
Lembrando o início de um soneto de Camões:
Mudam-se
os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se
o ser, muda-se a confiança:
Todo
o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
...Neste
janeiro, estendo uma ponte para esta cidade onde vivo. São Paulo é, sem dúvida,
“composto de mudança” e vem “tomando sempre novas qualidades” (positivas
e negativas, decerto).
Ainda com
palavras do poeta, vou além para lembrar alguns seres – escritores –, que, em tempos
diferentes, depositaram suas vontades
literárias em representações de São Paulo. São muitos, é verdade. Por isso
mesmo, faço um recorte e trago alguns artistas que têm em comum o fato de terem
aqui nascido ou habitado.
A seguir, os autores
e textos resultantes dessa garimpagem.
Alcântara Machado
O paulistano António
de Alcântara Machado (1901 – 1935) apresentou seu livro Brás, Bexiga e Barra Funda como “o órgão dos ítalo-brasileiros de
São Paulo”. Tendo como cenário os bairros operários que dão título ao livro, as
personagens dos contos dão vida a imigrantes e filhos de imigrantes italianos
pobres, flagrados em várias funções e situações.
Gaetaninho, um dos textos mais conhecidos, é
quase uma crônica da São Paulo antiga, com o bonde, o carro fúnebre adornado, a
carroça, o jogo do bicho, o futebol na rua com bola de meia, os nomes próprios
italianos.
A notar, também:
quanto à linguagem, o tom coloquial e as expressões populares (algumas com
“sotaque”) da época; quanto à organização do texto, a estrutura em cenas e, por
trás da aparente leveza, a triste ironia do desfecho (insinuado desde o
princípio da narrativa).
Gaetaninho
– Xi, Gaetaninho, como é bom!
Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o
derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o
palavrão.
– Eh! Gaetaninho! Vem pra dentro.
Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão
feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
– Subito!
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho.
Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo.
Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta
instantânea e varou pela esquerda porta adentro.
Eta salame de mestre!
............
Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De
automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por
isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.
O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de
carro a cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá.
Assim também não era vantagem.
Mas se era o único meio? Paciência.
............
Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados
levavam a Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo
dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boleia do carro. Ao lado do cocheiro.
Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não.
Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão
lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz!
Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha,
outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas,
nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o
Gaetaninho.
Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queira ir carregando
o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho
só.
Gaetaninho ia berrar, mas a Tia Filomena com mania de cantar o
“Ahi, Mari!” todas as manhãs o acordou.
Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.
............
Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de
Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família
alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa
nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor da Companhia
de Gás, seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.
Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram
arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos
de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca
mesmo.
............
O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora
Gaetaninho não estava ligando.
– Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
– Meu pai deu uma vez na cara dele.
– Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
O Vicente protestou indignado:
– Assim não jogo mais ! O Gaetaninho está atrapalhando!
Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de
responsabilidades.
O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto.
Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos
abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.
– Passa pro Beppino!
Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque.
Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
– Vá dar tiro no inferno!
– Cala a boca, palestrino!
– Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o
pegou. Pegou e matou.
No bonde vinha o pai de Gaetaninho.
A gurizada assustada espalhou a notícia na noite.
– Sabe o Gaetaninho?
– Que é que tem?
– Amassou o bonde!
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
............
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do
Oriente e Gaetaninho não ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia
no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a
roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.
Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo
terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.
[MACHADO, António de Alcântara. Novelas paulistanas. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1973.]
Lourenço Diaféria
Lourenço Diaféria
O jornalista, contista e cronista Lourenço
Diaféria (1933 – 2008) também retratou o Brás, bairro onde nasceu. Mas não só. Como
jornalista (por muitos anos escreveu para a Folha de São Paulo), tinha o olhar
aguçado para grandes e pequenos acontecimentos do dia a dia – e elegeu a cidade
e o cidadão paulistano como principal matéria de suas belas crônicas.
Em Minha cidade, em janeiro, reconhecem-se espaços e personagens do centro comercial. No texto, o olhar de Diaféria é múltiplo: por um lado, abrange o presente em que escreve e o passado histórico dos espaços da cidade; por outro, faz uma radiografia do que é “legítimo” em São Paulo, com diversas nuances, negativas e positivas. (Para esse segundo aspecto, repare, leitor, na repetição intencional que abre cada parágrafo: “O que minha cidade tem de mais [...] e legítimo”.)
Em Minha cidade, em janeiro, reconhecem-se espaços e personagens do centro comercial. No texto, o olhar de Diaféria é múltiplo: por um lado, abrange o presente em que escreve e o passado histórico dos espaços da cidade; por outro, faz uma radiografia do que é “legítimo” em São Paulo, com diversas nuances, negativas e positivas. (Para esse segundo aspecto, repare, leitor, na repetição intencional que abre cada parágrafo: “O que minha cidade tem de mais [...] e legítimo”.)
Por fim, o caos da cidade grande se expressa sinteticamente no penúltimo
parágrafo, pela longa enumeração de vocábulos separados por vírgulas (a dar
sensação de rapidez), pela confusão dos nomes de ruas que são (ou não) flores, pela
mistura e sucessão de antíteses e de metáforas: eis a vitrine do “bazar de coisas” urbano.
Minha cidade, em janeiro
O que minha cidade tem de mais pulcro e legítimo é o rosto da moça atrás do vidro fumê do 18º andar do
edifício da companhia de investimentos. O rosto aparece às 17h55min, de segunda a sexta,
quando ela espia a calçada antes de bater o cartão de ponto no relógio. O namorado da moça tem uma moto de milhões de decibéis e faz tantas loucuras no cruzamento da
avenida que, em certos momentos, parece que vai bater as asas de metal e se transfigurar num anjo
barbudo e entrar no bairro do Paraíso, para tomar um sorvete de tutti-frutti com duas casquinhas.
O que minha cidade tem de mais operoso e legítimo é o crioulo de
capacete ocre que enfia a ponta do martelo mecânico na viga de concreto e rompe
o útero da Rua das Palmeiras, onde corre um braço subterrâneo do Metrô. O
capacete do crioulo lembra um sol boiando no suor da cara e, quando a tarde
cai, o capacete fica de riba como porongo decepado em cima do balcão, enquanto
o garoto do bar serve um traçado ao som do liquidificador.
O que minha cidade tem de mais vetusto e legítimo é o fantasma
do coronel Arouche que guardou suas emas, jaçanãs, pacas e bacamartes na arca
do passado e transita incógnito e invisível por entre as mesinhas de pinguços e
desesperados com olhos cor de quitinete. O coronel Arouche por hábito arrasta
as botas sujas de lama do tempo em que o Anhangabaú dava curimbatá e a cidade
tinha pontes de madeira, onde hoje ficam os Correios e Telégrafos. O coronel
Arouche é transparente e se encontra com o brigadeiro Tobias na sacada
solitária do prédio Martinelli nas noites de lua e garoa.
O que minha cidade tem de mais amargo e legítimo é o corpo em decúbito dorsal, ainda não identificado, coberto com a
última página do vespertino, e
um para-choque de jamanta com tinta fresca vermelha: cuidado, não encostar que
é sangue.
O que minha cidade tem de mais imperceptível e legítimo é o
violino que toca de manhã cedo na Rua Conselheiro Furtado tangido por um chinês
de Formosa que vende penas de nanquim na Liberdade e escreve, em hieróglifos,
poemas para um velhinho de barba fina que tem 98 anos, nasceu em Kioto, e adora
doce de feijão, peixe cru e forró.
O que minha cidade tem de mais pardo e legítimo são os
paquidermes dos edifícios que ressonam rente ao Minhocão e cujo pescoço alado
se atira sobre Santa Cecília, Bexiga, Vila Buarque, até esmorecer diante da
torre de São Geraldo das Perdizes.
O que minha cidade tem de mais acordado e legítimo é o Ponto
Chic, onde a Polícia, a malandragem e a boemia confraternizam e meditam sobre a
glória passageira das valentias, dos sanduíches e do chope gelado.
O que minha cidade tem de mais revolucionário e legítimo são as
conversas fiadas dos bares de Vila Madalena, onde um garçom de vanguarda bolou
uma perfeita bomba de efeito retardado com meia dose de dor-de-cotovelo,
algumas gotas de amargo, dois dedos de esperança disfarçada, e alegria q.s.p.¹
encher o coração.
O que minha cidade tem de mais álacre e legítimo é o alarido dos mochileiros,
flautistas, barraqueiros e fugitivos no Terminal Rodoviário do Jabaquara, ao dizerem adeus no sábado de manhã, em
busca do mar do Sul, e voltando domingo à noite tostados de cerveja, sol, areia
e mariscos, até empalidecerem outra vez no cotidiano das lojas, armarinhos,
butiques, bancos e guichês.
O que minha cidade tem de mais fácil e legítimo é esta
disponibilidade para aceitar as coisas como são – a vida e a morte – e concluir
que tudo é possível: sardas, celulite, bronze, paralelepípedo, cartório de
protesto, bala perdida, impropérios, maldições, arrependimentos, conversões,
penitências, desuniões definitivas, casamentos eternos, bodas de ouro, tombos,
porões, amizades, ervas medicinais, macumbas, crediários, a estátua de
Anchieta, o Pátio do Colégio, os mascateiros da General Carneiro, o lausperene em
Santa Ifigênia, os sinos de São Bento, e o sol no merídio iluminando colarinhos
sociais.
Bazar de coisas, caos e golfo, cartão-postal da pressa, porto de
ternuras, buquê de pamplonas, angélicas, azaleias, fuligens e augustas,
moquifos e tugúrios, campeonato mundial entremeado de pernetas e fraturas,
solidões cercadas de risos e de festas, macarronadas infinitas, pizzas,
chaminés e a via láctea de fumaça corrigindo as estrelas verdadeiras.
Mas, por fim, eu revelo: o que esta cidade tem mesmo de mais fiel e legítimo é o amor e a
raiva deste amante anônimo, quando a cidade finge não me ver no meio do povo que
a habita.
¹ q.s.p., em química, é a abreviação
de “quantidade suficiente para”.
[DIAFÉRIA,
Lourenço Carlos. Disponível em https://webwritersbrasil.wordpress.com/literatura-na-web/a-arte-da-cronica/cronicas-comentadas/uma-cronica-de-lourenco-diaferia/]
Augusto de Campos
Um dos fundadores do movimento concretista, Augusto de Campos nasceu em
São Paulo, em 1931. Cidade, City, Cité, seu retrato da
desordem e da cacofonia da grande cidade (São Paulo, mas também qualquer outra
megalópole do mundo) é concreto e contundente, como não poderia deixar de ser.
Não basta ler
seu poema, longa linha de uma só palavra (palavra-valise), composta por recorte
de palavras existentes (que, recompostas pelo leitor em outras leituras,
“dizem” outros aspectos da cidade). É preciso vê-lo e ouvi-lo – para a sensação
de caos, ruído e aceleração incorporar-se ao sentido:
atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimultipliorganiperiodiplastipublirapareciproustisagasimplitenaveloveravivaunivora
cidade
city
cité
[Disponível em
http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2009/01/augusto-de-campos.html]
Canções para São Paulo: Criolo
De passagem,
quero fazer referência às tão importantes canções que mostram São Paulo e suas
múltiplas feições. Deixo de lado
os conhecidos e queridos Adoniran Barbosa, Tom Zé, Billy Blanco, Paulo
Vanzolini, Itamar Assumpção, Caetano Veloso, entre outros.
Foco minha
atenção em Criolo, paulistano nascido em 1975, como representante da geração contemporânea. Sem louvações, o rapper nos traz uma visão realista e
crítica da São Paulo de agora – Não
existe amor em São Paulo –, ajudando a compor sua face multifacetada.
Não existe amor em SP
Não Existe Amor Em SP
Não existe amor em SP
Um labirinto místico
Onde os grafites gritam
Não dá pra descrever
Numa linda frase
De um postal tão doce
Cuidado com doce
São Paulo é um buquê
Buquês são flores mortas
Num lindo arranjo
Arranjo lindo feito pra você
Onde os grafites gritam
Não dá pra descrever
Numa linda frase
De um postal tão doce
Cuidado com doce
São Paulo é um buquê
Buquês são flores mortas
Num lindo arranjo
Arranjo lindo feito pra você
Não existe amor em SP
Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel
Aqui ninguém vai pro céu
Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel
Aqui ninguém vai pro céu
Não precisa morrer pra ver Deus
Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você
Encontro duas nuvens em cada escombro, em cada esquina
Me dê um gole de vida
Não precisa morrer pra ver Deus
Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você
Encontro duas nuvens em cada escombro, em cada esquina
Me dê um gole de vida
Não precisa morrer pra ver Deus
Ao leitor
Leitor amigo,
se você conhece ou tem notícias sobre São Paulo, deve ter percebido que os
textos apontam significativas modificações pelas quais passou a metrópole.
Em
contrapartida, há aspectos que, de uns tempos para cá, permanecem e se aguçam, tal qual indicam os textos de Diaféria, Augusto de Campos e Criolo. Como bem reflete
Camões em seu soneto, parece que “afora este
mudar-se cada dia [...] não se muda já como soía”.
Aliás, para completar
a informação, deixo o poema integral do poeta português:
Mudam-se
os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se
o ser, muda-se a confiança:
Todo
o mundo é composto de mudança,
Tomando
sempre novas qualidades.
Continuamente
vemos novidades,
Diferentes
em tudo da esperança:
Do
mal ficam as mágoas na lembrança,
E
do bem (se algum houve) as saudades.
O
tempo cobre o chão de verde manto,
Que
já coberto foi de neve fria,
E
em mim converte em choro o doce canto.
E
afora este mudar-se cada dia,
Outra
mudança faz de mor espanto,
Que
não se muda já como soía.
[Disponível
em http://www.citador.pt/poemas/mudamse-os-tempos-mudamse-as-vontades-luis-vaz-de-camoes]
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