Certas situações das aulas de Língua
Portuguesa, comentadas frequentemente por professores – aceitação ou não do linguajar “incorreto” do aluno, temas de "redação" desligados
da realidade da classe –, fizeram-me relembrar uma crônica de Luis Fernando Verissimo
que, a propósito, simula uma redação escolar.
Quero dividi-la e comentá-la com você,
leitor.
Minhas Férias
Eu, minha mãe, meu pai, minha irmã
(Su) e meu cachorro (Dogman) fomos fazer camping. Meu pai decidiu fazer camping
este ano porque disse que estava na hora de a gente conhecer a natureza de
perto, já que eu, a minha irmã (Su) e o meu cachorro (Dogman) nascemos em
apartamento, e, até os 5 anos de idade, sempre que via um passarinho numa
árvore, eu gritava “aquele fugiu!” e corria para avisar um guarda; mas eu acho
que meu pai decidiu fazer camping depois que viu o preço dos hotéis, apesar de
a minha mãe avisar que, na primeira vez que aparecesse uma cobra, ela voltaria
para casa correndo, e a minha irmã (Su) insistir em levar o toca-discos e toda
a coleção de discos dela, mesmo o meu pai dizendo que aonde nós íamos não teria
corrente elétrica, o que deixou minha irmã (Su) muito irritada, porque, se não
tinha corrente elétrica, como ela ia usar o secador de cabelo? Mas eu e o meu
cachorro (Dogman) gostamos porque o meu pai disse que nós íamos pescar, e
cozinhar nós mesmos o peixe pescado no fogo, e comer o peixe com as mãos, e se
há uma coisa que eu gosto é confusão. Foi muito engraçado o dia em que minha
mãe abriu a porta do carro bem devagar, espiando embaixo do banco com cuidado e
perguntando “será que não tem cobra?”, e o meu pai perdeu a paciência e disse
“entra no carro e vamos embora”, porque nós ainda nem tínhamos saído da garagem
do edifício. Na estrada tinha tanto buraco que o carro quase quebrou, e nós
atrasamos, e quando chegamos ao local do camping já era noite, e o meu pai
disse “este parece ser um bom lugar, com bastante grama e perto da água”, e
decidimos deixar para armar a barraca no dia seguinte e dormir dentro do carro
mesmo; só que não conseguimos dormir porque o meu cachorro (Dogman) passou a
noite inteira querendo sair do carro, mas a minha mãe não deixava abrirem a
porta, com medo de cobra; e no dia seguinte tinha a cara feia de um homem nos
espiando pela janela, porque nós tínhamos estacionado o carro no quintal da
casa dele, e a água que o meu pai viu era a piscina dele e tivemos que sair
correndo. No fim conseguimos um bom lugar para armar a barraca, perto de um
rio. Levamos dois dias para armar a barraca, porque a minha mãe tinha usado o
manual de instruções para limpar umas porcarias que o meu cachorro (Dogman) fez
dentro do carro, mas ficou bem legal, mesmo que o zíper da porta não
funcionasse e para entrar ou sair da barraca a gente tivesse que desmanchar
tudo e depois armar de novo. O rio tinha um cheiro ruim, e o primeiro peixe que
nós pescamos já saiu da água cozinhado, mas não deu para comer, e o melhor de
tudo é que choveu muito, e a água do rio subiu, e nós voltamos pra casa
flutuando, o que foi muito melhor que voltar pela estrada esburacada; quer
dizer que no fim tudo deu certo.
VERISSIMO, Luis Fernando. Disponível
em: http://keylapinheiro.blogspot.com.br/2011/04/cronicas-de-humor_10.html
As
intenções do cronista
Quem lê crônicas, em especial, as de
Verissimo (porque os cronistas não são todos iguais...), sabe o que
vai encontrar e percebe a intenção do autor: fatos do dia a dia, tratados de
maneira geralmente leve, por vezes poética, quase sempre com toques de humor, servindo de caminho para a reflexão e a crítica sutil de hábitos, costumes e situações.
Nesta de agora, por intermédio da visão
aparentemente ingênua e descompromissada do narrador infantil, o leitor é
convidado a lançar seu olhar avaliativo sobre o acúmulo de situações bizarras e
de tentativas fracassadas de lazer de uma família de classe média.
Ao mesmo tempo, outras intenções são
sinalizadas, no modo como o narrador-mirim relata os acontecimentos, ou seja, por
meio de uma redação escolar com “vícios” que a norma culta e o “bem escrever”
condenam. Destaco alguns bastante evidentes, sem esgotar a análise:
- Ausência da habitual divisão do texto em parágrafos, que é recurso usado na escrita para indicar a estruturação e subdivisão das ideias e, desse modo, auxiliar a compreensão.
- Pontuação deficiente, com frases muito longas, reiteração de vírgulas e das conjunções e, mas, como tantas vezes acontece na fala.
- Repetição de nomes e pronomes, com redundância de informações: eu; minha irmã (Su); meu cachorro (Dogman); meu pai; minha mãe.
- Inserção das falas de personagens numa continuidade em relação à fala do narrador (“eu”), recurso próprio da contação oral (embora com utilização de aspas, como é admitido na escrita).
- Expressões e construções consideradas inadequadas à norma culta da língua (comumente pedida em produções escolares):- peixe [...] cozinhado (por “cozido”);- voltamos pra (por “para”) casa flutuando;- quando chegamos no (por “ao”) local;- se há uma coisa que (por "de que") gosto;- legal (gíria).
Note, leitor: as
ocorrências apontadas acima configuram o uso de termos e modos de dizer mais
apropriados à fala. Com elas, em primeiro lugar, o escritor reforça a linguagem informal,
característica da crônica, de modo a estreitar a aproximação
com seu público.
Em segundo lugar: o acúmulo de “erros” gramaticais e linguísticos, com referência ao padrão formal da língua, bem como a escolha de tema muito conhecido (e batido) compõem
um texto caricatural que desvela, pelo exagero, a proposta de escrita
repetitiva, burocrática e sem fundamento de alguns cursos, ainda hoje.
Aí
está, portanto, outra intenção – subjacente, mas de relevância: lançar um olhar
agudamente crítico para a rotina e práticas escolares, usando como veículo a
crônica, esse gênero perfeitamente adequado para que escritor e leitor reflitam, com leveza, sobre
temas que merecem cuidadosa atenção – neste caso, o ensino/aprendizagem da língua
materna.
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