Em matérias anteriores (10/12/2014 e 04/01/2015), pedi a você, leitor, que me acompanhasse numa visita a escritos que,
de alguma maneira, enfocavam conflitos relativos ao conhecimento e uso do
idioma.
Continuo no tema, estendendo-o agora ao
relacionamento entre gerações, na ótica de dois escritores/jornalistas, afeitos
e atentos à linguagem dos mais jovens. São eles: Rosana Hermann e Marcelo Duarte.
Quando
a tentativa de aproximação não dá muito certo
Se antigamente já era difícil a
comunicação entre pais e filhos, depois do computador e da internet, então... O
dialeto e as abreviações usadas em salas de bate-papo virtuais estão bem longe
da “simples” correspondência via carta ou telegrama de outrora.
A crônica de Rosana Hermann traz à luz
a mãe que se esforça por acompanhar a evolução tecnológica e o mundo virtual da
filha e, para isso, procura comunicar-se via internet.
O resultado... não é dos melhores:
A
menina que falava internetês
A mãe gostava de acreditar-se moderna.
Do figurino à linguagem, esforçava-se para estar sempre up-to-date com as
últimas tendências da moda. Seus objetivos eram claros: criar uma imagem de
mulher mais jovem e fazer bonito para os filhos, os reis da tecnologia
doméstica, que dominavam tudo na casa, dos controles remotos dos aparelhos
eletrônicos aos computadores e laptops. Foi o propósito de não perder o bonde
da história que levou Wanda a comprar um computador pessoal, assinar um
provedor de acesso e começar a navegar pela internet. Nada poderia detê-la rumo
à modernidade!
Depois de alguns dias, navegando em
seu trabalho, encontrou sua filha pré-adolescente on-line. Não resistiu à
tentação e iniciou uma conversa através de um programa de mensagens instantâneas.
– Olá, filha, aqui é a sua mãe,
navegando pela internet… Tudo bem com você, querida?
– blz.
– Como? Não entendi, filhinha. Seu
teclado está com algum problema nas vogais?
– naum.
– Vejo que não é este o problema, já
que você digitou duas vogais agora mesmo! Mas pode ser um defeito nas teclas de
acentuação. Por favor, filha, teste o ‘til’.
– q tio?
– Não, não o tio, o til. O tio é o
irmão do papai, o tio Bruno. O til é aquele acento do não, do anão, da mamãe…
Lembra quando a mamãe ensinou a você que o til parecia uma minhoquinha?
– nem
– Nem? Como assim, ‘nem’? Nem no
sentido de conjunção coordenativa aditiva como ‘não lembro nem quero lembrar’?
Ou seria ‘nem’ como conjunção coordenativa alternativa, como em ‘não me lembro
e nem parece uma minhoquinha’?
– ;-(
– Que foi isso, filhota?
– naum quero + tc com vc
– Você… não quer mais tecer comigo?
– teclar
– Assim mamãe fica triste, lindinha.
Eu só queria conversar, puxar algum assunto. Mas está difícil. Eu não entendo o
que você escreve e você não se interessa pelo que eu digito. Realmente, meu
bem, parece que não é possível estabelecer um diálogo com você. Tudo bem, se eu
tiver incomodando, eu paro agora mesmo.
– tá
– Antes de ir pra casa eu vou passar
no supermercado. O que você quer que eu compre para… para… para vc? É assim que
se diz em internetês?
– refri e bisc8
– Refrigerante e biscoito? Biscoito?
Filha, francamente, que linguagem é essa? Você estuda no melhor colégio, seu
pai paga uma mensalidade altíssima e você escreve assim na internet? Sem
vogais, sem acentos, sem completar as palavras, sem usar maiúsculas no início
de uma frase, com orações sem nexo e ainda por cima usando números no lugar das
sílabas? Isso é inadmissível, Maria Eugênia!
– Xau, mãe, c ta xata.
– Maria Eugênia! Chata é com ch!
–
– Maria Eugênia?
–
– Desligou. Bem, pelo menos a tecla
til está em ordem.
HERMANN,
Rosana. In: CAMPOS, C. L. S.; SILVA, N. J. (orgs.). Lições de Gramática para quem gosta de Literatura. São Paulo: Panda
Books.
Quando
a incompreensão acaba em final feliz
São muitas as crônicas que se detêm a
analisar a forma de comunicação – ou a não comunicação – dos craques do futebol.
Parece que o filão melhor para o cronista é o jogador que faz uso de termos
engraçados, fora de propósito, ou com tendência à exibição; ou o seu contrário:
aquele de fala telegráfica, ou que responde sempre a mesma coisa, qualquer que
seja a pergunta feita.
Marcelo Duarte faz diferente: traz ao
leitor um jogador que, além de falante, é bom ouvinte. Quanto à compreensão do
que ouve... Bem, ao final da história, veremos seu entendimento sobre “pleonasmo”,
tão citado por seu contratante. (Para facilitar a leitura, sublinho os pleonasmos do texto.)
Olha
o pleonasmo!
O Dínamo, tradicional time de futebol
do estado, estava há 17 anos sem conquistar um título. Pior: no último
campeonato ficou ameaçado de cair para a Segunda Divisão. A oposição dentro do
clube cresceu e escolheu o professor Ramalho para ser seu candidato à
presidência. Ramalho era professor aposentado de Língua Portuguesa. Tinha tempo
de sobra, portanto, para se dedicar a reerguer o time. Abertas as urnas, ganhou
apertado, mas ganhou. Com ajuda de amigos empresários, o cartola anunciou uma
contratação de impacto para a temporada: o centroavante Zuba. A imprensa toda
foi para a sede do clube acompanhar a primeira coletiva do craque:
– Esse sorriso nos meus lábios é para
mostrar que o Dínamo vai sair para fora
dessa situação – declarou, vestindo a camisa amarela e preta número 9 pela
primeira vez.
Ao final da entrevista, guardião
austero do bom português, o professor Ramalho passou pelo jogador e cochichou:
– Olha o pleonasmo!
Zuba não entendeu o que o presidente
quis dizer. Ficou com um enorme ponto de interrogação na cara.
Na partida de estreia de Zuba, o
Dínamo conseguiu uma vitória sobre o Atlântico, um de seus maiores rivais. O
centroavante marcou dois gols. Foi eleito o melhor em campo e acabou cercado de
repórteres na saída do campo:
– De agora em diante vamos encarar de frente todos os nossos
adversários!
O professor Ramalho, que havia entrado
no gramado para abraçar seu goleador, esperou os repórteres se dispersarem e
disse baixinho outra vez:
– Olha o pleonasmo!
O Dínamo começou a subir na tabela e
logo Zuba se transformou no artilheiro do campeonato nacional. Passou a ser
convidado a participar das mesas-redondas na TV. Em uma delas, teve a humildade
de dividir os méritos da campanha com Tony seu companheiro de time.
– Ele é o elo de ligação entre o meio de campo e o ataque do nosso time.
Ao sair da emissora, recebeu um
torpedo no celular enviado pelo presidente:
– Parabéns pela entrevista. Muito boa.
Mas olha o pleonasmo!
Com uma vitória atrás da outra, a
torcida passou a prestigiar os jogos do Dínamo. O estádio estava sempre lotado.
Zuba era sempre o mais aplaudido. Em campo, correspondia com gols e mais gols.
Na semifinal, contra o Liberdade, não marcou, mas deu um passe primoroso para o
ponta-esquerda Pedrão mandar para as redes.
– O que nos interessa é vencer. Se sou
eu quem faz a conclusão final ou
não, pouco importa.
À sua frente no vestiário, só que um
pouco distante, ele enxergou o presidente, feliz da vida, mexendo os lábios.
Não era preciso ser especialista em leitura labial para entender o que ele
estava dizendo:
“Olha o pleonasmo!”.
Chegou o dia da grande final. Estádio
abarrotado, transmissão ao vivo pela TV. O Dínamo sofreu um sufoco no início,
mas conseguiu equilibrar a partida no final do primeiro tempo. Os minutos iam
passando e os dois times não paravam de perder chances. Até que, a oito minutos
do final, Zuba entrou na área do Cometas. Era a oportunidade do Dínamo acabar
com o jejum de títulos.
A torcida começou a gritar o nome de
Zuba. Ele não fugiu da responsabilidade. Apanhou a bola e pediu para bater. E
bateu com elegância. Bola num canto, goleiro no outro. Depois da volta
olímpica, o artilheiro atendeu os inúmeros repórteres, que quase enfiavam os
microfones em sua boca.
– Quero dedicar essa vitória em
especial ao nosso presidente, professor Ramalho. Primeiro por ter acreditado no
meu futebol e ter me contratado.
Procurou o dirigente com os olhos.
Quando o encontrou, Zuba deu um sorrisinho e continuou:
– E quero, principalmente, agradecer a
ele pela dica que me deu na hora de cobrar o pênalti.
O cartola ficou todo envaidecido.
Mas... a qual dica o jogador estava se referindo? Zuba logo matou a charada:
– Quando corri para a bola, olhei bem
nos olhos do goleiro adversário, apontei para um canto e disse: “Olha o
pleonasmo!”. Ele virou para o lado direito e eu mandei a bola no esquerdo.
DUARTE,
Marcelo. In CAMPOS, C. L. S.; SILVA, N. J. (orgs.) Lições de Gramática para quem gosta de Literatura. São Paulo: Panda
Books, 2007.
Leitor/a
que me acompanhou nessas divagações...
Seja de modo divertido ou sério, o
importante é que tomemos consciência de todas as variantes e dialetos
linguísticos presentes na sociedade. A Língua, ao contrário do que alguns
pensam, é mutável como o ser humano, porque o acompanha e o traduz em suas
várias vivências.
O momento e contexto histórico e
geográfico, os aspectos da cultura, as contingências sociais e situacionais, os
suportes e veículos usados para a comunicação – tudo isso provoca variações nos
modos de expressão humanas. Acolher, sem preconceitos, a forma como cada um se
expressa, é exercitar o respeito à diversidade do ser e afirmar o direito à
identidade própria.
Ah!, sem esquecer: o respeito à
palavra – enquanto forma e conteúdo – vem a par do respeito integral à pessoa; o
que nos leva a considerar o peso e a consequência de nossas próprias
palavras...
Que este seja um dos bons pensamentos
para este momento inicial do ano e para avaliar fatos importantes deste nosso
tempo.
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