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Caipira picando fumo - Almeida Júnior |
Junho: época das “festas caipiras”, das comidas típicas e das tradicionais canções, com seu linguajar “errado” – como muitas vezes avaliam os de maior instrução e/ou os nativos das grandes cidades. Muitos podem até achar saborosa a linguagem dos causos, poemas e letras de canções caipiras, sertanejas e nordestinas; porém, poucos a aprovam ou a admitem fora desses contextos (e dos eventos juninos de escolas e clubes, é claro).
Caetano
Veloso tem razão, quando canta: “É que
narciso acha feio o que não é espelho”. Assim é, quanto à linguagem. Principalmente
se somos escolarizados, temos um círculo social mais “culto” e vivemos em meio
urbano relativamente desenvolvido, costumamos reputar nossos hábitos e tipo de
vida como os únicos aceitáveis. Em paralelo, julgamos que nossa linguagem é a
mais correta e que, em comparação a ela, os outros modos de dizer
(principalmente de regiões interioranas) são incorretos, por exibirem
concordância e termos discrepantes (“corruptelas”) frente ao falar culto.
Entretanto,
se for esse o ponto de vista, um linguista poderá nos provar que os “errados”,
os que corrompem a língua somos nós, que nos orgulhamos de preservar a tal norma
culta padrão. Exemplifico, trazendo a voz de Marcos Bagno¹ que, ao expor certos
aspectos da língua portuguesa, desenha um elo entre determinados falares
caipiras e nordestinos e a linguagem aprimorada de... Camões.
De
início, vejamos seus comentários sobre a troca do L pelo R, objeto de
caçoada para muitos falantes “certinhos”. Bagno nos mostra que essa mudança é
natural e acontece na passagem de palavras de outras línguas ao português. Eis
algumas ocorrências, em palavras que todos nós falamos e consideramos
apropriadas e “corretas”:
·
clavu (latim)
< cravo
·
sclavu (latim)
< escravo
·
flaccu (latim)
< fraco
·
fluxu (latim)
< frouxo
·
blank
(germânico) < branco
·
plata (provençal) < prata
Continua
o linguista:
Como é fácil notar, todas as palavras do português-padrão
listadas acima tinham, na sua origem, um L bem nítido que se transformou em R.
E agora? Se fôssemos pensar que as pessoas que dizem Cráudia, chicrete e pranta
têm algum “defeito” ou “atraso mental”, seríamos forçados a admitir que toda a
população da província romana da Lusitânia também tinha esse mesmo problema na
época em que a língua portuguesa estava se formando. E que o grande Luís de
Camões também sofria desse mesmo mal, já que ele escreveu ingrês, pubricar,
pranta, frauta, frecha na obra que é considerada até hoje o maior monumento
literário do português clássico, o poema Os Lusíadas.
Aqui,
o ponto chave da questão (grifo meu):
Se dizer Cráudia, praca, pranta é considerado “errado”, e, por
outro lado, dizer frouxo, escravo, branco, praga é considerado “certo”, isso se deve simplesmente a uma questão que
não é linguística, mas social e política – as pessoas que dizem Cráudia,
praca, pranta pertencem a uma classe
social desprestigiada, marginalizada, que não tem acesso à educação formal e
aos bens culturais da elite, e por isso a língua que elas falam sofre o mesmo
preconceito que pesa sobre elas mesmas, ou seja, sua língua é considerada
“feia”,”pobre”,”carente”, quando na verdade é apenas diferente da língua ensinada na escola.”
Mais
um reforço, também de Marco Bagno:
A gente ri de uma frase como “Cráudia fala ingrês e gosta de
chicrete”, mas não ri de “A igreja de São Brás é perto da praia”, muito embora
as palavras das duas frases tenham uma mesma explicação histórica. E por que a
gente ri? Porque a segunda frase tem palavras que pertencem à língua literária,
à língua escrita, à língua que se aprende na escola e é usada pelas pessoas
importantes, ricas, poderosas, “bonitas”. Já a primeira frase, não. Ela tem
palavras usadas por pessoas que [...] sofrem com as injustiças sociais, nunca
puderam ir à escola aprender a língua literária, escrita, dos “ricos”, e falam
um português diferente do nosso. Mas, como estamos vendo, a língua delas não
tem problema nenhum: é coerente, segue as tendências naturais do português e
tem uma lógica histórica.
Comprova-se,
portanto, mais uma vez, que a raiz de muitas dissensões e juízos negativos
de valor quanto à linguagem (e demais bens culturais) continua sendo... o velho
preconceito.Proponho ir um pouco adiante e observar, com quem me lê, a
origem de mais alguns termos “caipiras”, mal recebidos pelos nossos ouvidos
sensíveis:
“...Aos ouvidos desinformados podem parecer “erros”. Vou dar
três exemplos: entonce, despois, escuitar, tão comuns na fala dos “caipiras”.
Justamente por serem arcaísmos, estas formas estão mais próximas do latim do
que as formas vigentes na norma-padrão de hoje. Entonce (“então”) vem do latim in
tunce. Despois (“depois”) vem de
de ex post. Repare como estas formas
arcaicas do PNP [português-não-padrão] se parecem com o espanhol: entonces,
después.
Em
suma: rejeitamos, inclusive, formas bastante semelhantes àquelas que tendemos a
aceitar, quando pertencentes a uma língua estrangeira.
¹As citações e referências a Marcos Bagno
foram extraídas de duas de suas obras:
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola,
1999.
______________.
A língua de Eulália. São Paulo:
Contexto, 2000.
Afinal, quem preserva o quê?
Caro
leitor, longe de mim querer entupi-lo com casos linguísticos de transformação
da Língua Portuguesa. No entanto, ouço – ouvimos – com frequência o argumento
de que é preciso, a qualquer custo, defender nossa língua da “fala estropiada”
de pessoas que a deterioram, por não conhecê-la direito.
Por
isso, vou me permitir adicionar outro exemplo interessante, acompanhando a
professora Irene, da “novela sociolinguística” – A língua de Eulália, de Bagno.
As lições de Irene reforçam que as falas de comunidades distantes dos grandes
centros são mais conservadoras do
que se pensa (o que pode deixar frustrados os que pretendem ser, em sua fala e
escrita, guardiães da “verdadeira língua da terra-mãe”).
Em
um dos episódios, Irene apresenta, às suas jovens estudantes, verbos iniciados
por a-, empregados por Camões em Os Lusíadas, e ainda hoje preservados em
comunidades linguísticas do Brasil, embora descartados pela norma linguística
padrão (por exemplo, abastar, ajuntar,
alembrar, alevantar, alimpar, alumiar):
– Quero mostrar que muita coisa que a gente pensa que está
“errada”, que é fala de “gente ignorante”, na verdade não é nada disso. De
fato, esses supostos “erros” são heranças muito antigas, vestígios de outros
tempos, verdadeiros “fósseis” linguísticos. Eles recebem o nome técnico de
arcaísmos.[...]
– Todos estes verbos iniciados com a-, e que são tão vivos nos nossos falares regionais, rurais, não
padrão, nada têm de “errado” nem de “ignorante” [...] São, como já disse, arcaísmos
linguísticos, que já pertenceram à norma literária clássica e depois “saíram de
moda”. A prova disso é sua presença tão abundante na epopeia camoniana,
publicada em 1572, ou seja, apenas 72 anos depois do assim chamado
“Descobrimento” do Brasil.
Como
observado por Vera, uma das alunas, “Camões
a gente sabe que não errava...”. Então, nada melhor que apreciar alguns
fragmentos literários do poeta, para neles comprovar a presença de várias
palavras citadas pela professora (e outras, que vimos mais atrás) – conservadas
até hoje no dialeto caipira.
Por
exemplo, muitos já devem ter ouvido, em algum momento, estes versos d’Os Lusíadas,
bastante lembrados (ver negrito):
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro
valor mais alto se alevanta.
Mas há outros, igualmente
modelares:
Prontos estavam todos escuitando
O que o sublime Gama contaria,
Quando, despois de um
pouco estar cuidando
Alevantando o
rosto, assi dizia:
– «Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De minha gente a grão genealogia;
Não me mandas contar estranha história,
Mas mandas-me louvar dos meus a glória[...]
___________________________
Pera o céu cristalino alevantando,
Com lágrimas, os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos);
E despois nos mininos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfindade como
mãe temia,
Pera o avô cruel assi
dizia [...]
____________________________
Meio caminho a noite tinha andado,
E as Estrelas no Céu, co
a luz alheia,
Tinham largo Mundo alumiado,
E só co sono a gente
se recreia.
O Capitão ilustre, já cansado
De vigiar a noite que arreceia,
Breve repouso antão
aos olhos dava,
A outra gente a quartos vigiava [...]
[CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas.
Disponível em http://www.citi.pt/ciberforma/ana_paulos/ficheiros/lusiadas.pdf]
Bem, mas passado é passado. Agora não se
fala mais assim...
A
quem argumentar que essa é uma língua “fossilizada”, apenas de certas regiões,
e que não se coaduna com os vibrantes espaços urbanos e tempos atuais, terei uma
novidade a contar: todas as modas vão e voltam, inclusive na linguagem:
Os modos antigos de falar podem ressurgir. O R caipira,
asseguram os linguistas, está voltando, até mesmo em São Paulo, e readquirindo status,
na esteira dos cantores de música sertaneja. “Hoje ser caipira é chique” [...].
Ou ao menos é aceitável e parte do estilo pessoal, como o da apresentadora de
TV Sabrina Sato.²
Pois
é, talvez em futuro bem próximo, muitos dos que fazem uso da prestigiosa norma
padrão e torcem o nariz à fala caipira, irão dar a esta mais
importância e até considerá-la “chiquérrima”!
²FIORAVANTI, Carlos. Ora pois, uma língua bem
brasileira. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2015/04/08/ora-pois-uma-lingua-bem-brasileira/
Para ilustrar...
...Sugiro
ler e ouvir uma deliciosa anedota, que contrapõe não só dois modos de falar,
mas também duas visões de mundo. A se notar, além da forma de expressão, a
profundidade da argumentação e do conhecimento de mundo revelada pelo caipira, ao se contrapor ao cavador de votos.
Cavando
votos
[Autor e intérprete: Cornélio Pires³]
Homem: Boa tarde, patrício!
Caipira:
Bas tarde!
Homem: E o senhor, como vai?
Caipira: Aqui como véio, perrengue,
viveno de lembrança e de sodade...
Homem: Os homens envelhecem, mas a
pátria se remoça. Agora vai por todo o Brasil um sopro de vida nova de
reação...
Caipira: Quá! Como tempo de dantes nunca
mai há de ficá.
Homem: Que mal lhe pergunte...
Caipira: Pregunta bem...
Homem: O senhor é eleitor?
Caipira: Pra qué que ocê qué sabe?
Homem: Queria que o senhor fosse votar
na próxima eleição para presidente da República.
Caipira: Ói, moço. Num seja tonto.
Largue mão disso. Deixe dessas patacoada. Ói, eu já fui monacrista, virei
repurbicano, desvirei e revirei. Eu hoje em dia nem num sei o que é que eu sô.
Esse negócio de monacria e de repúrbica pra mim é a mesma coisa que criação de
porco.
Homem: Oh, o senhor é pessimista.
Caipira: Isso que ocê falô num sei o que
é. Mas isso eu num sô. Ocê arrepare que eu tenho razão. Ocê recóie um porco
magro no chiqueiro. De minhã cedo, ocê pinche um jacá de mio, ele:
"hum". No meio do dia, outro jacá de mio, ele: "hum". Na
boca da noite, outro jacá. De minhã cedo ta puído. O porco vai cumeno, vai
ingordano, vai ingordano, ingordano... Quando ele tá bem gordão, só qué dormir,
roncar dia e noite. Vancê pincha uma espiguinha de mio cateto, ele exprementa,
larga, sobeja pras galinha pinicá... Tá gordo, tá infarado, tá cheio, num tem
mais fome, num precisa mais cumê, parô de cumê... Esse é o imperadô. Agora com
a Repúrbica, não tem jeito. Vancê recóie um porco magro, antes de ingordá;
vancê sorta, arrecoie outro, num há mio que chegue, pois.
Homem: O senhor não tem razão. A
República é muito boa.
Caipira: Pode sê, mais... Pra encurtá o
causo. Vancê que tem viajado muito, tem andado muito aqui pra roça?
Homem: Tenho.
Caipira: Então cê deve cunhecê muitas
qualidade de arve.
Homem: Conheço.
Caipira: Vancê cunhece aquel'uma que tá
ali perto da ponte?
Homem: Conheço muito. É um ingaieiro.
Caipira:
Ingazeiro nada. Aquela arve aqui nóis chama de arve do guverno.
Homem: Por quê?
Caipira: Vancê arrepare, ói. Tem
parasita inté no úrtimo gaio!
³ Cornélio Pires (1884-1958) foi escritor, jornalista, folclorista, poeta e cantor paulista. Por seu trabalho de divulgação, ficou conhecido como o "Bandeirante da música caipira". Sua atividade de compilação e divulgação, contudo, foi bem mais ampla e estendeu-se a toda a cultura sertaneja.
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