Uns têm paixão por ler. Outros vão mais longe e estendem a paixão ao livro – ao objeto livro. Como os escritores Eco, Manguel e muitos outros. Como tantos leitores, que têm na leitura seu vício pessoal e intransferível.
Quem sabe você que me lê seja um
deles...
Em defesa do livro de papel – ou a paixão por ele
O escritor Alberto
Manguel disse muitas vezes: "Somos os livros que já lemos". E ainda: “Cada
biblioteca é uma autobiografia, porque é feita de escolhas. Eu
gostaria de escrever um dia uma biografia de uma pessoa apenas pelos livros que
ela tem na estante.”¹
Esse
“personalismo” que o livro permite – esse dizer de seu dono, esse deixar entrever
sua história de vida – talvez seja um dos motivos de sua resistência ante o poderoso
concorrente em formato digital. Afinal,
convenhamos: sublinhar palavras, marcar trechos, dobrar a pontinha da folha,
para reler depois – são ações difíceis de serem imaginadas, em se tratando do
livro eletrônico. (E que dizer de ler em cama aconchegante e fechar os olhos
mansamente, sem ter a preocupação de “desligá-lo”?!)
Umberto
Eco concorda – mas, diga-se, sem desprezar o e-book:
“O
livro ainda é o meio ideal para aprender. Não precisa de eletricidade, e você
pode riscar à vontade. [...] Em minha viagem pelos Estados Unidos, [...] passei
a ler no iPad, você acredita? Pois é. Mesmo assim, acho que os tablets e
e-books servem como auxiliares de leitura. São mais para entretenimento que
para estudo. Gosto de riscar, anotar e interferir nas páginas de um livro. Isso
ainda não é possível fazer num tablet.”²
Eco acrescenta razões para a permanência do livro ad aeternum, “assim como a roda ou o
martelo”:
“Você pode levá-lo para sua banheira sem ter
medo de morrer eletrocutado; pode ler numa ilha deserta, enquanto o pobre
Robinson Crusoé não saberia o que fazer com as baterias descarregadas de um
e-book. Este livro em papel sobrevive mesmo que o deixemos cair do 5º andar de
um prédio, mas tente fazer o mesmo com um livro eletrônico!”³
¹ http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/tag/alberto-manguel/
²
http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2013/07/bumberto-ecob-informacao-demais-faz-mal.html
³ http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/umberto-eco/
A
paixão pelo livro, na ficção
A Literatura muitas vezes volta-se
para si e narra sua própria capacidade de alumbramento. Por exemplo, Madame
Bovary, de Flaubert, e Dom Quixote, de Cervantes, transportam-se ao imaginário
e creem poder alcançar, em suas vidinhas, a existência venturosa das
personagens dos livros lidos.
De modo semelhante, mas não idêntico, Liesel,
de A menina que roubava livros, de
Markus Zusak, encontra amparo no livro enquanto objeto de afeto, antes mesmo de
saber ler. Aos poucos, faz da palavra escrita o caminho para sua própria
sobrevivência, em meio à agonia sem nome do nazismo, e mais: promove o encontro
salvador de Max (seu amigo à beira da morte) com a palavra, lendo para ele,
todas as noites, até que volte a abrir os olhos. Simbolicamente, quem narra a
história é justamente a Morte – que se espanta e se maravilha ante a capacidade
de viver que Liesel consegue, roubando (salvando) livros e, por essa via, tomando
alento e escapando ao próprio e destruidor sofrimento.
Essa amostragem de paixão livresca
poderia continuar, mas quero finalizá-la, por enquanto, com uma personagem cujo
amor pelo livro é comparável à paixão erótica pelo ser amado. Trata-se da
protagonista do belo conto (autobiográfico) de Clarice Lispector, Felicidade Clandestina, registrado a
seguir.
Felicidade Clandestina
Ela era gorda, baixa, sardenta e de
cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme,
enquanto nós todas éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos
da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança
devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda:
até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava
em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do
Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás
escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a
crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa
menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias,
altinhas, de cabelos livres.
Comigo exerceu com calma ferocidade o
seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me
submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de
começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me
que possuía As Reinações de Narizinho,
de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um
livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente
acima das minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte
e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei
na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave,
as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa,
literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não
me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o
livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo.
Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu
recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas
ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia
seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o
amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí
nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O
plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia
seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo.
Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu
voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o
drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não
sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de
seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu
sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se
quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua
casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo
ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra
menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob
meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à
porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe.
Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de
sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa,
entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais
estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu.
Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca
saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a
descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que
tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência da perversidade de sua filha
desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de
Recife. Foi então que, finalmente, se refazendo, disse firme e calma para a
filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o
livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro:
“pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode
ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava
estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o
livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que
segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto
tempo levei até chegar a casa, também pouco importa. Meu peito estava quente,
meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler.
Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois
abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela
casa, adiei mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara
o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas
dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade
sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como
demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha
delicada.
Às vezes sentava-me na rede,
balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era uma menina com um livro: era
uma mulher com o seu amante.
[LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.]
[LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.]
Você,
leitor ou leitora...
... Provavelmente, lembrou-se de
outras obras, em que a relação afetiva de personagens com o livro e a leitura é
parte importante do enredo. Se quiser partilhar sua lembrança conosco, fique à
vontade.
Abraços a todos.
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