![]() |
Cândido Portinari |
Quando o assunto é a infância, a seriedade do adulto e a maturidade das reflexões costumam focalizar a violência ou a ausência da família, o descaso do poder público, a inoperância da educação... Há tanto o que não comemorar em Dia / Semana da Criança!
No entanto, embora digamos que a data é comercial,
lá estamos nós, adultos, de olho no calendário, pois nossos afetos impulsionam os
mais honestos sentimentos de humanidade.
Por isso é que “não, o Dia da Criança não se apagará
nunca”. Em outubro (como no Brasil), em novembro (como em muitos outros países),
ou em dias quaisquer, sempre haverá ocasiões para se pensar e cuidar de nossas
crianças. Acresce que também nós, crianças não totalmente perdidas em meio ao
peso da “adultice”, temos motivos para recordar e renovar nossa imagem infantil.
Então, se o leitor concorda comigo, convido-o a
seguir pela trilha de poetas que recriaram, em seu universo poético, um belo e
feliz universo da infância.
Claro que há muito de negativo com que nos
preocuparmos – o abandono, a agressividade, o descuido, a deseducação... Mas,
por momentos, deixemo-nos levar pela ternura das palavras, para alcançarmos o
estágio de “re-ser” crianças e, quem sabe, lançar no ar pesado de nossa época, uma
brisa de alegria que inspire ações amorosas voltadas aos pequenos.
Além do mais, se houver crianças à nossa volta, que
tal lermos em voz alta para elas, declamarmos com elas, brincar
palavreando, numa troca afetuosa que transforme, ao menos por instantes,
a fisionomia carrancuda do mundo?
Vamos,
leitor, vamos ao “doce sabor da infância”...
![]() |
Charles Roka |
Sempre
seremos crianças...
A
Criança...
Alberto Caeiro
A criança que pensa em
fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente,
mas como um deus.
Porque embora afirme que
existe o que não existe
Sabe como é que as
cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe
e não se explica,
Sabe que não há razão
nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em
algum ponto
Só não sabe que o
pensamento não é um ponto qualquer.
[Em: PESSOA,
Fernando. Ficções do Interlúdio: poemas
completos de Alberto Caeiro. In Obra
poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977.]
A
Boneca
Olavo Bilac
Deixando a bola e a
peteca,
Com que inda há pouco
brincavam,
Por causa de uma boneca,
Duas meninas brigavam.
Dizia a primeira:
"É minha!"
— "É minha!" a
outra gritava;
E nenhuma se continha,
Nem a boneca largava.
Quem mais sofria
(coitada!)
Era a boneca. Já tinha
Toda a roupa
estraçalhada,
E amarrotada a carinha.
Tanto puxaram por ela,
Que a pobre rasgou-se ao
meio,
Perdendo a estopa
amarela
Que lhe formava o
recheio.
E, ao fim de tanta
fadiga,
Voltando à bola e à
peteca,
Ambas, por causa da
briga,
Ficaram sem a boneca . .
.
[Em: Antologia ilustrada da poesia brasileira:
para crianças de qualquer idade; organ. e ilustr. Adriana Calcanhotto. Rio
de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.]
Infantil
Manoel de Barros
O menino ia no mato
E a onça comeu ele.
Depois o caminhão passou
por dentro do corpo do menino
E ele foi contar para a
mãe.
A mãe disse: Mas se a
onça comeu você, como é que
o caminhão passou por
dentro do seu corpo?
É que o caminhão só
passou renteando meu corpo
E eu desviei depressa.
Olha, mãe, eu só queria
inventar uma poesia.
Eu não preciso de fazer
razão.
[Em: Tratado geral das grandezas do ínfimo.
Rio de Janeiro: Record, 2001.]
Dilemas e interrogações
Sonhos
da Menina
Cecília Meireles
A flor com que a menina
sonha
está no sonho?
ou na fronha?
Sonho
risonho:
O vento sozinho
no seu carrinho.
De que tamanho
seria o rebanho?
A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha . . .
Na lua há um ninho
de passarinho.
A lua com que a menina
sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?
[Em: Ou
isto ou aquilo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.]
O
Doce
Carlos Drummond de
Andrade
A boca aberta para o
doce
já prelibando a gostosura
e o doce cai no chão de areia, droga!
Olhar em redor. Os outros viram
Logo aquele doce cobiçado
a semana inteira, e pago
do seu bolso!
Irá deixá- lo ali, só porque
os outros
estão presentes, vigilantes?
A mão se inclina, pega o doce, limpa-o
de toda areia e mácula
do chão.
“Se fosse em casa eu não
pegava não.
Mas aqui no colégio, que mal faz?”
[Em: Antologia ilustrada da poesia brasileira:
para crianças de qualquer idade; organ. e ilustr. Adriana Calcanhotto. Rio
de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.]
![]() |
Charles Roka |
Jogando o jogo: palavras, sons e movimentos
Esquisitices
Sergio Capparelli.
Em Jataí
é proibido fazer xixi.
Em Catiporâ
é proibido casar com rã.
Em Jaboticabal
é proibido comida com
sal.
Em Salvador
é proibido sentir dor.
Em São Expedito
é proibido comer
mosquito.
Em Guarabobô
é proibido fazer cocô.
Em Guaxupé
é proibido cheirar
chulé.
Em Aquidauir
é proibido proibir.
[Disponível em: http://poesiaparacrianca.blogspot.com.br/]
Criança
Crionça
Augusto de Campos
A onça era sonsa
Sonsa de nascença
Chegava de manso
Para encher a pança
Sem pedir licença
Jabuti, Teiú
Tucano, Tatu
Macaco, sagüi
Preguiça, Preá
Cutia, Quati
Não tinha descanso
Mas uma criança
Chamou a responsa
Criou uma dança
A dança da onça
Criança, crionça,
Crionça, criança
Dançando esta dança
A onça, desonça
Despança
Dispença
Sua comilança
E hoje só pensa
Em dançar a dança
Criança, crionça,
Crionça, criança.
[Em: Antologia ilustrada da poesia brasileira: para crianças de qualquer idade; organ. e ilustr. Adriana Calcanhotto. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.]
Trem de ferro
Manuel Bandeira
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virgem Maria que foi
isto maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Café com pão
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
Oô..
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pato
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
Que vontade
De cantar!
Oô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficia
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
[In Estrela da vida
inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.]
Nenhum comentário:
Postar um comentário