O testemunho de quem lê e escreve
Na
matéria anterior (08 /09/2015), registrei o conto Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector. Ali, a protagonista
representa a própria escritora, que ali, como em vários outros momentos da
vida, confessou sua grande paixão por livros.
Ler
é ato necessário para o escritor, iniciante ou não. Mas, para além disso, e a
qualquer leitor, abre vasta janela para o conhecimento de si, do outro, do
mundo. Quem descobre a leitura dificilmente a abandona; talvez por isso, muitas
vezes segue adiante, comprazendo-se também em escrever.
O
escritor Artur da Távola disse em crônica: “Jovem
estudante consulta-me sobre seus escritos. Dou-lhe esta resposta: Você tem
vocação para escrever? Então não consulte ninguém por ora. Leia. Leia. Leia.”¹
Faz
sentido: ler leva a escrever, escrever leva a ler. É o que me dizem, por
exemplo, amigas leitoras-escritoras que, há algum tempo, fizeram-me presente de
preciosos depoimentos, dizendo de suas infâncias leitoras. Transcrevo-os, em
boa parte:
Vernaide Wanderley,
poeta e prosadora: Acho que li como gente
grande. Era louca por livro; quando minha mãe viajava, eu dizia "traga um
livro”. Minha infância foi povoada pelos mais belos e tradicionais contos de
fadas e pelas histórias de Monteiro Lobato. Agregado a tudo isso, tive a sorte
de conviver com pessoas contadoras de histórias – especialmente Guia (lavava a
roupa de nossa casa) e meu pai. É um legado que passou a impregnar a construção
de minha poesia!
Jeanne Nanne, poeta:
Faz tanto tempo e parece que foi ontem! “Lili
do Rio Roncador”, “Tistu, o Menino do Dedo Verde”, coleção “Para Gostar de Ler”
(acho que li todos eles), “O Gênio do Crime” , “Reinações de Narizinho” ,
tantos, tantos, tenho todos, estão na casa de minha mãe. Sempre fui quieta,
fugia dos grupos, queria estar em meu canto; e enquanto lia sonhava, o livro
era meu mundo, me transportava para dentro das histórias e de lá era difícil
sair...
Thereza
Wright, afeiçoada leitora: Escutava
muitas histórias lidas e contadas. Meu pai sempre gostou muito de ler, foi um
grande incentivador para mim e meus irmãos. Toda semana ele nos levava para a
livraria do aeroporto, para comprarmos nossos gibis e revistas infantis.
Lembro-me de uma, chamada o Cruzeiro Infantil. Os livros da série "Para
Gostar de Ler", agora lembrei, eram os preferidos da minha professora de
literatura na escola primária. O que mais lembro e me marcou foi "A Ilha
Perdida."
¹ TÁVOLA,
Artur da. De Quem escreve. Dispon. em
http://gargantadaserpente.com/artigos/artur_tavola10.shtml
Os muitos primeiros livros de Clarice
Quem
teve boas experiências leitoras nos primeiros anos, provavelmente guarda na
memória os títulos que lhe fizeram a cabeça, ou lhe tocaram o coração. A
escritora Clarice Lispector relembrou vivências da leitora Clarice, em crônica
que deixo registrada a seguir. Nela, faz referência ao livro de Lobato,
obsessão da personagem de Felicidade
Clandestina, e relata outros “primeiros livros” que lhe deixaram marcas.
Vale
a pena acompanhá-la e à sua escrita sempre inovadora.
O primeiro
livro de cada uma das minhas vidas
Perguntaram-me uma vez
qual foi o primeiro livro da minha vida. Prefiro falar do primeiro livro de
cada uma das minhas vidas. Busco na memória e tenho a sensação quase física nas
mãos ao segurar aquela preciosidade: um livro fininho que contava a história do
patinho feio e da lâmpada de Aladim. Eu lia e relia as duas histórias, criança
não tem disso de só ler uma vez; criança quase aprende de cor e, mesmo quase
sabendo de cor, relê com muito da excitação da primeira vez. A história do
patinho que era feio no meio dos outros bonitos, mas quando cresceu revelou o
mistério: ele não era pato e sim um belo cisne. Essa história me fez meditar
muito, e identifiquei-me com o sofrimento do patinho feio – quem sabe se eu era
um cisne?
Quanto a Aladim, soltava
minha imaginação para as lonjuras do impossível a que eu era crédula: o
impossível naquela época estava ao meu alcance. A ideia do gênio que dizia:
pede a mim o que quiseres, sou teu servo – isso me fazia cair em devaneio.
Quieta no meu canto, eu pensava se um dia um gênio me diria: “Pede a mim o que
quiseres?”. Mas, desde antão, revelava-se que sou daqueles que têm que usar os
próprios recursos para ter o que querem, quando conseguem.
Tive várias vidas. Em
outra de minhas vidas, o meu livro sagrado foi emprestado porque era muito
caro: Reinações de Narizinho. Já contei o sacrifício de humilhações e
perseveranças pelo qual passei, pois, já pronta para ler Monteiro Lobato, o
livro grosso pertencia a uma menina cujo pai tinha uma livraria. A menina gorda
e muito sardenta se vingara tornando-se sádica e, ao descobrir o que valeria
para mim aquele livro, fez um jogo de “amanhã venha em casa que eu te
empresto”. Quando eu ia, com o coração literalmente batendo de alegria, ela me
dizia: “hoje não posso emprestar, venha amanhã”. Depois de cerca de um mês de
venha amanhã, o que eu, embora altiva que era, recebia com humildade para que a
menina não me cortasse de vez a esperança, a mãe daquele monstrinho de minha
vida notou o que se passava e, um pouco horrorizada com a própria filha, deu-lhe
ordens para que naquele mesmo momento me fosse emprestado o livro. Não o li de
uma vez, li aos poucos, algumas páginas de cada vez para não gastar. Acho que
foi o livro que me deu mais alegria naquela vida.
Em outra vida que tive,
eu era sócia de uma biblioteca popular de aluguel. Sem guia, escolhia os livros
pelo título. E eis que escolhi um dia um livro chamado O lobo da estepe, de
Herman Hesse. O título me agradou, pensei tratar-se de um livro de aventuras
tipo Jack London. O livro, que li cada vez mais deslumbrada, era de aventuras,
mas de outras aventuras. E eu, que já escrevia pequenos contos, dos 13 aos 14
anos fui germinada por Herman Hesse e comecei a escrever um longo conto
imitando-o: a viagem interior me fascinava. Eu havia entrado em contato com a
grande literatura.
Em
outra vida que tive, aos 15 anos, com o primeiro dinheiro ganho por trabalho
meu, entrei, altiva porque tinha dinheiro, numa livraria, que me pareceu o
mundo onde eu gostaria de morar. Folheei quase todos os livros dos balcões, lia
algumas linhas e passava para outro. E, de repente, um dos livros que abri
continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada,
eu pensava: mas esse livro sou eu! E, contendo um estremecimento de profunda
emoção, comprei-o. Só depois vim a saber que a autora não era anônima, sendo,
ao contrário, considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine
Mansfield.
LISPECTOR, Clarice. A
descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992. Disponível em:
http://ftp-acd.puc-campinas.edu.br/pub/professores/cchsa/lucianeoliveira/PraticaFormacao/TextoClariceLispector.pdf
Cecília e a tentação do livro
Se
o envolvimento em leitura começa na infância, dificilmente se desprende do
indivíduo, no decorrer da vida. A vitrine da livraria, a lista dos mais
vendidos, os novos lançamentos de editoras, a banca de jornal, os cartazes de
ruas e lojas, o letreiro do metrô... como ignorar tudo isso? E há ainda os
eletrônicos...
No
início da crônica Um livrinho e muitas
saudades, a sensibilidade de Cecília Meireles desenha verbalmente
sentimentos e movimentos que muitos de nós, viciados em leitura, já experimentamos,
ao depararmo-nos com “aquele” livro. Deixo o texto como despedida, por hoje.
Um livrinho e muitas saudades
Entro numa livraria
sem estar procurando livro nenhum (pelo menos, é o que suponho, uma vez que nos
conhecemos tão pouco e ignoramos a razão de tantos dos nossos atos).
Entro numa livraria como quem passeia
pelo mundo do espírito, encontrando pelas prateleiras nomes antigos e modernos,
saudando as velhas amizades, recordando tempos de estudar, tempos de sonhar,
tempos de viver.
De repente, um livrinho chama por
mim. Não chama apenas minha atenção: chama, realmente, por mim: “Vem cá, me
leva!”, diz ele. E diz isso pelo desenho da capa, que é um desenho infantil com
várias crianças, um burburinho e duas cobras. Tão graciosa é a capa que nem
procuro saber o nome do livro nem o do autor. Basta-me contemplar o desenho. E,
como não estou inclinada a comprar livros, sigo adiante. Mas a voz, uma pequena
voz discreta, continua a pedir-me: "Venha cá! Me leva!".
Passo pelos velhos clássicos,
encontro-me com os românticos, topo com os contemporâneos... E a pequena voz a
chamar-me “Vem cá!”...
Volto atrás. Tenho de levar aquele
livro.
[...]
MEIRELES, Cecília."Escolha seu
sonho" . Rio de Janeiro: Record, 1996.
E para quem conhece
o valor de um bom livro...
Deixo o curta Os Fantásticos Livros Voadores do Sr. Morris Lessmore.
Bom proveito!
Nenhum comentário:
Postar um comentário