Começo
com uma pergunta: você, como leitor – e até, quem sabe, como escritor – já
reparou que, para um texto cumprir sua função comunicativa, precisa haver um pacto inicial do escritor com seu escrever e com quem
o lê? Trata-se, para o
produtor do texto (escrito ou falado), de exprimir uma verdade interna, direcionada
a um interlocutor determinado, e com palavras adequadas a esse interlocutor, de
modo a promover o acordo ou compreensão desejada. Porque, se o acordo não existir
ou for inconsistente, a função comunicativa tornar-se-á fraca ou inexistente.
Ainda
que apenas intuitivamente, o produtor de uma fala ou escrita procura firmar/respeitar
esse pacto, ou seja, busca a adesão do ouvinte ou leitor, escolhendo a melhor forma
de fazer-se entender.
Não
estou me referindo apenas a grandes obras ou textos superelaborados, não. Pense,
por exemplo, nas palavras e no tom cuidadosamente pensado pelo filho, ao
explicar aos pais que a mesada acabou antes do fim do mês; ou nas frases bem
organizadas de um bilhete em que a mãe detalha uma receita culinária complicada
à filha recém-casada; ou no cuidado com que um professor escolhe textos e modos
de explicar à classe um novo conteúdo.
Tente,
agora, aplicar o que ficou dito acima a outras formas de expressão humana:
pintura, dança, música, escultura, obra arquitetônica. Verá que muito do que
nos “toca” ou, ao contrário, deixa-nos indiferentes, tem origem nesse “ajuste”
natural de toda comunicação. Assim, Picasso e o cubismo entusiasmam os amantes da
arte inventiva e transformadora, mas podem desgostar aqueles que apreciam e/ou
praticam a pintura clássica.
Peço,
agora, que vá mais longe, e procure aplicar a mesma atitude leitora a qualquer
instituição escolar que conheça. Sim, porque não lemos apenas livros e outras
obras artísticas: lemos, também e primariamente, a realidade que nos cerca, como
Paulo Freire ensinou tão bem¹; na verdade, lemos o mundo desde o nascimento, ou
seja, muito antes da aprendizagem da leitura da palavra.
Pois
bem, entremos no ambiente escola. Um bom observador faz sua leitura antes mesmo
de andar pelos recintos, e desde a primeira olhadela. Explico, com uma
comparação.
Numa
livraria, ao escolher um livro, o pretenso leitor examina desde a capa (imagem,
autor, editora), a orelha (sinopse), o índice (assuntos). Essa leitura prévia já lhe dá uma ideia do conteúdo. Se for a uma
biblioteca ou sebo, então, “lerá” até na condição física do livro – capa,
anotações extras –, sua história passada: se foi muito ou pouco manuseado, lido,
cuidado.
Do
mesmo modo, em uma primeiríssima leitura, o estado de muros,
paredes, chão, materiais, consegue pôr à mostra histórias passadas e presentes e indiciar aspectos da “personalidade” do espaço
educacional. Vou além: murais e cartazes – o que neles é dito, como é dito e
quem diz – revelam níveis de competência de educadores e alunos, e, mesmo,
denunciam autorias espúrias (a mão do professor fazendo pelo aluno, por
exemplo).
Por outro lado, se quem visita a escola
encontra espaços bem organizados, pátios silenciosos, cartazes imaculados...
certamente chegará à compreensão de que está diante da escola ideal: correto?
Nem sempre!! O “leitor” de tal lugar, se
ultrapassar a leitura de superfície e procurar ler “entre linhas”, poderá se
perguntar: “Tanta perfeição, assim higienicamente exposta, é fruto de um grupo
autônomo e amadurecido, ou resultado de medo e autoritarismo?”
A
esta altura, creio não ser preciso falar muito da importância dessa leitura,
uma vez que estamos falando de ambientes de desenvolvimento integral de
crianças e jovens. Nem o quanto o comprometimento com a educação de qualidade
pode se beneficiar desse olhar atento.
Se
você é pai/mãe de aluno, ou se é estudante, alguma vez já se dispôs a “ler” o
espaço físico de alguma escola? E saber se o que ele diz do cotidiano e de seus
frequentadores é coerente com o que você efetivamente
percebe e conhece?
O que estou querendo dizer: a escola X
ou Y é o que aparenta ser? Enquanto produtor de educação e cultura, suas marcas
visíveis correspondem às ações? Em que medida cumpre o que projeta, e como
deixa o processo e os resultados chegarem ao seu público e à comunidade? São
indagações que, pensadas coletiva e integradamente, levam à melhoria do processo
educacional.
Portanto,
ao entrar pela primeira vez (ou da próxima vez) em uma escola, procure
interpretar mais amplamente o que seus sentidos captam. Porque, do mesmo modo
que nosso mundo é nosso espelho – é o que fazemos dele –, a escola é o reflexo
de seus integrantes, de suas ideias e ações.
¹ “...A leitura do mundo
precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da
leitura daquele”. FREIRE, Paulo. A
importância do ato de ler. Cortez, 1983.
Rubem Alves lê a Escola
da Ponte
Deixo,
ao terminar, trecho da leitura² que Rubem Alves fez da Escola da Ponte, em
Portugal: sua percepção aguçada detectou aspectos preciosos, que o levaram a
declarar seu amor pela instituição.
Vou contar um caso de
amor. Amor à primeira vista. Eu me apaixonei pela Escola da Ponte. Bastou vê-la
para que um passado reverberasse dentro de mim.
[,,,]
Dentro da
escola
Andamos um pouco e a
menina abriu a porta da escola. Era uma grande sala, com muitas mesinhas,
crianças pequenas, crianças grandes, algumas com Síndrome de Down, todas juntas
no mesmo espaço. Cada uma fazendo a sua coisa. Estantes com livros. Vários
computadores. Algumas crianças lendo ou escrevendo. Outras consultando livros e
a internet. Algumas professoras assentadas às mesinhas junto das crianças.
Ninguém falava alto. Só sussurros. E ouvia-se, baixinho, música clássica.
[...]
Leis e
direitos
Numa parede da escola se
encontravam as “leis”. Mais importante que as leis era o fato de que elas
tinham sido sugeridas e aprovadas pela assembleia de alunos. Aquele documento
representava a vontade coletiva de crianças, professores e funcionários. Era o
seu “pacto social” de convivência. Lembro-me de alguns itens. “Todas as pessoas
têm o direito de dizer o que pensam sem medo.” “Ninguém pode ser interrompido
quando está falando.” “Não se deve arrastar as cadeiras fazendo barulho.” O item
que mais me comoveu e que é revelador da alma daquelas crianças foi esse:
“Temos o direito de ouvir música enquanto trabalhamos, para pensar em
silêncio”. Entendi, então, a razão da música clássica que se ouvia baixinho.
² ALVES, Rubem. O Desejo
de Ensinar e a Arte de Aprender/Rubem Alves. - Campinas:
Fundação EDUCAR DPaschoal, 2004.
A você que me lê
Sugiro
que considere essa pitada de Rubem Alves como a leitura de entrada (como se adentrasse
uma escola...), o aperitivo para o texto integral do educador (Experiência: a Escola da Ponte, in O desejo
de ensinar e a arte de aprender) que reputo precioso, em dois sentidos:
enquanto informação sobre um projeto educacional inovador e corajoso, e
enquanto escrita encantadora e sensível de um mestre.
Um
abraço.
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