Peço que leiam estes dois textos, de
tempos e linguajares diferentes: o primeiro, provavelmente dos Racionais Mc's;
o segundo, de Adoniran Barbosa.
Dicionário
dos manos
Mano
não vai embora, vaza.
Mano
não briga, arranja treta.
Mano
não bebe, chapa o coco.
Mano
não cai, toma um capote.
Mano
não entende, se liga.
Mano
não passeia, dá um rolé.
Mano
não come, ranga.
Mano
não entra, cai pra dentro.
Mano
não fala, troca ideia.
[..]
Mano
não faz algo legal, faz umas parada firmeza.
Mano
não é gente , é mano.
E
para finalizar: “Sangue na veia de mano não corre... tira racha”.
CERTO,
MANO?!
Disponível em: http://blogdaprofveral4.blogspot.com.br/2011/02/dialetos-sociais.html. (Há certa dúvida
quanto à autoria da letra, que não consegui esclarecer.)
Iracema
Iracema,
eu nunca mais eu te vi
Iracema
meu grande amor foi embora
Chorei,
eu chorei de dor porque
Iracema,
meu grande amor foi você.
[...]
–
Iracema, fartava vinte dias pra o nosso casamento
Que
nóis ia se casar
Você
atravessou a São João
Veio
um carro, te pega e te pincha no chão
Você
foi para Assistência, Iracema
O
chofer não teve curpa, Iracema
Paciência,
Iracema, paciência
[...]
Disponível em: http://www.vagalume.com.br/adoniran-barbosa/iracema.html. (Esta é a letra
disponível em muitos sites. Adoniran canta um pouco diferente.)
Sendo – ou supondo ser – professor, você
vê razão para tais textos, em aula de Língua Portuguesa? Julga-os aceitáveis?
Sim, não, em que circunstâncias?
Uma coisa é certa: eles estão em
desacordo com várias normas da gramática convencional. Há palavras que fogem
aos padrões da escrita, há falta de concordância nominal e verbal... Em sua
opinião, uma proposta que leve o aluno a escrever “como se fala”, ou no dialeto
de alguma região ou grupo social, prejudica a aprendizagem da língua
portuguesa?
Muito se debate, hoje, sobre o certo e
errado em questão da Língua (que deveria ser) ensinada nas escolas; é discussão
frequente nos meios educacionais, e muitas vezes encampada pela mídia e por
pais (zelosos, normalmente, pelo que aprenderem em seus tempos). Por isso, o
meu convite para uma reflexão conjunta sobre a questão.
Para começar, de que realmente se trata,
quando se argumenta contra ou a favor de que se ensine certo tipo de linguagem
não “ortodoxa”? É, mesmo, só a questão da língua que está em jogo?
E a escola, de que trata? De que
deveria tratar? Qual deveria ser seu objetivo, em termos de ensino-aprendizagem
da língua materna?
Os que se voltam contra a linguagem
informal em instituições de ensino, reclamam: se o papel da escola é ensinar a
língua padrão, por que acolher outras linguagens? Para fortalecer tal ponto de
vista, basta examinar a maioria dos livros didáticos, bem como as gramáticas de
maior prestígio, que priorizam as normas estabelecidas da assim chamada língua
culta (a dos literatos e da elite cultural do país) como guias do saber
linguístico.
Tal posição pode ser contraditada com
outras perguntas, que provocam e ampliam a discussão reflexiva: será a língua
padrão, registrada nos compêndios gramaticais adotados por inúmeras escolas, o
único objetivo, quando se pensa no ensino-aprendizagem da língua? Mais que
isso, o que está nas gramáticas é a língua real, deste século XXI?
O linguista Marcos Bagno, com significativas
metáforas, afirma que a língua em uso é maior do que aquela das gramáticas:
“A
língua é um enorme iceberg flutuando no mar do tempo, e a gramática normativa é
a tentativa de descrever apenas uma parcela mais visível dele, a chamada norma
culta.”
“Uma
receita de bolo não é um bolo, o molde de um vestido não é um vestido, um
mapa-múndi não é o mundo... Também a gramática não é a língua.”
“Enquanto
a língua é um rio caudaloso, longo e largo, que nunca se detém em seu curso, a
gramática normativa é apenas um igapó, uma grande poça de água parada, um
charco, um brejo, um terreno alagadiço, à margem da língua. Enquanto a água do
rio/língua, por estar em movimento, se renova incessantemente, a água do
igapó/gramática normativa envelhece e só se renovará quando vier a próxima
cheia.”¹
Pois é... Parece que, ao recusarmos
outros dizeres, distantes da linguagem preconizada pelas gramáticas mais
conhecidas, nós é que nos distanciamos... da vida. Porque, se pensarmos com
cuidado, detectaremos que há uma gramática da vida: seres e coisas,
com suas qualificações / feições, ações, estados e inter-relações. E que essa
não é uma gramática estática, pois, no universo, tudo é dinâmico e se articula,
e nessa articulação adquire significado; tudo tem a possibilidade de nascer e
desaparecer, mudar no tempo e espaço, transformar-se.
Pois bem, o ser humano exprime o que
sente, pensa, vive, por meio de várias linguagens – principalmente pela mais
complexa e universal dentre elas: a verbal. Daí a gramática das palavras,
que nada mais é que o modo como se articulam as letras em palavras, as palavras
em frases, as frases em parágrafos, os parágrafos em textos, que expressam aquela
gramática da vida, aquela profusa e mutante visão de mundo dos seres – e lhes permitem
trocas significativas com seus muitos e diferentes interlocutores, em muitas e diferentes
situações.
Se assim é, como desprezar o “rio
caudaloso, longo e largo, que nunca se detém em seu curso”, e se deter em “poça
de água parada”, em matéria de linguagem? Seria o mesmo que aceitar apenas
alguns poucos grupos sociais fechados e rejeitar toda a rica diversidade que
compõe uma sociedade.
Por outro lado, para assumir sua
missão de integrar-se e integrar a comunidade escolar ao tempo e espaço em que
vive, compartilhando e ampliando experiências, a escola precisa dar a conhecer
o maior número possível de modos de pensar, dizer, viver. Fazendo isso, estará
protagonizando o combate ao preconceito (de toda espécie), tantas vezes gerador
de incompreensões, dissensões e até violência.
De mais a mais, aí estão os prosadores
e poetas, simultaneamente guardadores do patrimônio linguístico e renovadores
das riquezas de uma língua, a nos instigar rumo ao novo e ao diverso.
Por exemplo, Drummond:
No
meio do caminho tinha uma pedra
tinha
uma pedra no meio do caminho
tinha
uma pedra
no
meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca
me esquecerei desse acontecimento
na
vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca
me esquecerei que no meio do caminho
tinha
uma pedra
tinha
uma pedra no meio do caminho
no
meio do caminho tinha uma pedra.
ANDRADE,
Carlos Drummond de. Antologia Poética.
Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1963.
E Manoel de Barros:
As coisas tinham para nós uma desutilidade poética.
Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber.
A gente inventou um truque pra fabricar brinquedos com palavras.
O truque era só virar bocó.
Como dizer: Eu pendurei um bentevi no sol...
[...]
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro:
Record, 2000.
Ah!, se fosse “redação” de aluno... No
entanto, como já ensinava a Dona Etimologia, nos idos tempos de Lobato:
Uma
língua não para nunca. Evolui sempre, isto é, muda sempre. Há certos gramáticos
que querem fazer a língua parar num certo ponto, e acham que é erro dizermos de
modo diferente do que diziam os clássicos. [...] Mas isso é curteza de vistas.
Esses homens foram bons escritores “no seu tempo”. Se aparecessem agora, seriam
os primeiros a mudar, ou a adotar a língua de hoje, para “serem entendidos”.²
É o caso dos autores que registrei
acima, bem como o de Luis Fernando Verissimo, na crônica divertida e sutilmente
crítica que registro em seguida.
Mas não quero terminar sem perguntar a
você, que me acompanhou nestes comentários: o que pensa de tudo isso? O que tem
a dizer sobre o assunto? Gostaria muito de saber sua opinião!
¹BAGNO,
Marcos. Preconceito linguístico. Disponível
em http://files.comunidades.net/ramalde/marcosbagnopreconceitolinguistico100619193317phpapp01.pdf
²LOBATO,
Monteiro. Emília no país da gramática. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1977.
PAPOS, de Verissimo
– Me disseram...
– Disseram-me
– Hein?
– O correto é ‘disseram-me’. Não
‘me disseram’.
– Eu falo como quero. E ti digo
mais... Ou ‘digo-te’?
– O quê?
– Digo-te que você...
– O ‘te’ e o ‘você’ não combinam.
– Lhe digo?
–Também não. O que você ia me
dizer?
– Que você está sendo grosseiro,
pedante e chato. E que vou te partir a cara. Lhe partir a cara. Partir a sua
cara. Como é que se diz?
– Partir-te a cara.
– Pois é. Partir-la- hei de, se
você não parar de me corrigir. Ou corrigir-me.
– É para o seu bem.
– Dispenso as suas correções. Vê
se esquece-me. Falo como bem entender. Mas uma correção e eu...
– O quê?
– O mato.
– Que mato?
– Mato-o. Mato-lhe. Mato você. Matar-
lhe- ei- te. Ouviu bem?
– Eu só estava querendo...
– Pois esqueça- o e para- te.
Pronome no lugar certo é elitismo!
– Se você prefere falar errado...
– Falo como todo mundo fala. O
importante é me entenderem. Ou entenderem-me?
– No caso... Não sei.
– Ah, não sabes? Não o sabes?
Sabes-lo não?
– Esquece.
– Não. Como ‘esquece’? Você
prefere falar errado? E o certo é “esquece” ou “esqueça”? Ilumine-me. Me diga.
Ensines-lo-me, vamos.
– Depende.
– Depende. Perfeito. Não o sabes.
Ensinar-me-lo-ias se o soubesses, mas não sabes-o.
– Está bem, está bem. Desculpe.
Fale como quiser.
– Agradeço-lhe a permissão para
falar errado que me dás. Mas não posso mais dizer-lo-te o que dizer-te-ia.
– Por quê?
– Porque, com todo esse papo,
esqueci-lo.
VERÍSSIMO, Luis Fernando. Comédias para se ler na
escola. Porto Alegre: Objetiva, 2001.
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