...Ou
mestres e alunos de Língua à beira do atordoamento
“Passou?
Não? De que nota precisa? Recuperação? Conselho de classe?”
Ah!, dezembro... Nas escolas,
professores estressados, alunos cansados, pais no limite da preocupação.
Lá fora, o tempo avança e os pensamentos
giram rápidos: terminar trabalhos, programar descanso, preparar festas (ou como
fugir delas) e, para os que podem, alcançar os dias das desejadas férias.
A todos – estressados ou não, de escolas
ou não, quase em férias ou não –, eu sugiro alguns intermezzos, para juntos procedermos
a “divagações linguísticas”, viajando por textos saborosos. Estes nos farão
debruçar uma vez mais sobre a expressão verbal e a língua, mas de um modo leve,
sorridente e descompromissado, como convém a esta época do ano.
Na matéria de hoje, curtam comigo o
envolvimento linguístico na relação escolar conflituosa, expressa em tom de
comédia crítica por Paulo Leminski e Ivan Jaf.
Aos textos.
Leminski
Ao final do ano, talvez mais de um
aluno se solidarize com o escriba do poema de Leminski...
Nele, o eu poético narra uma
historieta em que termos usuais de análise sintática se investem de atributos
narrativos, configurando a crítica ao ensino convencional de Língua.
Junto, vem uma bela ironia: o poema
deixa ao leitor o ônus de conhecer bem os termos gramaticais, sem o que fica
impossível compreender o sentido das metáforas linguísticas empregadas.
E ainda, outra: o escriba/assassino (o eu do
poema) se, por um lado, mata o professor convencional – inexistente,
pleonástico, regular (leia-se, previsível) –, por outro, torna-se professor e
ensina, sutilmente, com sua própria escrita, que o ato de escrever é perfeito
para a aprendizagem da gramática! Repare, leitor/a, na competência linguística
com que o texto é construído. É essa capacidade de elaboração textual que enseja ao escriba... assassinar o professor/sujeito
inexistente (e/ou desnecessário).
O assassino era o escriba
Meu professor de análise
sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado de sua vida,
regular como um paradigma da 1ª conjunção.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido na sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conectivos e agentes da passiva o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
Um pleonasmo, o principal predicado de sua vida,
regular como um paradigma da 1ª conjunção.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido na sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conectivos e agentes da passiva o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
LEMINSKI,
Paulo. Caprichos e Relaxos.
Disponível em http://blogdocafil.files.wordpress.com/2009/04/paulo-leminski-caprichos-e-relaxos-pdfrev.pdf.
Ivan
Jaf
E o que dizer do professor? Ao findar
o ano, certamente haverá algum um tanto quanto “enlouquecido”, como este da
bem-humorada carta/crônica de Jaf. Explícito e direto, o personagem
não esconde sua aversão à linguagem informal, que vem macular a pretensa
pureza da norma culta da língua.
O ápice de seu desespero está na constatação de que ele próprio, que batalha “contra as
gírias, os estrangeirismos e os erros gramaticais como um cristão contra os
hereges”, que faz da “luta pelo
emprego do português correto [...] uma
verdadeira cruzada”, vem sendo contaminado pelo que considera o retorno ao idioma tupi.
É de se notar, também, o interessante uso de
dados históricos relativos à língua primitiva do Brasil.
Um
futuro singular
Senhor diretor, estou escrevendo esta
carta porque temo pela minha saúde mental, e se algo acontecer comigo quero que
todos saibam o motivo, principalmente o senhor, do qual eu esperava toda a
compreensão, já que partilha comigo a crença de que só com um profundo respeito
à gramática da língua portuguesa construiremos um nação desenvolvida. O caso,
senhor, é que o Grande Pajé está me perseguindo, e tenho certeza de que neste
exato momento ele está ali, do outro lado da janela, escondido entre as folhas
da amendoeira... e não resistirei a mais um ataque... Minhas força... forçaS!...
estão se esgotando!
Sempre fui um dedicado professor de
português, o senhor me conhece bem, tantas vezes me elogiou... Trabalho no
ensino fundamental de sua escola há mais de vinte anos! Desde quando ainda se
dizia “1º grau”! Sempre tive devoção pela língua portuguesa! É uma verdadeira
religião para mim! Luto contra as gírias, os estrangeirismos e os erros
gramaticais como um cristão contra os hereges! Minha luta pelo emprego do
português correto é uma verdadeira cruzada! Uma guerra santa! E agora, quando
mais preciso de apoio, quando descubro o verdadeiro inimigo por trás da
falência a que o nosso idioma pátrio está condenado, quando passo a sofrer
ameaças diretas do Grande Pajé, o senhor me abandona, e, em vez de se aliar a
mim numa batalha sem trégua pelo resgate de nossa língua, em vez de acreditar
em mim, francamente... me manda procurar um psiquiatra!
Mas não entregarei os ponto! Os pontoS!
Minha mente morrerá lutando! Se o Grande Pajé afinal conseguir seu intento, e
plantar à força a semente da língua Tupi dentro da minha cabeça, através desta
carta o povo brasileiro saberá que lutei até o fim!
Tudo começou naquela tarde de sábado,
quando fui lavar meu carro e o rapaz me cobrou “dez real”. Depois deixei o
carro numa vaga, e me custou “dois real”. O camelô me ofereceu “três cueca”,
minha empregada tinha pedido “quatro quilo de batata”, o feirante me ofereceu
“seis limão”, outro gritou “os peixe tão fresco!”; depois, meu porteiro se
prontificou a levar “as sacola” até o elevador e deu o recado de que “meus
filho” ainda não tinham chegado “das compra”. Desesperado, me dei conta de que
os plurais estavam sumindo!
É claro que eu já havia percebido isso
antes! Sou muito sensível aos erro... erroS de português! Mas só naquele sábado
entendi o motivo. A coisa me veio assim num estalo: a língua tupi está se
infiltrando na mente do povo brasileiro!
Devia ter pensando nisso antes. Era
evidente!
Não chego a ser um tupinólogo, mas
naquele sábado subitamente lembrei-me de que uma das características da língua
tupi é a ausência de plural! Uma estranha intuição me fez iniciar uma pesquisa
na internet, e eis que logo me deparo com uma declaração do conceituado crítico
literário Alfredo Bosi: “O tupi vive subterraneamente na fala de nosso povo...
É nosso inconsciente selvagem e primitivo”. Levei as mão... mãoS à cabeça! Eu
havia encontrado a resposta! O tupi estava voltando! A língua tupi, depois de
mais de dois séculos extirpada de nosso convívio, brotava agora das profundezas
do inconsciente coletivo e começava a se manifestar na fala do povo! E o
primeiro sinal era a abolição do plural!
Quando lhe revelei minha descoberta o
senhor riu, achou que eu estava brincando. Depois, achou que eu precisava casar
de novo. Disse que a minha recente separação estava afetando meu juízo. Então
eu lhe mandei aquele extenso e-mail, lembra? O resultado de minha pesquisa...
um resumo da importância histórica do tupi entre nós.
Pouca gente se dá conta! Nos primeiros
dois séculos depois da chegada de Cabral só se falava tupi, do Maranhão até o
Paraná. Naqueles tempos era comum o casamento entre portugueses e índias, e,
como eram elas que educavam os filhos, o tupi tornou-se a língua falada.O
português era a língua culta, ensinada nas escolas, e pouca gente o usava. Tupi
era o idioma do povo, enquanto o português só se falava entre os governantes e
para os negócios com a metrópole. Era em tupi que se passavam recibos, o
comércio fazia seus balanços e se escreviam cartas. Era em tupi que os
bandeirantes se comunicavam. Domingos Jorge Velho nem sabia falar português! Até
o século XVII, mesmo os membros das famílias tradicionais falavam tupi entre
si, a ponto de ser preciso intérpretes nas leituras de inventários, pois os
herdeiros não sabiam português! E então tudo isso acabou. Uma língua foi
extirpada da nação! E como? Por um decreto!
Em 1758 o marquês de Pombal,
interessado em acabar com o poder dos jesuítas e em assegurar o domínio de
Portugal em sua colônia, proibiu o uso do tupi entre nós!
Escuto o farfalhar das folhas de
amendoeira. O Grande Pajé está lendo os meus pensamento. PensamentoS! Não! Não
vou me calar!
Idiomas não se acabam por decreto! O
tupi continuou entre nós! Até hoje usamos mais de vinte mil vocábulos tupis.
São principalmente as expressões em tupi que tornam nosso português diferente
de Portugal! Tupi é a segunda língua a nomear lugares em nosso país!
O senhor me mandou procurar um
psiquiatra quando o segurei pelos ombros e lhe pedi para me ajudar a alertar as
autoridades sobre o Grande Pajé! Agora pode ser tarde! Eu sou o único que sabe
o que está acontecendo... mas talvez esta noite... eu não resista... e a alma
tupi também me atinja... e eu comece a perder o plural!
O senhor é cego, diretor?
A língua é a alma do povo! Pode até se
acabar com a língua por decreto, mas não com a alma. Olhe em volta! Estamos
voltando a ser tupis! Descansamos em redes! Usamos o mínimo de roupa possível!
A maior parte das palavras tupis é constituída de duas sílaba. Meus filhos
voltaram da casa de praia do novo namorado da minha ex-mulher falando Saqua, em
vez de Saquarema! Lembra de Jorge Benjor cantando “Mor num patropi”?
E o que me diz de um ex-presidente
declarando “chega de nhenhenhém neoliberal”? Por que “nhenhenhém”, e não
“conversa jogada fora”? E “jururu”, “pixaim”, “pindaíba”, “mingau” e “pipoca“
que escutamos em cada esquina? Isso não lhe diz nada?
Não sei se vou conseguir chegar ao fim
desta... vamos perder a capacidade de flexionar em gênero e grau! Eu sei como
acontece! O Grande Pajé entra em nossas cabeça e... O senhor não quer me dar
ouvido! Primeiro perdemos os plural! É o primeiro sintoma de que o Grande Pajé
está nos abduzindo! Escute... o nosso próprio presidente da República! Ele já
não usa o plural e ninguém se incomoda! O que virá depois? Vamos contar até
quatro, e o que passar de quatro será só “muitos”? Usar a letra A para qualquer
coisa que for redonda? Vamos perder os tempos verbais dos nossos lindo verbo?
Lá se vão as desinência? Vamos perder as distinção de gênero gramatical de
nossos pronome? Como alertou Pero de Magalhães Gândavo, em 1553... vamos perder
a letra F, o L e o R, que não existe no tupi?
É a vingança dos tupis! Minhas força
já me faltam! Do meu salário desse mês, deposite quinhentos real na conta da
mãe dos meus filho. As folha da amendoeira já nem balançam! O an Grande Pajé entrou na minha cabeça.
Já vejo seu tobá. Ele me tará. Vou sesaráîa o português. Mamõ-pe
nde rera? O senhor é meu novo Túba.
Pá! Pá!
an =
fantasma
tobá =
rosto
tara =
apanhar
sesaráîa
= esquecer
mamo-pe
nde rera = qual é o seu nome
túba =
pai
pá = sim
JAF,
Ivan. In: CAMPOS, C. L. S.; SILVA, N. J. (orgs.) Lições de Gramática para quem gosta de Literatura. São Paulo: Panda
Books.
Leitor/a,
Já reparou como nossa linguagem se
modifica, de acordo com a situação? Estamos tão acostumados com o fato, que trocamos
quase naturalmente o registro, ao conversar com um amigo, um irmão, o pai, uma
autoridade. O mesmo, se a comunicação é escrita: mudamos termos, organização de
frases, concordâncias de plural.
Sugiro um exercício de
autoconhecimento: observe, por exemplo, em que situações comunicativas sua fala
mantém integralmente a concordância de plural e outras características da norma
culta. Depois, analise: você mudaria seu modo de se expressar? Por quê?
(Voltarei com outras
divagações.)
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