Mário de Andrade nasceu em 9 de outubro de 1893 e faleceu em 25 de fevereiro de 1945. Falar dele é abordar o homem múltiplo: escritor, musicólogo, pesquisador do folclore, jornalista, crítico de arte, professor de Música e História da Arte...
No mês de seu aniversário de nascimento, quero lembrá-lo, aqui, em três dessas tantas dimensões.
Anita Malfatti Tarsila do Amaral Lasar Segall |
O incentivador da cultura e da educação
Entre 1935 e
1938, Mário dirigiu o Departamento de Cultura de Municipalidade de São Paulo; em seus projetos, entrelaçou os campos da educação, cultura
e arte, que tanto o entusiasmavam. Impulsionou
atividades ligadas a teatro, cinema, concertos, exposições. Criou uma
biblioteca municipal, bibliotecas móveis e exposições no Viaduto do Chá,
visando aproximar a arte de todas as camadas da população.
Mais ainda (e muitos não
sabem): foi o criador dos Parques Infantis, que estão
na origem da educação infantil pública, em São Paulo e no Brasil. Como assinala
Ana Lúcia Goulart de Faria, foi “a
primeira experiência brasileira pública municipal de educação (embora não escolar)
para crianças de famílias operárias que tiveram a oportunidade de brincar, de
ser educadas e cuidadas, de conviver com a natureza, de movimentarem-se em
grandes espaços.”¹
Nos parques, as
crianças tinham oportunidade de conviver com diversas formas de expressão. Ana
Lúcia transcreve o depoimento de quem viveu a experiência: “Nós, crianças, brincávamos na rua.
Agora, com o parque, meus pais podiam trabalhar mais tranquilos, ele na SP
Railway e ela na fábrica de tecidos. O parque para nós foi a liberdade. [...] No
parque eu tinha tudo o que precisava: as professoras que tomavam conta, aulas
de música, crochê, bordado; era tanta coisa boa que eu ficava por aqui mesmo,
não voltava para casa.”
A intenção era a de recrear e educar, dando largo espaço às
atividades expressivas. Afirma o escritor:
“A
criança é essencialmente um ser sensível à procura de expressão. Não possui
ainda a inteligência abstraideira completamente formada. [...] Diante duma dor:
chora – o que é muito mais expressivo do que abstrair: ‘estou sofrendo’. A
criança utiliza-se indiferentemente de todos os meios de expressão artística.
Emprega a palavra, as batidas do ritmo, cantarola, desenha. Dirão que as
tendências dela inda não se afirmaram. Sei. Mas é essa mesma vagueza de
tendências que permite pra ela ser mais total. E aliás as tais “tendências”
muitas vezes provêm da nossa inteligência exclusivamente.”
O professor pesquisador do folclore
Mário de Andrade não se contentou em ser apenas professor de
piano e de História da Música. Aos poucos, seu contato com políticas públicas e
seu amadurecimento levaram-no a pleitear mais seriedade, menos comercialização
e maior abrangência do ensino musical, como demonstram trechos de seu discurso de
paraninfo no Conservatório
Dramático e Musical de São Paulo:
“Não se ensina música no Brasil, vende-se
virtuosidade. A maioria dos
conservatórios se comercializa então, engolidos pela torrente niveladora. Se
tornam produtores de pianistas e violinistas, confundindo a elevação cultural
da sua finalidade com as acomodações despoliciadas do ensino particular. Não
são conservatórios, são cooperativas de professores particulares. [...]
Faz-se absolutamente necessário que se oficialize o ensino musical, porque só a defesa e verbas garantidas permitirá a sobrevivência de escolas ensinadoras de música, exigências severas nos exames, estudos completos de humanidades, multiplicação de disciplinas complementares, disseminação dos processos de música de conjunto e o combate ao conceito fogueteiro da virtuosidade.”²
Faz-se absolutamente necessário que se oficialize o ensino musical, porque só a defesa e verbas garantidas permitirá a sobrevivência de escolas ensinadoras de música, exigências severas nos exames, estudos completos de humanidades, multiplicação de disciplinas complementares, disseminação dos processos de música de conjunto e o combate ao conceito fogueteiro da virtuosidade.”²
Mário não restringia o ensino à música erudita. Ao contrário – e embora dissesse não ser folclorista – foi grande pesquisador do folclore, quer por conta própria, quer à frente do Departamento de Cultura de São Paulo. Nesse campo, voltou sua atenção para inúmeras manifestações da identidade brasileira, como superstições e crendices ligadas à alimentação e às doenças, além de mitos de várias regiões.
Entretanto, seu interesse maior parece ter-se relacionado à
produção musical. Sua natural inclinação pode ter-se ampliado pelo contato com Villa-Lobos, na Semana de Arte Moderna. Villa compôs muitas
obras baseadas em pesquisas do folclore musical brasileiro; Mário, sozinho
ou à frente do Departamento de Cultura de São Paulo, catalogou
ritmos, cantigas e danças populares.
A canção “Murucututu” serve de amostra da recolha do
professor pesquisador:
O
escritor modernista
Ativista
da Semana de Arte Moderna de 1922, o Mário-escritor advogou, em várias obras,
a criação e utilização de uma “língua brasileira”, capaz de representar mais
apropriadamente a identidade do povo e de sua cultura:
“Pouco me incomoda agora que eu esteja
escrevendo igualzinho ou não com Portugal: o que eu escrevo é língua brasileira
pelo simples fato de ser a língua minha, a língua de meu país, a língua que
hoje representa no mundo muito mais o Brasil que Portugal: enfim: a língua do
Brasil.” ³
Em
“Macunaíma”, por exemplo, o herói-anti-herói incorpora mitos, costumes e
linguajares brasileiros, como nestes fragmentos do capítulo “Uraricoera”, a
seguir. Reparem especialmente na enumeração exaustiva (sem pontuação), nas
expressões, pronúncias, usos pronominais e construções sintáticas que remetem à
linguagem coloquial.
Uraricoera
... Mais pra diante
fez que nem tinha reparado e veio muito peixe, veio pirandira veio pacu veio
cascudo veio bagre e jundiá tucunaré, todos esses peixes e Jiguê voltou carregado
pra tapera depois de esconder a cabaça na raiz do cipó. Todos ficaram
sarapantados com aquele mundo de peixe e comeram bem. [...]
– Então o que você fez
hoje?
– Cacei viado.
– Quê-dele ele!
– Comi, uai! Fui andando por um caminho, vai, topei
rasto dum... catingueiro não era não mas era mateiro. Me agachei e fui no
rasto. Olhando olhando, sabe, dei uma cabeçada numa coisa mole, que engraçado!
sabem o que era! pois a bunda do viado, gente! (Macunaíma deu uma grande
gargalhada). Viado perguntou pra mim: – Que está fazendo aí, parente!, – Te
campeando! secundei. E vai, matei o catingueiro que comi com tripa e tudo.
Vinha trazendo um naco pra vocês, vai, escorreguei atravessando o ipu, dei um
tombo, naco foi parar longe e tanajura sujou nele.
[ANDRADE, Mário de. Macunaíma – o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Martins Editora,
1972.]
No
poema “Descobrimento”, a par da preocupação com a condição social do
brasileiro (que nos faz pensar na sensibilidade do artista educador e voltado á
cidadania), Mário de Andrade reafirma, na construção linguística, sua disposição
de privilegiar uma linguagem menos formal e mais próxima da fala popular – uma
de suas marcas de escritor modernista.
Descobrimento
Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.
Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu.
[ANDRADE,
Mário. Poesias completas. São Paulo:
Martins, 1974.]
Além das dimensões: as angústias do homem
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Cândido Portinari |
Numa espécie de confissão, o leitor perceberá o sentido de incompletude e de insatisfação com sua obra e, mais que tudo, a marca lucidamente humana de se saber contraditório, passível de transformações e aprendizados:
“Não tenho a mínima reserva em afirmar que toda a minha obra representa
uma dedicação feliz a problemas do meu tempo e da minha terra. Ajudei coisas,
maquinei coisas, fiz coisas, muita coisa! E no entanto me sobra agora a
sentença de que fiz muito pouco, porque todos os meus feitos derivam duma
ilusão vasta. E eu que sempre me pensei, me senti mesmo, sadiamente banhado de
amor humano, chego no declínio da vida à convicção de que faltou humanidade em
mim. Meu aristocracismo me puniu. Minhas intenções me enganaram.”
[In: MONTEIRO, Luciano. O
movimento modernista e a construção de uma identidade nacional sob a égide do
Estado Novo. Disponível em: https://bibliobelas.files.wordpress.com/2012/02/1345085694_arquivo_artigo-lucianomonteirosbhc.pdf]
_________________
¹ Esta
citação e as duas seguintes foram extraídas de: FARIA, Ana Lúcia Goulart de. A contribuição dos parques infantis de Mário
de Andrade para a construção de uma pedagogia da educação infantil.
Disponível em: www.scielo.br/pdf/es/v20n69/a04v2069.pdf.
² ANDRADE, Mário.
Oração de Paraninfo - 1935
Disponível
em: www.proposicoes.fe.unicamp.br/.../46-diversoeprosa-andradem.pdf.
³ RODRIGUES, Leandro Garcia. A língua
brasileira de Mário de Andrade: nacionalismo, literatura e epistolografia.
Disponível em: http://www.todasasmusas.org/08Leandro_Garcia.pdf.
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