Afinal, por que se insiste tanto na
importância da leitura?
Há aqueles motivos práticos e
utilitários: vivemos em sociedade letrada e, portanto, ler e escrever nos dá
poder e competência para atuar nela.
Mas... será apenas isso? Pensemos: que
atração é essa que leva inúmeras pessoas a se afeiçoarem à leitura, sem
remissão? Há mistério envolvido? Feitiço, talvez?
Pode ser, sim, ao menos em termos
metafóricos.
Quando se trata de entender a vida (a própria, a do semelhante), ou de encontrar um estar no mundo mais coerente e
liberto das sombras do desconhecido, a magia da palavra se faz presente e
mostra, ao ser humano, desafios, enigmas e descobertas de sua própria história.
Eis aí seu poder: ler a palavra é ler-se, enquanto humanidade. Eis aí,
especialmente, sua necessidade: ler
a palavra é compartilhar da existência e da permanência do outro; é existir com
o outro e reinventar narrativas conjuntas. Nas palavras de Daniel Goldin:
Desde
a suas origens mais remotas, a palavra escrita tentou vencer a inexorável fuga
do tempo. A escrita é um testemunho de nossa rebeldia contra a fugacidade da
vida, de nossa luta contra a morte e a falta de sentido. Entre outras razões,
escrevemos para permanecer, para estar e exercer nosso poder onde, fisicamente,
não podemos estar. [...]
Ao
ler, submergimos em um rio antigo que se perde no esquecimento e que, contudo,
é sempre fresco e atual. E esse rio se projeta ao mundo e faz com que você se
sinta arraigado nele. [...]
Hoje
me fascina o poder dos livros. Todos os dias fico surpreso de como uns objetos
aparentemente tão simples têm a capacidade de instaurar outro(s) tempo(s), e
que somente ao abri-los, propiciam outro espaço que faz com que o mundo seja
mais habitável. ¹
Eu diria: mais habitável e mais humanizado
– uma vez que partilhar ideias nos faz olhar para o outro e, com ele e por ele,
redimensionar emoções e sentimentos, capazes de nos tornar mais autênticos e generosos.Exemplifica-o
à perfeição, um conto do angolano Ondjaki, que pode ser descrito como a "narrativa da leitura de uma narrativa".
Falo de Nós choramos pelo Cão Tinhoso, em que a leitura, em sala de aula,
de outro conto (Nós matamos o Cão Tinhoso,
do moçambicano Luís Bernardo Honwana) faz aflorar o olhar solidário e sentimentos
de dor e pena nas personagens que o leem, apesar da contenção exigida pela situação formal
de sala de aula e pela interdição social: "quem chorar é maricas então!" Em seguida, o conto.
¹ Entrevista à Revista Emília, em 2012.
Dispon. em http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=187. Daniel Goldin é
pensador, teórico e editor mexicano.
Nós choramos pelo Cão Tinhoso
Foi no tempo da oitava classe, na aula de português.
Eu já tinha lido esse texto dois anos antes, mas daquela vez a
estória me parecia mais bem contada com detalhes que atrapalhavam uma pessoa só
de ler ainda em leitura silenciosa — como a camarada professora de português
tinha mandado. Era um texto muito conhecido em Luanda: "Nós matamos o Cão
Tinhoso".
Eu lembrava-me de tudo: do Ginho, da pressão de ar, da Isaura e
das feridas penduradas do Cão Tinhoso. Nunca me esqueci disso: um cão com
feridas penduradas. Os olhos do cão. Os olhos da Isaura. E agora de repente me
aparecia tudo ali de novo. Fiquei atrapalhado.
A camarada professora selecionou uns tantos para a leitura
integral do texto. Assim queria dizer que íamos ler o texto todo de rajada.
Para não demorar muito, ela escolheu os que liam melhor. Nós, os da minha turma
da oitava, éramos cinquenta e dois. Eu era o número cinquenta e um. Embora
noutras turmas tentassem arranjar alcunhas para os colegas, aquela era a minha
primeira turma onde ninguém tinha escapado de ser alcunhado. E alguns eram
nomes de estiga violenta.
Muitos eram nomes de animais: havia o Serpente, o Cabrito, o
Pacaça, a Barata-da-Sibéria, a Joana Voa-Voa, a Gazela, e o Jacó, que era eu.
Deve ser porque eu mesmo falava muito nessa altura. Havia o É-tê, o
Agostinho-Neto, a Scubidu e mesmo alguns professores também não escapavam da
nossa lista. Por acaso a camarada professora de português era bem porreira e
nunca chegamos a lhe alcunhar.
Os outros começaram a ler a parte deles. No início, o texto
ainda está naquela parte que na prova perguntam qual é e uma pessoa diz que é
só introdução. Os nomes dos personagens, a situação assim no geral, e a maka do
cão. Mas depois o texto ficava duro: tinham dado ordem num grupo de miúdos para
bondar o Cão Tinhoso.
Os miúdos tinham ficado contentes com essa ordem assim muito
adulta, só uma menina chamada Isaura afinal queria dar proteção ao cão. O cão
se chamava Cão Tinhoso e tinha feridas penduradas, eu sei que já falei isto,
mas eu gosto muito do Cão Tinhoso.
Na sexta classe eu também tinha gostado bué dele e eu sabia que
aquele texto era duro de ler. Mas nunca pensei que umas lágrimas pudessem ficar
tão pesadas dentro duma pessoa. Se calhar é porque uma pessoa na oitava classe
já cresceu um bocadinho mais, a voz já está mais grossa, já ficamos toda hora a
olhar as cuecas das meninas "entaladas na gaveta", queremos beijos na
boca mais demorados e na dança de slow ficamos todos agarrados até os
pais e os primos das moças virem perguntar se estamos com frio mesmo assim em
Luanda a fazer tanto calor. Se calhar é isso, eu estava mais crescido na
maneira de ler o texto, porque comecei a pensar que aquele grupo que lhes
mandaram matar o Cão Tinhoso com tiros de pressão de ar, era como o grupo que
tinha sido escolhido para ler o texto.
Não quero dar essa responsabilidade na camarada professora de
português, mas foi isso que eu pensei na minha cabeça cheia de pensamentos
tristes: se essa professora nos manda ler este texto outra vez, a Isaura vai
chorar bué, o Cão Tinhoso vai sofrer mais outra vez e vão rebolar no chão a rir
do Ginho que tem medo de disparar por causa dos olhos do Cão Tinhoso.
O meu pensamento afinal não estava muito longe do que foi
acontecendo na minha sala de aulas, no tempo da oitava classe, turma dois, na
escola Mutu Ya Kevela, no ano de mil novecentos e noventa: quando a Scubidu leu
a segunda parte do texto, os que tinham começado a rir só para estigar os
outros, começaram a sentir o peso do texto. As palavras já não eram lidas com
rapidez de dizer quem era o mais rápido da turma a despachar um parágrafo. Não.
Uma pessoa afinal e de repente tinha medo do próximo parágrafo, escolhia bem a
voz de falar a voz dos personagens, olhava para a porta da sala como se alguém
fosse disparar uma pressão de ar a qualquer momento. Era assim na oitava
classe: ninguém lia o texto do Cão Tinhoso sem ter medo de chegar ao fim.
Ninguém admitia isso, eu sei, ninguém nunca disse, mas bastava estar atento à
voz de quem lia e aos olhos de quem escutava.
O céu ficou carregado de nuvens escurecidas. Olhei lá para fora
à espera de uma trovoada que trouxesse uma chuva de meia hora. Mas nada.
Na terceira parte até a camarada professora começou a engolir
cuspe seco na garganta bonita que ela tinha, os rapazes mexeram os pés com
nervoso miudinho, algumas meninas começaram a ficar de olhos molhados. O Olavo
avisou: "quem chorar é maricas então!" e os rapazes todos ficaram com
essa responsabilidade de fazer uma cara como se nada daquilo estivesse a ser
lido.
Um silêncio muito estranho invadiu a sala quando o Cabrito se
sentou. A camarada professora não disse nada. Ficou a olhar para mim. Respirei
fundo.
Levantei-me e toda a turma estava também com os olhos pendurados
em mim. Uns tinham-se virado para trás para ver bem a minha cara, outros
fungavam do nariz tipo constipação de cacimbo. A Aina e a Rafaela que eram
muito branquinhas estavam com as bochechas todas vermelhas e os olhos também, o
Olavo ameaçou-me devagar com o dedo dele a apontar para mim. Engoli também um
cuspe seco porque eu já tinha aprendido há muito tempo a ler um parágrafo
depressa antes de o ler em voz alta: era aquela parte do texto em que os miúdos
já não têm pena do Cão Tinhoso e querem lhe matar a qualquer momento. Mas o
Ginho não queria. A Isaura não queria.
A camarada professora levantou-se, veio devagar para perto de
mim, ficou quietinha. Como se quisesse me dizer alguma coisa com o corpo dela
ali tão perto. Aliás, ela já tinha dito, ao me escolher para ser o último a
fechar o texto, e eu estava vaidoso dessa escolha, o último normalmente era o
que lia já mesmo bem. Mas naquele dia, com aquele texto, ela não sabia que em
vez de me estar a premiar, estava a me castigar nessa responsabilidade de falar
do Cão Tinhoso sem chorar.
– Camarada professora – interrompi numa dificuldade de falar. –
Não tocou para a saída?
Ela mandou-me continuar. Voltei ao texto. Um peso me atrapalhava
a voz e eu nem podia só fazer uma pausa de olhar as nuvens porque tinha que
estar atento ao texto e às lágrimas. Só depois o sino tocou.
Os olhos do Ginho. Os olhos da Isaura. A mira da pressão de ar
nos olhos do Cão Tinhoso com as feridas dele penduradas. Os olhos do Olavo. Os
olhos da camarada professora nos meus olhos. Os meus olhos nos olhos da Isaura
nos olhos do Cão Tinhoso.
Houve um silêncio como se tivessem disparado bué de tiros dentro
da sala de aulas. Fechei o livro.
Olhei as nuvens.
Na oitava classe, era proibido chorar à frente dos outros
rapazes.
Glossário
Estiga – provocação, ridicularização.
Maka – discussão, debate.
Bondar – matar.
Bué – gíria: muito, bastante.
ONDJAKI. Nós choramos pelo Cão
Tinhoso. In: CHAVES, Rita (Org.). Contos
africanos dos países de língua portuguesa. São Paulo: Ática, 2009.
Uma
lembrança
Lendo o conto, ocorre-me um pensamento
de Jorge Larrosa, doutor em Filosofia da Educação:
Que
podemos cada um de nós fazer sem transformar nossa inquietude em uma história?
E, para essa transformação, para esse alívio, acaso contamos com outra coisa a
não ser com os restos desordenados das histórias recebidas? E isso a que
chamamos autoconsciência ou identidade pessoal, isso que, ao que parece, tem
uma forma essencialmente narrativa, não será talvez a forma sempre provisória e
a ponto de desmoronar que damos ao trabalho infinito de distrair, consolar ou
de acalmar com histórias pessoais aquilo que nos inquieta?²
Pois é: o livro é um meio possível de
perpetuar nossas “histórias pessoais”
mutáveis e transitórias e ligá-las a outras tantas, para o eterno aprendizado da
compreensão mútua. A recompensa: arrancarmos, do caos das angústias, a
possibilidade do viver coletivo e da construção de um mundo “mais habitável” e humano.
Oxalá consigamos um dia...
Um abraço.
²Larrosa,
Jorge. Pedagogia Profana: danças,
piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
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