A
viagem das línguas
Leitor ou leitora, vai viajar? Está
pensando nisso? Arrumando as malas, imaginando delícias, antevendo novas
paisagens ou a revisita das conhecidas...
Bem, talvez sua viagem não deva ser
física, e você esteja planejando voar nas asas das artes e diversões, em sua cidade,
mesmo: bons filmes, museus, livros interessantes; momentos em parque, meditação
num local tranquilo. Tudo isso faz parte da postura viajeira do espírito,
concorda?
E que tal continuarmos com as
divagações linguísticas, agora observando o modo como a língua viaja e chega
até nós? As palavras estrangeiras, de fato, nos alcançam por aqui mesmo, no
lugar em que vivemos, e incorporam-se à nossa fala cotidiana. Acontece de tal
modo, que é como se nós próprios viajássemos, incorporando hábitos e falas de
lugares nos quais, talvez, nunca tenhamos posto os pés.
Aliás, quando se trata de palavra já
incorporada à língua, nem nos apercebemos de sua “estrangeirice”. Assim, futebol, bife, coquetel; batom, guichê, maiô; boteco, artesão, cantina; mutirão, pipoca, abacaxi – três a
três e respectivamente, essas palavras têm como origem as línguas inglesa,
francesa, italiana e tupi: alguém se lembra disso?
No entanto, o que dizer de palavras
bem mais novas, que passeiam e se deslocam de forma absurdamente rápida via
internet, que vêm e são adotadas em sua forma original? Nem todos as aceitam,
como demonstram os textos abaixo, com visões e tons distintos entre si, porém,
tendo em comum a crítica aos modismos vindos do estrangeiro.
Vamos às leituras.
Rachel:
turismo e invasão linguística
A crônica de Rachel de Queiroz agudiza
a crítica e confere estatuto de colonização à importação de termos da cultura
americana. A escritora não deixa dúvidas quanto à aversão ao modismo, ao mesmo
tempo em que revela certo saudosismo quanto a estrangeirismos mais...
elitistas: o francês, ou mesmo o inglês mais tradicional e não tão “emergente”.
Note, leitor, a veemência das qualificações
e a ironia que percorre o texto, e cresce no final.
O
bilinguismo emergente
A gente já prevê que o nosso próximo
passo será oficializar o inglês como língua do Brasil, com estatuto paralelo ao
do português. E não é rabugice de velha escriba, é constatação fria e baseada
nos fatos.
Pena que essa bilinguidade (perdoem o
neologismo) não nos tenha chegado, já não digo por meio erudito, mas pelo menos
por oralidade consequente; o que recebemos é a gíria do “show business” (é
proibido falar ‘espetáculo’) da publicidade desenfreada (vide anúncios da
televisão). E, pior que tudo, os nomes das lojas, de restaurantes, qualquer
boteco de praia; até barraca de coco verde, arranjam nome com gosto ou cheiro
de inglês.
Engraçado que essa voga frenética da língua
dos americanos (porque o inglês, propriamente dito, não tem nada a ver com
isso) não nos veio diretamente quando os americanos ganharam as guerras – a
quente e a fria – e se fizeram donos do mundo. Não, a invasão tomou vulto
posteriormente, de alguns anos para cá. Parece até uma epidemia: você abre o
jornal, na página que outrora se chamava ‘diversões’ ou 'espetáculos’, hoje tudo
é incluído na expressão "Show". Trate-se de espetáculo de música popular, de
cantor lírico, de dançarinos, e até mesmo de teatro a sério – tudo é “show”. Os
cantores populares, até os caipiras, arranjaram um jeitinho de se batizarem no
que supõem que é o inglês. Não cito nomes porque não quero ofender ninguém, só
quero mesmo reclamar.
[...] O pior é que a publicidade
brasileira assumiu indiscriminadamente a moda, e você pode estar vendendo um
brim tecido em São Paulo e ele será chamado "jeans", um sorvete é "ice-qualquer
coisa". Quase todos os produtores do mercado, as loterias, os projetos
imobiliários, tudo tem nome em suposto inglês. No menu dos restaurantes (aliás ninguém diz mais menu) os pratos são
quase todos americanizados, do hot dog
ao steak. Até o pratos de massas
italianas são servidos na versão anglicizada.
E a coisa piorou muito depois que
passamos a ser colonizados por Miami; e ou, antes, depois que Miami desandou a
se infestar de brasileiro. (A expressão não é minha, li essa queixa no
colunista de um jornaleco de lá.) [...]
E se o fenômeno não tem volta, se é
irremediável, a gente poderia ao menos pedir ao céu que ele mudasse um pouco de
direção. Em vez de termos a nossa capital cultural do exterior localizada em
Miami e arredores, por que não em Nova York? Mas os nossos socialites (mais inglês) e os emergentes em geral detestam Nova
York (ou Noviorque, como eles dizem). Lá, a vida é mais cara, a cidade é
imensa, as pessoas se perdem na anonimidade, não saem em noticiário dos jornais
brasileiros, e também lá não tem quem fale português, nem ao menos quem entenda
o nosso tipo de ‘inglês’.
O mal é sem remédio, ai de nós. Ou
‘hélàs’, como se dizia no tempo em que o francês era chique. Em miamês não sei como é.
QUEIROZ,
Rachel de. In: CAMPOS, C. L. S.; SILVA, N. J. (orgs.) Lições de Gramática para quem gosta de Literatura. São Paulo: Panda
Books.
Walcir
e a sensação de se perder na selva
A alegada desorientação ante o emprego
de termos estrangeiros (ou estrangeiramente empregados) – faz o cronista duvidar
da própria esperteza... Pura estratégia ou charme, que desvela sua lucidez e
fina ironia na análise de expressões da moda.
Será
que sou bobo?
Ando perdido em uma selva de palavras.
Existem termos destinados a dar a impressão de que algo não é exatamente o que
é. Ou para botar verniz sobre uma atividade banal. Já estão, sim, incorporados
no vocabulário. Servem para dar uma impressão enganosa. E também para ajudar as
pessoas a parecer inteligentes e chiques porque parecem difíceis. Resolvi
desvendar algumas dessas armadilhas verbais.
Seminovo – Já não se fala em carro
usado, mas em seminovo. Vendedores adoram. O termo sugere que o carro não é
tão velho assim, mesmo que se trate de uma Brasília sem motor. Ou que o câmbio
saia na mão do comprador logo depois da primeira curva. É pura técnica de
vendas. Vou guardá-lo para elogiar uma amiga que fez plástica. Talvez ela adore
ouvir que está “seminova”. Mas talvez...
Sale – É a boa e velha liquidação. As
lojas dos shoppings devem achar liquidação muito chula. Anunciam em inglês. Sale quer dizer que o estoque encalhou.
A grife está liquidando, sim! Não se envergonhe de pedir mais descontos. Pode
ser que não seja chique, mas aproveite.
Loft – Quando o loft surgiu, nos Estados Unidos, era uma moradia instalada em
antigos galpões industriais. Sempre enorme e sem paredes divisórias. Vejo
anúncios de lofts a torto e a
direito. A maioria corresponde a um antigo conjugado. Só não tem paredes, para
lembrar seu similar americano. É preciso ser compreensivo. Qualquer um prefere
dizer que está morando em um loft a
dizer em uma quitinete de luxo.
Cult – Não aguento mais ouvir falar que
alguma porcaria é cult. O cult é o brega que ganhou status. O negócio é o seguinte: um bando
de intelectuais adora assistir a filmes de terceira, programas de televisão
populares e afins. Mas um intelectual não pode revelar que gosta de algo
considerado brega. Então diz que é cult.
Assim, se pode divertir com bobagens, como qualquer ser humano normal, sem deixar
de parecer inteligente. Como conceito, próximo do cult está o trash. E o
lixo elogiado. Trash é muito usado
para filmes de terror. Um candidato a intelectual jamais confessa que não perde
um episódio da série Sexta-Feira 13, por exemplo. Ergue o nariz e diz que é
trash. Depois, agarra um saquinho de pipoca, senta na primeira fila e grita a
cada vez que o Jason ergue o machado.
Workshop – É uma espécie de curso intensivo.
Existem os bons. Mas o termo se presta a muita empulhação. Pois, ao contrário
dos cursos, no workshop ninguém tem a obrigação de aprender alguma coisa
específica. Basta participar. Muitas vezes botam um sujeito famoso para dar
palestras durante dois dias seguidos. Há alunos que chegam a roncar na sala.
Depois fazem bonito dizendo que participaram de um workshop com fulano ou beltrano. A palavra é imponente, não é?
Releitura – Ninguém, no meio artístico
ou gastronômico, consegue sobreviver sem usar essa palavra. Está em moda.
Fala-se em releitura de tudo: de músicas, de receitas, de livros. Em culinária,
releitura serve para falar de alguém que achou uma receita antiga e lhe deu um
toque pessoal. Críticos culinários e donos de restaurantes badalados adoram
falar em cardápios com releitura disso e daquilo. Ora, um cozinheiro não bota
seu tempero até na feijoada? Isso é releitura? Então minha avó fazia releitura
e não sabia, coitada. O caso fica mais complicado em outras áreas. Fazer uma releitura
de uma história não é disfarçar falta de ideia? Claro que existem casos e
casos. Mas que releitura serve para disfarçar cópia e plágio, serve. Seria mais
honesto dizer “adaptado de...” ou “inspirado em...”, como faziam antes.
Daria para escrever um livro inteiro a
respeito. Fico arrepiado quando alguém vem com uma conversa abarrotada de
termos como esses. Parece que vão me passar a perna. Ou a culpa é minha, e não sou
capaz de entender a profundidade da conversa. Nessas horas, fico pensando: será
que sou bobo? Ou tem gente esperta demais?
CARRASCO,
Walcyr. In: CAMPOS, C. L. S.; SILVA, N. J. (orgs.) Lições de Gramática para quem gosta de Literatura. São Paulo: Panda Books, 2007.
Mário
e a penetração na língua brasileira
O poema de Mário de Andrade também critica
o falar estrangeiro, agora não em defesa de uma linguagem formal/da elite, mas
da cultura popular e do falar coloquial/informal.
Sabemos que, como bom modernista,
importava a Mário a afirmação da identidade nacional, principalmente nos
aspectos de arte, cultura e língua brasileiras. Daí a incursão por territórios
idiomáticos da África e dos índios brasileiros, em várias de suas obras. Nesta,
temos:
lundu – dança e canção de origem
africana;
gupiara – região de sedimentos de
cascalhos, nas encostas dos morros (palavra de origem indígena);
caçanje – português mal falado;
dialeto crioulo falado em Angola (palavra de origem africana);
guariba – macaco (“singe”, no
francês”), como explica o próprio texto (palavra de origem indígena).
Lundu
do escritor difícil
Eu sou um escritor
difícil
Que a muita gente
enquizila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta
escurez.
Cortina de brim caipora,
Com teia caranguejeira
E enfeite ruim de
caipira,
Fale fala brasileira
Que você enxerga bonito
Tanta luz nesta capoeira
Tal-e-qual numa gupiara.
[...]
Não carece vestir tanga
Pra penetrar meu
caçanje!
Você sabe o francês
"singe"
Mas não sabe o que é
guariba?
– Pois é macaco, seu
mano,
Que só sabe o que é da estranja.
ANDRADE,
Mário. Disponível em
http://mario-de-andrade.blogspot.com.br/2009/05/lundu-do-escritor-dificil.html
Bem...
Resta perguntar: quantos de nós
compreendemos “de primeira” o poema do “escritor difícil” Mário de Andrade?
Estaremos nós, em termos de compreensão linguística, mais para o francês que
para o “brasileiro”, como reclama o eu poético? (Ou, quem sabe, para o 'miamês’ ? Ou o ‘americanês'? Ou...)
Até
a próxima divagação.
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