Acabamos de passar (e, de
certa forma, ainda estamos passando) por um período eleitoral marcado por
expressões virulentas e profunda “incomunicação”.
No que dizia respeito aos
políticos, frequentemente, a cada pergunta de uma entrevista, não se
seguia uma resposta adequada; a cada resposta de debate, não se ouvia
uma réplica esclarecedora, mas outra, que fugia do eixo da questão.
Em paralelo, nas redes
sociais, poucas vezes apareceu a “fala” argumentativa e, menos ainda, a “escuta”
do interlocutor, para verdadeiro debate de ideias.
Sossegue, leitor, meu
foco não são tais condutas em si, mas, aproveitando a capacidade da literatura
de desnudar nossos comportamentos e consequências, mapear nossas dificuldades
comunicativas por meio dela.
Como registrei em matéria
antiga (A Literatura diz a Vida, de 17/01/2014), textos literários “cativam a
nós, leitores, não tanto por deflagrar o ‘Belo’, como muitos podem pensar, mas
principalmente por revelar-nos a nós
próprios, destrinchando uma teia de emoções que nem sempre conseguimos
compreender em sua complexidade, quanto mais expressar.”
Para ilustrar, hoje me atenho a um
gênero específico, a crônica: porquanto, retrato crítico do homem e suas
mazelas, ela tem o poder de tocar em feridas com “delicada contundência”, pelas
pitadas de humor que inocula no texto.
Não são poucas as crônicas que
flagram o resultado de interlocuções mal resolvidas, e selecionei algumas delas
– todas de Drummond. As lições a se tirar para nosso contexto sociopolítico e
até para as relações pessoais ficam a cargo de cada leitor. De qualquer modo, a
prosa bem-humorada do escritor certamente proporcionará bons e divertidos
momentos de leitura.
Modos
de xingar
(A incompreensão vocabular
pode separar gerações – como no texto – ou quaisquer indivíduos com repertórios
linguísticos diferentes. Na crônica, a personagem de mais idade se vale disso
para descarregar com mais liberdade sua ira.)
– Biltre!
– O quê?
– Biltre! Sacripanta!
– Traduz isso para português.
– Traduzo coisa nenhuma. Além do mais,
charro! Onagro!
Parei para escutar. As palavras
estranhas jorravam do interior de um Ford de bigode. Quem as proferia era um
senhor idoso, terno escuro, fisionomia respeitável, alterada pela indignação.
Quem as recebia era um garotão de camisa esporte, dentes clarinhos emergindo da
floresta capilar, no interior de um fusca. Desses casos de toda hora: o fusca
bateu no Ford. Discussão. Bate-boca. O velho usava o repertório de xingamentos
de seu tempo de sua condição: professor, quem sabe? Leitor de Camilo Castelo
Branco.
[...]
[...]
ANDRADE,
Carlos Drummond de. Os velhos
xingamentos. De notícias & não notícias faz-se a crônica. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1975.
O
índio
(Lugar social,
interesses e expectativas diferentes causam divergências – potencialmente
agravadas pela teimosia, arrogância e má vontade dos interlocutores. Apenas um
olhar aberto e desarmado, como o do menino, pode enxergar mais longe.)
– Um cafezinho.
– Essa não.
– Não o quê?
– Essa do índio.
– Quê que tem o índio?
– Essa eu não aceito.
– O senhor tem alguma coisa contra o
índio? Contra a jangada? Contra a vitória régia?
– Moço, tem gente esperando para
comprar ficha. Não posso ficar conversando à toa.
– À toa como? Então o senhor recusa
uma cédula emitida pela Casa da Moeda, eu lhe pergunto a razão por que recusa,
e o senhor me diz que não pode conversar? Tem que conversar, essa é boa. Me
diga por que não aceita uma nota do Brasil – não estamos no Brasil?
– Estamos.
– Então?
– Então o quê?
– Então dinheiro brasileiro vale ou
não vale?
– Claro que vale. Mas as notas de
cinco cruzeiros, com cara de índio, estão sendo falsificadas, eu não sou dono
desta joça e não quero receber dinheiro falso, tá bom?
– O quê que o senhor está me dizendo?
Repita.
– Não repito.
– Repita, se é capaz.
– Sou capaz, mas não sou relógio de
repetição.
– Repita que sou moedeiro falso.
– Eu não disse isso, mas se o senhor
diz que é...
– Eu disse que sou? Repita que eu
disse que sou.
– Ai ai ai. Assim não vale. O senhor
está me baralhando a cabeça. O que eu disse foi que tem notas falsificadas,
então não tem?
– E esta é falsa?
– Eu é que sei?
– Se não sabe, como recusa minha nota?
É porque desconfiou de mim. O senhor me conhece? De onde? Tenho pinta de
vigarista?
– Não conheço nem quero ter o prazer
de conhecer. Não sei se tem pinta disso ou daquilo. Sei que não aceito sua
nota, e pronto.
– Tem que aceitar.
(Vozes na fila: Chega! Chega! Para com
isso!)
– Viu? O senhor está empatando o
movimento do café.
– Empatando está o senhor, mas é a
circulação do papel-moeda no Brasil. Anda, me dá a fichinha.
– Então me dá uma nota de outra
qualidade.
– Dou, mas vamos fazer o seguinte: a
outra fica em depósito. (Voltando-se para trás.) Os senhores são testemunhas.
Vou pagar dez cruzeiros por um cafezinho. É o preço da eterna vigilância. Pago
até cem cruzeiros, se for preciso. Até mil. Mas esta nota de índio ele tem de
receber, levar à Casa da Moeda, perguntar se ela é falsa – falsa coisa nenhuma,
estão vendo? – trazer um certificado e me pedir desculpa. O dinheiro fica em
depósito. Depois dou para a ABBR.
(Sensação na fila. Chega um menino.)
– Moço, deixa eu espiar a nota.
– Olhe bem, garoto. Para você aprender
a lutar pelas instituições.
– O senhor viu o que está escrito
aqui?
– Não. O quê?
–Está escrito: fac-símile. É nota de
propaganda comercial, o senhor não vê que está na cara?
– Ô diabo, como é que eu não reparei!
ANDRADE,
Carlos Drummond de. Seleta em prosa e
verso. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
Diálogo
de Todo Dia
(Esta conversa
perfeitamente coesa e absolutamente incoerente leva ao exagero a incapacidade
de comunicação. O título da crônica corresponde a uma síntese valorativa e
insinua ao leitor que a falha comunicativa é rotina, e não exceção, em nossas
vidas.)
– Alô, quem fala?
– Ninguém. Quem fala é você que está
perguntando quem fala.
– Mas eu preciso saber com quem estou
falando.
– E eu preciso saber antes a quem
estou respondendo.
– Assim não dá. Me faz o obséquio de
dizer quem fala?
– Todo mundo fala, meu amigo, desde
que não seja mudo.
– Isso eu sei, não precisava me dizer
como novidade. Eu queria saber é quem está no aparelho.
– Ah, sim. No aparelho não está
ninguém.
– Como não está, se você está me
respondendo?
– Eu estou fora do aparelho. Dentro do
aparelho não cabe ninguém.
– Engraçadinho. Então, quem está fora
do aparelho?
– Agora melhorou. Estou eu, para servi-lo.
– Não parece. Se fosse para me servir
já teria dito quem está falando.
– Bem, nós dois estamos falando. Eu de
cá, você de lá. E um não conhece o outro.
– Se eu conhecesse não estava
perguntando.
– Você é muito perguntador. Note que
eu não lhe perguntei nada.
– Nem tinha que perguntar. Pois se fui
eu que telefonei.
– Não perguntei nem vou perguntar. Não
estou interessado em conhecer outras pessoas.
– Mas podia estar interessado pelo
menos em responder a quem telefonou.
– Estou respondendo.
– Pela última vez, cavalheiro, e em
nome de Deus: quem fala?
–Pela última vez, e em nome da
segurança, por que eu sou obrigado a dar esta informação a um desconhecido?
– Bolas!
– Bolas digo eu. Bolas e carambolas.
Por acaso você não pode dizer com quem deseja falar, para eu lhe responder se
essa pessoa está ou não aqui, mora ou não mora neste endereço? Vamos, diga de
uma vez por todas: com quem deseja falar?
Silêncio.
– Vamos, diga: com quem deseja falar?
– Desculpe, a confusão é tanta que eu
nem sei mais. Esqueci. Tchau.
ANDRADE,
Carlos Drummond de. Contos plausíveisRio
de Janeiro: J. Olympio, 1985.
Estranha (e eficiente) linguagem dos namorados
(Para
finalizar, o reverso. Uma conversa nonsense,
que aparentemente foge à racionalidade e à coerência, mostra-se perfeita para o
entendimento entre os namorados.)
– Oi,
meu berilo!
– Oi,
meu anjo barroco!
– Minha
tanajura! Minha orquestra de câmara!
– Que
bom você me chamar assim, meu pessegueiro-da-flórida!
– Você gosta,
minha calhandra?
– Adoro,
meu teleférico iluminado!
– Eu
também gosto muito de ser tudo isso que você me chama!
– De
verdade, meu jaguaretê de paina?
– Juro,
meu cavalinho de asas!
– Então
diz mais, diz mais!
– Meu
oitavo, décimo, décimo quinto pecado capital, minha janela sobre a Acrópole,
meu verso de Rilke, minha malvasia, meu minueto de Versailles.
– Mais,
agapanto meu, tempestade minha!
– Minha follia con variazoni, de Corelli, meu
isto-e-aquilo enguirlandado, meu eu anterior a mim, meus diálogos com Platão e
Plotino ao entardecer, minha úlcera maravilhosa!
– Ai que
lindo, liiiiiindo, meu colar de cavalheiro inglês num retrato de Ticiano! Meu
fundo do mar, você me põe louca, louca de amar as pedras, de patinar nas
nuvens!
– E eu
então, minha górgone, minha gárgula de Notre Dame, e eu, minha sintaxe de Deus?
– Você
fala como falam os balões de junho de Portinari, as joias da coroa do reino de
Samarcanda, você, meu imperativo categórico, você, minha espada maçônica, você
me mata!
– E você
também me trucida, me degola, me devolve ao estado de música, meu tambor de
mina!
– Todos
os incentivos oficiais reunidos e multiplicados não valem a tua alquimia, meu
ministro do fogo!
– Tuas
paisagens, teu subsolo infernal, teus labirintos são superiores em felicidade a
qualquer declaração dos direitos do homem!
– A
primeira vez que eu vi você naquele bar do crepúsculo eu senti que as pirâmides
e as cataratas não valiam a tua unha do dedo mindinho! Porque você é o Banco
das estrelas, e pode comprar todas as coisas do mundo, inclusive as águas e os
animais, para restituí-los à vida em liberdade! Como posso ouvir outras
palavras senão as tuas, meu almanaque do céu? Minha ciência do insabível? Meu
terremoto, meu objeto voador identificado?
– E
nascemos um para o outro, nascemos um no outro, e estamos nessa desde antes do
começo dos séculos, meu nenúfar!
– E
estaremos mesmo depois que os séculos se evaporarem, ó meu desenho rupestre,
meu formigão atômico!
–
Mandala, raio laser, sextina! Tudo meu, é claro!
– Pomba-gira!
–
Clepsidra!
– Sequoia
minha minha minha!
Diálogo
aparentemente louco, mas que dois namorados de imaginação mantêm todos os dias,
com estas ou outras palavras igualmente mágicas. Não inventei nada. Apenas
colecionei expressões ouvidas aqui e ali, e que me pareceram espontâneas, isto
é, ninguém deve ter preparado antes o que iria dizer, de tal modo as palavras
saíam entrecortadas de risos, interrompidas por afagos, brotando da situação. O
amor é inventivo e anula os postulados da lógica. Ele tem sua lógica própria,
tão válida quanto a outra. E os amantes se entendem sob o signo do absurdo –
não tão absurdo assim, como parece aos não amorosos. Já ouvi no interior de
Minas alguém chamar seu amor de “meu bicho-de-pé” e receber em troca o mais
cálido beijo de agradecimento.
[..]
Todo
namorado que se preze deve inventar as besteiras líricas e deliciosas que a
gente não diz para qualquer pessoa, só para uma, e só em momentos de pura
delícia. Funcionam? E como!
ANDRADE,
Carlos Drummond de. Boca de luar. Rio
de Janeiro: Record, 1984.
Quem se...
Conclusão: quando a boa
vontade e o afeto predominam, não há incoerência, assim como não há diferença
de padrão linguístico, de geração, classe social ou interesse que possa
destruir a boa comunicação, não é mesmo?
Afinal, Chacrinha, o
Velho Guerreiro, ensinava em tempos idos: “quem
não se comunica, se trumbica.”
Modernizo o bordão, deixando a complementação para
o leitor: Quem se incomunica...
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