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Desenho de Manoel de Barros |
Férias. As
atividades escolares se aquietam, e nos espaços educacionais reina relativo
silêncio. Hora de tomar distância, com pelo menos dois objetivos: um deles, avaliar
projetos passados e organizar os futuros; o outro, despregar-se concretamente da
realidade-escola, tomar novos ares... viajar, quem sabe?
Para mim, no instante
presente, os dois objetivos se mesclam, e empreendo um movimento particular. Viajo
“fora da asa”, como na poesia de Manoel de Barros, mas, paradoxalmente, bem
abrigada dentro dela; com tempo de tatear/sentir cada traço, ondulação, textura
da realidade “asa-escola” do contexto brasileiro, em que atuo.
Minha viagem
se dá no tempo: revisito o espaço enevoado de uma experiência educacional
antiga, e dela trago reflexões capazes de lançar alguma luz sobre o presente
momento da educação.
No passado: asas feridas e vida
apagada
Numa
associação de amparo a famílias carentes, um grupo de crianças (de 7 a 14 anos)
passava as manhãs em várias atividades. Todas se distribuíam, à vontade, em
mesinhas para quatro pessoas; mas três delas, com mais de dez anos, ficavam em
mesa separada e afastada, pois eram consideradas delinquentes e agressivas –
especialmente M, a mais velha.
É nela que
foco meu olhar: muito calada, sem fitar os outros de frente, M parecia não se
importar com absolutamente nada. Em contrapartida, nas oficinas de expressão
artística (e somente nelas), desenhava formas delicadas e paisagens amenas,
sempre em cores suaves. Nesses momentos, seu corpo todo falava: o tronco e a
cabeça se curvavam, para entregar-se ao papel, e os braços se arredondavam,
como que o abraçando.
Nas audições
de música, seu rosto era puro enlevo. Já nas danças, era mais difícil
entregar-se, e delas quase não participava, mesmo perante o entusiasmo das duas
companheiras “segregadas”. Não obstante, algumas vezes, chegava a ensaiar
discretos e delicados movimentos. (Aliás, que fique bem claro: nas oficinas, o
“espaço separado” tinha sido abolido desde o primeiríssimo momento.)
O certo é
que, pouco a pouco, a partir de um único olhar compreensivo e amoroso, M logrou
granjear a aceitação, compreensão e até apoio do grupo – que antes a ignorava,
quando não a rejeitava e até temia. Por esse meio, logrou encontrar um pequeno,
mas adequado refúgio para curar as feridas que a impediam de voar fora da
própria casca.
No presente: asas danificadas de um
ser complexo
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Desenho de Manoel de Barros |
A pequena
história, se fala de impedimentos, também dá conta de conquistas. Certamente, o
espaço de atuação social dessa personagem era diminuto. Contudo, o que encanta
é perceber que alguma determinação interior, conjugada à alma sensível, levou a
jovem M a superar obstáculos e encontrar saídas – ali, no ambiente mesmo da interdição.
É tarefa do
educador ver a Escola com olhos críticos e clínicos, a fim de analisar seus
problemas e assegurar-lhe vida plena e dinâmica. Por isso, talvez, essa imagem
de limitação e voz silenciada, bem como de superação e desempenho, apesar e
além dos limites, toca-me como a imagem da própria instituição escolar.
Diz a psicóloga portuguesa Vera Mendes: “A Escola está doente e urge por cuidados que
lhe devolvam o sentido, a orientação e a dignidade própria”¹
Uma escola doente... como se
fosse um ser vivo. Leitor, essa formulação parece-lhe estranha?
Talvez não seja. Afinal, suas peças estruturais são /
representam legítimas células vitais – os seres humanos a ela ligados –, que
por sua vez compõem órgãos funcionais e dinâmicos entrelaçados: o conjunto de
profissionais, alunos, família, comunidade. Não é à toa que profissionais e
demais interessados em educação, comumente, discutem as “doenças” desse
organismo que, embora vivo, tem apresentado sinais de debilidade e disfunções
preocupantes.
É desanimador
constatar: nossas escolas, de algum modo deficientes, têm seu campo de ação
diminuído, não encontram o caminho objetivo da produtividade e utilidade,
estão, em sua maioria, segregadas das comunidades em que se estabelecem – e,
por tudo isso, exibem arranhões e feridas, algumas sangrantes. De fato, elas
pouco acrescentam às comunidades mais desassistidas, aos jovens (de todos os
espaços) seduzidos pela droga e pelo crime, ao cidadão que não conhece seus
direitos e deveres.
Em contraposição, o
que a sociedade requer é a constituição de uma escola viva e saudável. Uma escola com corpo e alma, à semelhança dos seres humanos (pois
constituído pelo conjunto deles), que se movimente com harmonia e objetividade,
e alce voo em sincronia com o universo em que atua.
Como chegar a
isso?
Transformando o presente:
asas para uma escola viva
Sabemos: assim como há alunos segregados ou
invisíveis, também existem escolas semiapagadas, afastadas de pessoas e grupos
transformadores, sem dinâmica que lhes permita cumprir sua função social de
formar cidadãos integrados, atuantes e
capazes de construir sua história e de sua comunidade.
Uma pessoa sábia
disse um dia: – “ser humano é ser junto”; e julgo que
posso aplicar a afirmação ao ideal de escola verdadeira e compromissada, que se
humaniza por saber que humanizar-se é “ser junto” com cada um e todos, em todas
as dimensões do organismo social. O desempenho afirmativo, especialmente quando
as condições são adversas, é conquista coletiva, ancorada na vontade,
determinação e paciência, porque não acontece de imediato.
Os poucos e
parcos registros da menina M revelavam importantes lições (embora de sabedoria
mais intuitiva que lógica): reconhecer e aceitar a limitação e, a partir daí,
agir com ela e apesar dela. Do mesmo modo, a nós, que nos preocupamos com os
rumos educacionais, não resta senão ter paciência e compreensão com o corpo
adoentado; e agir, cada um em seu limite, mas em ações agregadoras, capazes de multiplicar forças e alargar horizontes.
Muito além de
meramente apontar o que não funciona, é essencial debruçarmo-nos sobre o
organismo enfraquecido, abraçá-lo e aninhá-lo com nosso afeto e entendimento,
procurando soluções curadoras que assegurem, ainda que a passos inseguros, o
espaço de desenvolvimento para o ser vivente Escola.
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Desenho de Manoel de Barros |
Reinventar-se
Escola viva pressupõe enlaçar tempos, espaços e
pessoas. Supõe educação em contínuo refazer-se, sem desaprender o passado;
renovar-se, sem perder de vista a razão e a emoção. Escola viva é ciência e arte...
Por isso mesmo, dou a palavra final aos poetas,
mestres da invenção e da mudança. Que Manoel de Barros e Cecília Meireles nos
façam voar na asa e fora da asa, de forma que o afeto tempere a razão e ensine
a nós, educadores (da escola e de fora dela), os segredos de bons e
compartilhados voos.
Reinvenção
A vida só é
possível
reinventada.
Anda o sol
pelas campinas
e passeia a
mão dourada
pelas águas,
pelas folhas…
Ah! tudo
bolhas
que vêm de
fundas piscinas
de
ilusionismo… – mais nada.
Mas a vida, a
vida, a vida,
a vida só é
possível
reinventada.
[...]
MEIRELES, Cecília, de Vaga
Música. Disponível em: http://www.antoniomiranda.com.br/Brasilsempre/cecilia_meireles.html
As lições de R. Q.
Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano):
A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um
formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar - como em Chagall.
[...]
BARROS, Manoel. Livro sobre Nada. Rio de janeiro:Record, 2001.
(Os desenhos desta matéria são, também, de autoria do poeta.)
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