulo.
Fazia frio em São
Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos
berça.
Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de
tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos criam
burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em
conjunto?
E se todos nós
vivêssemos?
Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das
estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas.
Muletas
do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do
láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e
cala-se.
Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules,
repuxos,
ruas só de medo e calma.
E com asas de prudência,
com resplendores
covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
O medo, com sua física,
tanto produz:
carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras
vidas.
Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos
compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a
frente,
recuando de olhos
acesos.
Nossos filhos tão
felizes...
Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o
mundo.
Depois do mundo, as
estrelas,
dançando o baile do
medo.
[ANDRADE,
Carlos Drummond de. In A Rosa do Povo.
Disponível
em http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond20.htm.]
Projetando o futuro
Diz
o pensador Zygmunt Bauman: “Quer eu
admita, quer não, sou o guardião do meu irmão, porque o bem-estar do meu irmão
depende do que eu faço ou do que eu me abstenho de fazer.” Há muito o que
fazer ainda, se estamos verdadeiramente vivos. Qual será nosso projeto transformador de
consciências? Qual a canção de esperança que iremos preparar para nosso futuro
comum?
Canção
amiga
Eu preparo uma canção
em que minha mãe se
reconheça,
todas as mães se
reconheçam,
e que fale como dois
olhos.
Caminho por uma rua
que passa em muitos
países.
Se não me veem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se
procuram.
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais
belas.
Eu preparo uma canção
que faça acordar os
homens
e adormecer as crianças.
[ANDRADE,
Carlos Drummond de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1963.]
Pretexto e pré-texto
Leitor,
leitora, Drummond é um bom pretexto para pensamentos fundos... E pode servir,
também, como pré-texto para nossas próprias escritas. Que tal escrever seu
balanço poético pessoal? Esse é outro convite que faço, acrescentando: se
escrever, quer dividi-lo comigo?
Termino
com meu abraço e a Canção Amiga, na voz de Milton Nascimento.