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Por Cecília Meireles |
Como
escreve Maria Valdenia da Silva,
“vivendo uma época em que a mulher ainda
não havia conquistado os espaços que hoje usufrui, Cecília conseguiu adentrar
no restrito mundo da intelectualidade brasileira dos anos 20 e 30 do século XX,
publicando seus livros, exercendo o magistério, inclusive em Universidades, e
atuando como jornalista em diversos jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Nas décadas seguintes, a escritora consolida seu nome no cenário das letras e
da cultura brasileira, sendo convidada para conferências em diversos países
[...]”. ¹
Cecília foi professora, jornalista, pintora. Pesquisou e incentivou o folclore, tendo feito uma série de desenhos retratando a cultura negra. Enquanto escritora, dedicou-se não apenas à poesia, mas também ao teatro, à crônica, aos ensaios, às conferências, aos livros didáticos e às traduções. Seu constante interesse pela educação levou-a a organizar a primeira biblioteca infantil do Rio de Janeiro (e do país), além de batalhar pela renovação da educação brasileira.
Sua
vida, desde cedo marcada por acontecimentos dolorosos, forneceu-lhe
experiências marcantes, que se refletiram em seu olhar poético. É ela quem diz:
“Nasci aqui mesmo no Rio de
Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos
três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos
contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal
intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o
Eterno.
[...] Minha infância de
menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre
positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida.
Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos,
onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do
seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair
suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não
compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de
vida, unidos como os fios de um pano. "²
Sua poesia é vária: dela se pode dizer, usando
seu próprio verso: “Tenho fases como a
lua”... Fases, tons, matizes, alguns dos quais podem ser observados nos textos
que selecionei.
Para delimitar o campo, procurei pelos que
apontam para aspectos da condição feminina. Sobre eles, teço breves
comentários, sem a pretensão de esgotar a análise de obras impregnadas de
poesia e de plurissignificados.
Mulher ao espelho
Perfeitamente
aplicável ao nosso tempo, o poema faz denúncia do estereótipo e da beleza
física – perseguida a qualquer custo, a ponto de comprometer a própria essência
do indivíduo: “seja qual for, estou morta”.
Observem
como, na terceira estrofe, o eu lírico submete-se às convenções, rende-se às aparências
e à moda inconstante (assinalada na 2ª estrofe), pois que estas, afinal, abarcam
tudo: “tudo é tinta”.
A
ideia de deterioração continua até o fim. Na estrofe derradeira, marcada por
sutil ironia, a beleza deslumbrante é claramente manifestada como sacrifício,
equiparando-se ao da cruz.
Hoje que seja esta ou
aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer
bela,
pois, seja qual for,
estou morta.
Já fui loura, já fui
morena,
já fui Margarida e
Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como
quis.
Que mal faz, esta cor
fingida
do meu cabelo, e do meu
rosto,
se tudo é tinta: o
mundo, a vida,
o contentamento, o
desgosto?
Por fora, serei como
queira
a moda, que me vai
matando.
Que me levem pele e
caveira
ao nada, não me importa
quando.
Mas quem viu, tão
dilacerados,
olhos, braços e sonhos
seus
e morreu pelos seus
pecados,
falará com Deus.
Falará, coberta de
luzes,
do alto penteado ao
rubro artelho.
Porque uns expiram sobre
cruzes,
outros, buscando-se no
espelho.
[http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332006000200013&script=sci_arttext]
Inscrição
Neste
poema, ao contrário do anterior, o elemento feminino se afirma, proclama sua
força e independência, apesar das adversidades.
A
notar as duas interrogações: a inicial, indiciando o inominável inimigo oculto;
e a final, de tipo diverso, pois vale por uma afirmação: o eu poético descarta
a submissão às agruras, que são finitas – enquanto ele se diz infinito.
Quem se deleita em
tornar minha vida impossível
por todos os lados?
Certamente estás rindo
de longe,
ó encoberto adversário!
Mas a minha paciência é
mais firme
que todas as sanhas da
sorte:
mais longa que a vida,
mais clara
que a luz no horizonte.
Passeio no gume de
estradas tão graves
que afligem o próprio
inimigo.
A mim, que me importam
espécies de instantes,
se existo infinita?
[http://midia.unit.br/enfope/2013/GT7/CECILIA_MEIRELES_INQUIETACOES_DECEPCOES_E_CONTRIBUICOES_PARA_UMA_ESCOLA_NOVA.pdf]
Prisão
O
terceiro poema é verdadeiro libelo contra a opressão feminina. A constatação da
falta de liberdade universal da mulher (em outras palavras, sua pouca ou
nenhuma emancipação histórica / social) concretiza-se pela multiplicação de
prisões – quatro, quarenta, quatrocentos, quatro mil – e pela diversidade de
cárceres e de motivos para o encarceramento.
Na
última (e mais longa) estrofe, a sensação de isolamento absoluto chega ao auge.
Reparem no angustiante acúmulo de expressões negativas e na impossibilidade
total de socorro, uma vez que as mulheres são “presas por outros e por si mesmas,/ tão presas que ninguém as solta”.
Ao
final, como diz Maria Lúcia Dal Farra,
“o poema desemboca [...] numa zona de aridez
e de infertilidade absolutas no que diz respeito ao feminino, pois que essas
mulheres foram levadas à incomunicabilidade total, visto que ‘nem o rubro galo
do sol’ e ‘nem a andorinha azul da lua’ são capazes de transportar qualquer recado
a elas. Não há escapatória alguma, pelo menos não há nada de que o nosso vasto
mundo disponha e que possa lhes oferecer a fim de evitar que penetrem
definitivamente na mudez e na solidão. Não há dia, não há noite, não há
mensageiros – não há voz que as alcance.”³
Nesta cidade
quatro mulheres estão no
cárcere.
Apenas quatro.
Uma na cela que dá para
o rio,
outra na cela que dá
para o monte,
outra na cela que dá
para a igreja
e a última na do
cemitério
ali embaixo.
Apenas quatro.
Quarenta mulheres noutra
cidade,
quarenta, ao menos,
estão no cárcere.
Dez voltadas para as
espumas,
dez para a lua movediça,
dez para pedras sem
resposta,
dez para espelhos
enganosos.
Em celas de ar, de água,
de vidro
estão presas quarenta
mulheres,
quarenta ao menos, naquela
cidade.
Quatrocentas mulheres
quatrocentas, digo,
estão presas:
cem por ódio, cem por
amor,
cem por orgulho, cem por
desprezo
em celas de ferro, em
celas de fogo,
em celas sem ferro nem
fogo, somente
de dor e silêncio,
quatrocentas mulheres,
numa outra cidade,
quatrocentas, digo,
estão presas.
Quatro mil mulheres, no
cárcere,
e quatro milhões – e já
nem sei a conta,
em cidades que não se
dizem,
em lugares que ninguém
sabe,
estão presas, estão para
sempre
– sem janela e sem
esperança,
umas voltadas para o
presente,
outras para o passado, e
as outras
para o futuro, e o resto
– o resto,
sem futuro, passado ou
presente,
presas em prisão
giratória,
presas em delírio, na
sombra,
presas por outros e por
si mesmas,
tão presas que ninguém
as solta,
e nem o rubro galo do
sol
nem a andorinha azul da
lua
podem levar qualquer
recado
à prisão por onde as
mulheres
se convertem em sal e
muro.
[http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332006000200013&script=sci_arttext]
________________________________________________________________________
¹ SILVA,
Maria Valdenia da. As crônicas de Cecília Meireles: um projeto estético e
pedagógico. Dispon. em
http://www.cchla.ufpb.br/ppgl/wp-content/uploads/2012/11/images_MariaValdenia.pdf
²
Entrevista concedida a Fagundes de Meneses, para a revista Manchete, 1953.
Disponível em: http://www.releituras.com/cmeireles_bio.asp
³ DAL
FARRA, Maria Lúcia. Cecília Meireles: imagens femininas. Dispon. em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332006000200013&script=sci_arttext
Um pouco mais de Cecília
Para
amenizar imagens verbais tão fortes, encerro com este vídeo, que traz um figura
de mulher bem diversa: a mulher-menina, a pequena bailarina.
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